
"Drive my car”, o filme de Ryusuke Hamaguchi baseado num conto de “Homens sem mulheres” (Alfaguara), de Haruki Murakami, estreia nesta quinta-feira (17/3), em Belo Horizonte, nos cines UNA Belas Artes e Ponteio.
Antes de receber suas quatro indica��es ao Oscar (melhor filme, dire��o, roteiro adaptado e filme internacional), o longa teve seu roteiro premiado no Festival de Cannes do ano passado.
H� muito o que falar sobre o que se passa em seus 179 minutos de dura��o. Dif�cil � diz�-lo sem privar o leitor do prazer da descoberta de uma trama que se desenrola como se fosse um pergaminho, com sutileza e precis�o.
Comecemos por sua sinopse oficial: “Yusuke Kafuku � um ator e diretor de teatro que tem um casamento feliz com a roteirista Oto. No entanto, Oto morre repentinamente, deixando para tr�s um segredo. Dois anos mais tarde, Kafuku, ainda incapaz de se recuperar totalmente da morte da mulher, recebe um convite para dirigir uma pe�a num festival de teatro e dirige seu carro at� Hiroshima. L�, ele conhece Misaki, uma mulher reticente que � designada para ser sua motorista. � medida que eles passam tempo juntos, Kafuku confronta o mist�rio de sua mulher que silenciosamente o assombra”.
N�o � uma pe�a qualquer que Kafuku (Hidetoshi Nishijima) vai dirigir em Hiroshima, mas a mesma “Tio V�nia” (Anton Tchekhov) que ele vinha ensaiando com a ajuda de Oto (Reika Kirishima), pouco antes de sua morte, e na qual viveria o desesperado personagem central. Enquanto se preparava para “Tio V�nia”, Kafuku estava em cartaz com “Esperando Godot” (Samuel Beckett), portanto, j� no territ�rio do desalento.
“TIO V�NIA”
Diante do texto de Tchekhov, Kafuku tem a sensa��o de estar despido de prote��es e ser obrigado a encarar a verdade, segundo ele diz em uma cena. Interpretar V�nia tornou-se insuport�vel para ele.
No processo de sele��o do elenco da montagem que dirigir� em Hiroshima, o diretor designa para ser o protagonista um jovem ator que se candidatara a outro papel. Gal� ca�do em desgra�a em virtude de seu comportamento irrefre�vel, o futuro V�nia havia se tornado famoso interpretando na televis�o personagens criados por Oto e carrega de sua rela��o com a roteirista uma parte do “segredo” que consome Kafuku.
Ap�s um ensaio, sentados no banco de tr�s do carro, enquanto Misaki (Toko Miura) est� ao volante, os dois “V�nias” ter�o o di�logo que far� Kafuku come�ar a ver sua rela��o com a mulher por outro �ngulo e mover o foco do que ele percebia como sendo um mist�rio insond�vel (o que para ele equivale a um problema) na personalidade de Oto para as raz�es que o fizeram manter em seu relacionamento com ela uma postura na qual a covardia se escondeu numa apar�ncia de serenidade e autocontrole.
A escolha de Hiroshima como cen�rio dessa parte da hist�ria nada tem de casual. A cidade, como se sabe, � hoje um s�mbolo e um monumento � sobreviv�ncia. Trata-se aqui, no entanto, daqueles que ter�o de sobreviver carregando consigo a mem�ria dos mortos. � o caso de Kafuku. � o caso de Misaki. E ser� o caso do jovem ator que encara com reservas o personagem de V�nia.

SIL�NCIO
A rela��o entre Kafuku e Misaki, a quem ele de in�cio foi refrat�rio, se constr�i a partir da cumplicidade no sil�ncio. Ou quase. Ele mant�m, nas idas e vindas do trabalho para o hotel, o h�bito de ouvir no som do carro a fita em que Oto gravou as falas dos demais personagens de “Tio V�nia” para que Kafuku pudesse ensaiar enquanto dirigia.
Aos poucos, Misaki revelar� a Kafuku sua hist�ria, que � de sobreviv�ncia em diversos sentidos, o que a tornou excepcionalmente madura para uma mulher de 23 anos. Kafuku e Oto teriam uma filha com essa idade, se a menininha que tiveram no in�cio do casamento tivesse sobrevivido a uma pneumonia na inf�ncia.
A coincid�ncia entre a idade de Misaki e a de sua filha faz Kafuku por vezes imaginar-se no papel de pai. Nos caminhos que percorrem de carro, de acordo com os acontecimentos do dia de ensaios e a atmosfera dentro do ve�culo, eles parecem alternar-se em outros pap�is: v�o do diretor e da motorista, ou do pai e a filha, aos amigos e confidentes.
Do lado de fora, h� estradas sinuosas, longos t�neis, a vista do mar e tamb�m a de paisagens geladas, que o diretor Ryusuke Hamaguchi explora com eleg�ncia e sobriedade. O paralelo entre os caminhos internos dos personagens e sua movimenta��o no espa�o coletivo � um dos aspectos que distinguem “Drive my car” dos filmes comuns.
Outras de suas qualidades excepcionais s�o o modo ao mesmo tempo apaixonado e cerebral como aborda o jogo teatral e a natureza do of�cio do ator e a maneira como reveste as cenas de sexo entre Kafuku e Oto do significado singular que esses momentos de intimidade representam para um e para outro.
O espectador perceber� essa caracter�stica j� na bela cena de abertura, carregada de sensualidade e do “mist�rio” de Oto. As sombras desse in�cio n�o se dissipar�o ao longo da hist�ria, apenas se tornar�o mais vis�veis, porque “Drive my car” �, em resumo, um filme sobre a dor de encarar os pr�prios abismos. E de sobreviver a isso.