
A romancista e contista Lygia Fagundes Telles, que morreu neste domingo (3/4), em S�o Paulo, de causas naturais, comparava o escritor a um "vision�rio", com "passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trap�zio voador, que avan�a e recua no espa�o".
Ela fez essa declara��o a Clarice Lispector, que de 1968 a 1977 publicou entrevistas com artistas nas revistas Manchete e Fatos e Fotos. “Lygia � um best-seller no melhor sentido da palavra”, escreveu Clarice na introdu��o da entrevista com a amiga, que acabara de lan�ar o livro de contos “Semin�rio de ratos” (1977).
Ela fez essa declara��o a Clarice Lispector, que de 1968 a 1977 publicou entrevistas com artistas nas revistas Manchete e Fatos e Fotos. “Lygia � um best-seller no melhor sentido da palavra”, escreveu Clarice na introdu��o da entrevista com a amiga, que acabara de lan�ar o livro de contos “Semin�rio de ratos” (1977).
“O jeito dela escrever � genu�no pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia s�o muito sens�veis, muito captadores do que est� no ar, muito femininos e cheios de delicadeza”, apontou a autora de “A hora da estrela”, lan�ado tamb�m naquele 1977. Ali�s, o mesmo ano em que Clarice morreu, aos 56 anos, de um c�ncer no ov�rio.

A inspirada conversa das duas est� publicada no livro “Clarice Lispector entrevistas”, lan�ado em 2007 pela editora Rocco.
Clarice Lispector – Como nasce um conto? Um romance? Qual � a raiz de um texto seu?
Lygia Fagundes Telles – S�o perguntas que ou�o com frequ�ncia. Procuro ent�o simplificar essa mat�ria que nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa v� de explicar o inexplic�vel, de esclarecer o que n�o pode ser esclarecido no ato da cria��o. A gente exagera, inventa uma transpar�ncia que n�o existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo � sombra. Mist�rio. O artista � um vision�rio. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trap�zio voador que avan�a e recua no espa�o: tanta luta, tanto empenho que n�o exclui a disciplina. A paci�ncia. A vontade do escritor de se comunicar com o seu pr�ximo, de seduzir esse p�blico que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a voca��o for cumprida com amor, � preciso se apaixonar pelo of�cio, ser feliz nesse of�cio. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham), que ao menos fique a alegria de criar.
"Quando fico deprimida vejo claramente essas tr�s esp�cies em extin��o: o �ndio, a �rvore e o escritor. Mas reajo, n�o sei trabalhar sem a esperan�a no cora��o"
Lygia Fagundes Telles, escritora
Para mim, a arte � uma busca, voc� concorda?
Sim, a arte � uma busca e a marca constante dessa busca � a insatisfa��o. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabe�a e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou j� estava morto antes. � preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que n�o trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho j� est� �timo, tudo bem – a esses recomendo a li��o maior que est� inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade: “Chega mais perto e contempla as palavras/ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta/ pobre ou terr�vel que lhe deres/ Trouxeste a chave?”. Voc�, Clarice, que � dona de um dos mais belos estilos da nossa l�ngua, voc� sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave n�o � assim simples. Nem f�cil, h� tantas chaves falsas. E essa � uma fechadura toda cheia de segredos. De ambiguidades.
Fale-nos do “Semin�rio dos ratos”.
Procurei uma renova��o de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada ideia: um conto pode dar assim a impress�o de ser um mero retrato que se v� e em seguida esquece. Mas ningu�m vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais al�m da imagem est�tica. O retrato de uma �rvore � o retrato de uma �rvore. Contudo, se a gente sentir que h� algu�m atr�s dessa �rvore, que detr�s dela alguma coisa est� acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade est� a vida palpitando no ch�o de insetos, ervas – ent�o esse ser� um retrato inesquec�vel. O escritor – ai de n�s – quer ser lembrado atrav�s do seu texto. E a mem�ria do leitor � t�o fraca. Leitor brasileiro, ent�o, tem uma mem�ria fragil�ssima, t�o inconstante. O padre Lu�s (um padre santo que fez a minha primeira comunh�o, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma prociss�o no Rio. A prociss�o sa�a de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas � medida que a prociss�o ia avan�ando, os fi�is iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos caf�s. E o mar? Quando finalmente voltou � igreja, ele olhou para tr�s e viu que restara uma meia d�zia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas s�o muito vol�veis”, concluiu padre Lu�s. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um m�s depois de ser carregado nos ombros por uma multid�o delirante, com o mesmo fervor e no mesmo est�dio foi fragorosamente vaiado. T�o vol�veis…
"As gl�rias que v�m tarde j� v�m frias', escreveu o Dirceu de Mar�lia. Me leia enquanto estou quente"
Lygia Fagundes Telles, escritora
Isso n�o � pessimismo?
N�o sou pessimista, o pessimista � um mal-humorado. E gra�as a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu pr�ximo que se envaidece com essas coisas, do pr�ximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por a�, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e gl�rias, eu ficarei! N�o fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o n�mero dos que n�o deixaram nem a poeira � t�o impressionante que seria inoc�ncia demais n�o desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista � meio desconfiado. Ent�o, o certo � dizer com Mill�r Fernandes: “Quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lan�ar esse “Semin�rio dos ratos”. O que j� � alguma coisa…
Como nasceu esse t�tulo?
Houve em S�o Paulo um semin�rio contra roedores. L� acontecem diariamente dezenas de semin�rios sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estar�o sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o p�blico caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquet�is. Palavras, palavras. E de repente pensei numa invers�o de pap�is, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no semin�rio. “Que s�culo, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edif�cio. Assim nasceu esse conto.
Quais s�o os temas do livro?
S�o 14 textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solid�o, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que a� est� em redor. E em n�s. Quando fico deprimida vejo claramente essas tr�s esp�cies em extin��o: o �ndio, a �rvore e o escritor. Mas reajo, n�o sei trabalhar sem a esperan�a no cora��o. Sou de �ries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paix�o por Deus.
''Nesse jogo ele (o escritor) acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a voca��o for cumprida com amor, � preciso se apaixonar pelo of�cio, ser feliz nesse of�cio. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham), que ao menos fique a alegria de criar''
Lygia Fagundes Telles, escritora
H� muita gente louca no “Semin�rio dos ratos”?
Sim, h� um razo�vel n�mero de loucos nesse meu livro e tamb�m nos outros. Mas a loucura n�o anda mesmo por a� galopante? “Os homens s�o t�o necessariamente loucos que n�o ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.
O que mais lhe perguntam?
Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, n�o. Mas compensa – e tanto – por outro lado atrav�s do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o est�mulo do leitor? E da�? “As gl�rias que v�m tarde j� v�m frias”, escreveu o Dirceu de Mar�lia. Me leia enquanto estou quente.