
Aos 18 anos, L� Borges j� havia raspado a cabe�a para servir no Ex�rcito em Belo Horizonte quando recebeu o inesperado convite de Milton Nascimento para se mudar para o Rio de Janeiro e gravar o �lbum que viria a ser o “Clube da Esquina”. A dispensa do Ex�rcito, apesar de traum�tica, foi mais tranquila do que convencer a matriarca dos Borges, dona Maricota, a liber�-lo para embarcar na empreitada musical de Bituca. E ainda tinha a gravadora, que n�o queria apostar em um mero desconhecido. Milton bateu o p�, as can��es de L� agradaram e o novato ganhou contrato para lan�ar seu disco solo naquele long�nquo 1972.
Ou�a todos os epis�dios do podcast "Nada foi como antes"
Em 2022, quando se celebra o cinquenten�rio do “Clube da Esquina”, voc� completou 70 anos, em 10 de janeiro. O que planejou para comemorar?
O disco foi uma coisa muito boa que a gente fez, eu me sinto especialmente honrado de ter sido convidado pelo Milton para ser coautor. Tenho grande orgulho desse disco, com tanta inspira��o e carinho. Compus oito m�sicas para ele e, nesse mesmo ano de 1972, gravei o meu primeiro disco solo, o “disco do t�nis”. Ent�o, estou comemorando 50 anos desses dois discos, mas n�o sou muito fixado em datas comemorativas. Fico muito orgulhoso de todos que participaram do “Clube” estarem na ativa, mas, no meio da pandemia, n�o vejo perspectivas de a gente subir no palco juntos. � dif�cil comemorar. Mantenho o isolamento social � risca, s� saio de casa para ir ao est�dio gravar minhas m�sicas. Ent�o, vou ficar fazendo o que sei de melhor: discos de can��es in�ditas. Estou fazendo disco atr�s de disco. S� volto a fazer show de maneira segura.
Voc� permaneceu criando durante os tempos de isolamento?
Para voc� ter uma ideia, no s�culo 21 dobrei o n�mero de �lbuns de in�ditas que havia feito no s�culo anterior. Agora em mar�o, estou lan�ando meu quarto disco de in�ditas em quatro anos, “Chama viva”, com letras de Patr�cia Ma�s. Estou muito produtivo. Minha comemora��o vai ser continuar fazendo m�sica e lan�ando discos.

Os m�sicos comentaram que havia grande liberdade no est�dio durante as grava��es do “Clube da Esquina”, o que acabou gerando uma sonoridade transgressora. O que voc� acha dessa vis�o?
Acho perfeita. O disco n�o teve nem ensaio, as coisas aconteciam de maneira intuitiva. Todo mundo querendo dar o melhor de si para as m�sicas do Milton e do estreante L� Borges. Eu s� tenho que agradecer a Robertinho Silva, Luiz Alves, Beto Guedes, Nelson Angelo, Toninho Horta, Tavito, Wagner Tiso, s� tenho a agradecer a generosidade e a criatividade que eles colocaram nas nossas m�sicas. Eu era um estreante, o mais jovem da turma toda, estava assinando o disco e compus oito m�sicas. O pessoal me recebeu com o maior carinho e solidariedade, todo mundo me dando for�a. Eles n�o me deixaram ficar inseguro devido � minha imaturidade. Estava entrando em um est�dio pela primeira vez, estreando minha hist�ria no mundo discogr�fico, e fiquei � vontade como m�sico experiente que eu n�o era.
Durante a grava��o do disco, algum momento especial ficou guardado em sua mem�ria?
Era uma novidade e foi tudo muito especial. Mas um momento que considero bem especial foi o dia em que gravei com orquestra “Um girassol da cor do seu cabelo”. Naquela �poca, eram dois canais s� e tudo acontecia ao vivo. Em um canal, todo o instrumental; no outro, todas as vozes. Eu, inexperiente, com meus 19 anos, tinha uma orquestra dentro do est�dio regida por Paulo Moura, com arranjo do Eumir Deodato, e estava tudo na minha m�o. Se errasse um acorde, ficasse nervoso, tinha de parar tudo. N�o tinha edi��o, essa coisa de emendar. N�o tinha esses recursos, voc� tinha que acertar. Mandei ver e consegui n�o errar nada, mas foi uma emo��o especial gravar com orquestra dentro do est�dio. Nunca mais esqueci esse momento.
H� alguma can��o cujo momento de cria��o tenha sido mais marcante?
Para mim, o processo de fazer m�sica � muito parecido, tanto hoje quanto naquela �poca. Estou com o mesmo esp�rito que eu tinha. Fazer m�sica era algo que flu�a com grande intui��o, naturalidade e jogo r�pido. At� hoje, quando t� fazendo uma m�sica e ela demora mais que 20 minutos para estar 90% pronta, j� descarto. Gosto de fazer m�sica de s�bito. Minhas melhores m�sicas fa�o muito rapidamente. Pro “Clube da Esquina”, nenhuma levei mais de uma hora para fazer. � um aprendizado que levei para minha vida inteira, a agilidade. Na pandemia, compus mais de 40 m�sicas. Composi��o � a coisa mais importante pra mim. Fiz grandes shows e adoro o p�blico, mas show � uma coisa mais ef�mera. Acaba ali. A m�sica que voc� grava e lan�a, daqui a 200 anos est� l�. N�o gosto de deixar m�sica em casa, n�o, sabe? Alguns artistas dizem que t�m um ba� de can��es – eu n�o tenho nenhum ba�. Levo tudo para o est�dio e realizo as can��es.

"Tudo acontecia ao vivo. Em um canal, todo o instrumental; no outro, todas as vozes. Eu, inexperiente, com meus 19 anos, tinha uma orquestra dentro do est�dio regida por Paulo Moura, com arranjo do Eumir Deodato, e estava tudo na minha m�o. Se errasse um acorde, ficasse nervoso, tinha de parar tudo"
L� Borges, cantor e compositor
Por falar em suas contribui��es para disco, algumas can��es ali se tornaram cl�ssicos absolutos da m�sica brasileira. “O trem azul”, por exemplo, foi gravado por Tom Jobim e Elis Regina.
Estava vendo televis�o na casa do meu irm�o e vi o maestro Tom Jobim dando entrevista a um jornal. Perguntaram para ele o que via de promissor na m�sica brasileira e ele me citou. N�o acreditei! Foi antes de ele gravar “O trem azul”. Fui muito bem recebido no Rio de Janeiro, cidade de que sempre gostei quando era crian�a. Mas quando fui para l� trabalhar em um disco, era tudo novidade. Tom e Elis gravaram “O trem azul”, e tantas outras pessoas (gravaram coisas minhas).
Como voc� recebeu o convite do Milton para gravar um disco com ele?
A gente havia se tornado parceiros pela primeira vez em “Clube da Esquina” (can��o), ele gravou m�sicas minhas no disco dele de 1970. “Para Lennon e McCartney”, com letra de M�rcio Borges e Fernando Brant, fez um grande sucesso. Ent�o, o Milton apostou em mim. Ele morava no Rio e eu em Belo Horizonte. Quando chegou na minha casa, estava me preparando para fazer vestibular, e nem me lembro para qu�. Achei que ele ia me pedir uma m�sica para o pr�ximo disco dele. Mas ele me chamou para ir morar no Rio e gravar um disco homenageando nossa parceria e a esquina onde eu ficava tocando viol�o com meus amigos de bairro. Tive que pedir autoriza��o para minha m�e.
Voc� estava prestes a servir no Ex�rcito, certo?
Estava na idade de me apresentar ao Ex�rcito tamb�m, tinha que resolver isso. Me apresentei ao Ex�rcito, fui muito maltratado, era �poca de ditadura militar, e falei para o capit�o da minha companhia que ia fazer um disco com Milton Nascimento. J� estava com a cabe�a raspada e tudo. E o cara falou: “Voc�s n�o gostam da gente. Voc� n�o vai servir no Ex�rcito n�o � porque voc� vai gravar disco, n�o, mas porque o Ex�rcito n�o quer pessoas da sua esp�cie aqui dentro. Fui desdenhado, foi at� um pouco traumatizante.
E como voc� convenceu seus pais?
Meu pai era mais liberal, mas minha m�e disse que eu n�o iria morar no Rio em plena ditadura militar, com apenas 18 anos, e com o Bituca, que morava sozinho. Falei: “M�e, � uma oportunidade que ele est� me dando. Vou fazer metade das m�sicas de um disco com ele”. No Ex�rcito, fui s� maltratado, mas minha m�e foi dif�cil de convencer. Ela n�o queria. Juntar duas, tr�s, quatro pessoas jovens em uma casa em tempos de repress�o poderia ser considerado aparelho subversivo. E ela sabia disso. Conversei com meu pai e ele convenceu minha m�e.
Como o Beto Guedes entrou nessa hist�ria?
Falei com o Bituca que n�s t�nhamos de chamar o Beto. Falei que precisava de uma interlocu��o beatleman�aca comigo no Rio. “Vou chegar l� e v�o estar os seus amigos tocando jazz, bossa nova, e outras coisas que gosto muito tamb�m, mas eu sou beatleman�aco e Beto tamb�m, tivemos at� aquela banda cover The Beavers”. Ele falou: “Claro, adoro o Beto, vamos na casa dos pais dele”. Fomos l� e os pais do Beto j� foram mais liberais que os meus. Essa hist�ria de o Beto ter ido foi maravilhosa, voc� pega a ficha t�cnica do “Clube da Esquina” e o Beto Guedes tocou em todas as faixas. O fato de a gente ter morado juntos em Mar Azul deixou o Beto ainda mais conhecedor das m�sicas que a gente estava fazendo. � o cara que mais conhecia as m�sicas que a gente estava fazendo pro “Clube da Esquina”, testemunha di�ria. No est�dio, ele, com muito talento, foi um multi-instrumentista espetacular.

"O come�o da minha carreira foi muito avassalador para um jovem de 20 anos. Eu precisava de um tempo para me estruturar como compositor, tudo o que n�o queria era fazer m�sica por obriga��o, mas por vontade pr�pria. Tive que fazer o %u201Cdisco do t�nis%u201D sem ter m�sica nenhuma. Compunha de manh�, o M�rcio Borges fazia a letra � tarde, de noite a gente ia para o est�dio e gravava valendo para todo o sempre. E est� a� at� hoje"
L� Borges, cantor e compositor
Conte um pouco sobre os dias em Mar Azul, onde as can��es foram compostas.
Foram dias muito legais, tivemos v�rios meses para compor em um lugar paradis�aco. Um grande al�vio para a gente. Quando chegamos ao Rio, fomos para o Jardim Bot�nico. Como era ditadura militar, acabamos expulsos do pr�dio porque �ramos cabeludos, porque beb�amos. E a gente nem fazia barulho nem nada. Fomos itinerantes, moramos em v�rios lugares no Rio, n�o �ramos bem recebidos pelos s�ndicos, pelos porteiros. Ent�o, fomos para essa praia paradis�aca no litoral de Niter�i, com uma casa maravilhosa. L� n�o tinha vizinho, n�o tinha s�ndico, era s� a gente por conta da cria��o. Ficava o Milton num quarto compondo as coisas dele, eu ficava em outro criando as minhas. E o Beto ficava acompanhando, nesse disco ele n�o foi compositor. Mas a gente fazia tudo juntos, ia � praia, almo�ava juntos.
Depois de 1972, com “Clube da Esquina” e o “disco do t�nis”, voc� viveu um hiato de sete anos at� lan�ar um trabalho novo. O que houve?
O come�o da minha carreira foi muito avassalador para um jovem de 20 anos. Eu precisava de um tempo para me estruturar como compositor, tudo o que n�o queria era fazer m�sica por obriga��o, mas por vontade pr�pria. Tive que fazer o “disco do t�nis” sem ter m�sica nenhuma. Compunha de manh�, o M�rcio Borges fazia a letra � tarde, de noite a gente ia para o est�dio e gravava valendo para todo o sempre. E est� a� at� hoje. O “disco do t�nis” me deu grande agilidade para compor. A m�sica que gravava � noite, de manh� ela n�o existia. A gravadora pressionava, vamo que vamo, queriam lan�ar o disco ainda em 1972, e eu n�o entendia por qu�. Fiquei meio traumatizado. A fase do “Clube da Esquina” foi relaxada, e a do “disco do t�nis”, sufocante, mas criativa.
Como foi ver Kanye West e Pharrell Williams se divertindo ao som de “Tudo o que voc� podia ser”?
Fiquei muito feliz. A grava��o � do Quarteto em Cy. Meu filho, de 23 anos, me ligou quase chorando, dizendo: “Pai, meus �dolos vibraram com a sua m�sica”. Meu filho adora rap e vive me aplicando. Ele at� gosta de MPB e das coisas que o pai faz, mas o universo dele � o do rap. Fez uma playlist pra mim do Djonga, e fiquei super f�. Que cara foda! Sou bastante ecl�tico. Na parte da manh�, t� cuidando das minhas m�sicas, mais de tardinha come�o a ouvir outras coisas. Sou t�o diversificado e maluco que escuto Cyro Monteiro, Cauby Peixoto, Jimi Hendrix, Emerson, Lake & Palmer, Caetano, Gil, Chico Buarque. N�o gosto de ficar olhando s� pro meu umbigo. � importante ouvir outras coisas tamb�m, n�o como refer�ncia, porque j� tenho minha personalidade de compositor bem elaborada. Afinal de contas, s�o 50 anos.

Quais elementos presentes em “Clube da Esquina” ajudaram a pavimentar esse caminho t�o vitorioso do disco?
S�o v�rios fatores. Muitos m�sicos criativos e inspirados com liberdade para criar dentro do est�dio. Tem um tempero especial que � o contraponto das minhas m�sicas, com sotaque mais ingl�s de Beatles, com as m�sicas do Milton, que acenam para outra est�tica. Gosto muito da ordem das faixas, � um disco bem montado. Somos dois autores distintos, as m�sicas do Milton n�o t�m tanto a ver com as minhas. O que mant�m a unidade � a coisa que o Milton mais preserva: a amizade. Acho que a liberdade criativa tornou esse �lbum diferente do que se fazia. Gosto muito dessa qu�mica. Enquanto Milton canta “Os povos”, uma can��o densa, linda e maravilhosa, eu entro com uma baladinha tipo “Paisagem da janela”. Milton fez muita coisa legal nesse disco: “Cravo e canela”, “Nada ser� como antes”, “Cais”. Ele � meu �dolo, meu mestre. Eu estava muito inspirado tamb�m.
Qual � a sua faixa preferida do disco?
S�o duas, e duas do Milton: “Nada ser� como antes”, com letra do Ronaldo Bastos, e “Os povos”, com letra do M�rcio Borges.