
“N�o sabemos nada sobre a dor de perder um filho antes de enfrent�-la?”, escreve Elaine Prestes, uma das autoras convidadas a compartilhar sua experi�ncia no livro “Rev�s de um parto – Luto materno”, organizado pela psic�loga Karina Okajima Fukumitsu e lan�ado no �ltimo dia 29.
Com efeito, n�o h� como medir a agudeza desse sofrimento, que se manifesta de forma diferente em cada m�e enlutada, mas trocar experi�ncias e se aproximar de quem viveu a mesma situa��o pode ser um caminho de elabora��o da dor e ressignifica��o da vida.
Foi com isso em mente que, em 2020, Karina, que viveu um luto gestacional em 2005, se prop�s a reunir um grupo de m�es que perderam seus filhos para relatar em livro suas experi�ncias. Segundo a organizadora da obra, mais do que falar da morte, essas mulheres falam da vida, honrando a mem�ria daqueles que se foram e mostrando como trabalhar essa ressignifica��o da dor, em vez de lutar contra ela.
Apesar de ter passado pela experi�ncia de perder o filho durante a gravidez, a inspira��o para “Rev�s de um parto” s� veio anos depois, quando Karina estava passeando pelas ruas de Buenos Aires, no dia de seu anivers�rio.
“Eu me deparei com um momento incr�vel, que � o encontro das m�es da Pra�a de Maio. Elas fazem regularmente essa confraterniza��o desde o per�odo da ditadura militar, quando seus filhos foram mortos ou desapareceram. Esse encontro delas � uma forma de prestar homenagem a eles”, diz.
A psic�loga conta que foi profundamente impactada por aquela cena, que se relacionava com sua pr�pria experi�ncia de luto e com seu exerc�cio profissional. “Comecei a pensar como a for�a materna se faz sempre presente, mesmo apesar dessa dor enorme que adv�m do desaparecimento de um filho. Sou suicidologista e j� estudava quest�es afins. Voltei para o hotel pensando que tinha que fazer alguma coisa sobre esse assunto.”
Ela conta que, a partir do seu pr�prio c�rculo profissional, come�ou a entrar em contato com m�es que, de diferentes formas, tinham perdido seus filhos. “Precisei ser muito cuidadosa, porque estava tratando com pessoas em carne viva. Decidi que queria incluir hist�rias de m�es que transformavam sua dor em amor, em projetos, em mobiliza��o, num processo que se assemelha a extrair flor de pedra”, afirma.
Projetos sociais
As 10 m�es/autoras que toparam participar se alinham com esse perfil; todas empreenderam, a partir da morte dos filhos, projetos sociais, grupos de apoio, entidades filantr�picas ou outras iniciativas cong�neres. “Os convites que fiz foram no sentido de essas mulheres poderem trazer suas viv�ncias enquanto m�es enlutadas que resolveram se mover, para que injusti�as ou sofrimentos que foram calados durante um tempo pudessem vir � tona”, diz. Ao final do volume, est�o listados todos os projetos e entidades criados pelas autoras.
Karina aponta que os relatos que comp�em “Rev�s de um pato” foram escritos durante a pandemia e que, para ela, foi como acompanhar uma gesta��o. “Quando a editora Summus publicou, falei para o grupo que nosso beb� ia nascer. Foi uma emo��o enorme”, conta. Tamb�m autora de um dos cap�tulos, al�m de assinar a apresenta��o, ela chama a aten��o para o fato de que as coautoras s� se conhecem virtualmente.
“A pandemia nos furtou a possibilidade do contato pessoal, mas a gente se apegou. Minha ideia � fazer tudo o que estiver ao meu alcance para divulgar os projetos empreendidos por essas mulheres, porque falar dessas a��es tamb�m � uma forma de lidar com o luto e preservar a sanidade da exist�ncia. O que o livro cont�m s�o relatos de esperan�a, que trazem hist�rias de sobreviv�ncia a uma fase pela qual se passa para se tornar um ser vivente sem a presen�a dos filhos”, aponta.
Diferentes latitudes
Ela adianta que est� preparando um evento para o pr�ximo dia 3 de setembro, em S�o Paulo, quando, espera, todas as coautoras de “Rev�s de um parto” possam estar presentes, se conhecer pessoalmente, numa noite de aut�grafos e de confraterniza��o. Karina observa que o livro re�ne relatos de m�es enlutadas de diferentes partes do pa�s.
Entre elas est�o, por exemplo, Helena Taliberti, cujos filhos Camila e Luiz Taliberti foram v�timas do rompimento da barragem de Brumadinho, que tamb�m levou sua nora, gr�vida de 5 meses, e Ligiane Righi da Silva, que perdeu a filha Andrielle no inc�ndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS). Outras m�es/coautoras viram seus filhos partir das mais diferentes formas, por doen�a, acidente ou suic�dio.
Karina aponta que, assim como as causas das mortes s�o distintas, as formas de vivenciar o luto tamb�m s�o diversas. “Cada um se enluta � sua maneira. A autora de cada cap�tulo teve um enfrentamento diferente, n�o existe um igual ao outro, e isso � bonito. � diferente falar de um luto meu, gestacional, e do luto das m�es cujos filhos morreram no rompimento da barragem de Brumadinho ou no inc�ndio da Boate Kiss. No meu caso, n�o tenho a mem�ria do feto que morreu”, diz.
Car�ter propositivo
Ela ressalva que h�, no entanto, formas semelhantes de se encarar esse estado. “O que ajuda no luto? � quando a gente resgata o significado da rela��o com o filho. Uma das m�es, a Helena Taliberti, fala que a vida dos nossos filhos n�o pode ter sido em v�o”, ressalta. A organizadora destaca que, apesar do mote que inspira tristeza, a obra tem um car�ter propositivo. “Tem a ver com seguir vivo”, diz.
“Falo que morte nenhuma retira o v�nculo materno, quer dizer, mesmo se sentindo morta quando um filho parte, existe um batimento que faz com que a gente se lembre a cada dia que est� viva, e que apesar da dor podemos levar a vida adiante como forma de homenagear esse v�nculo que tivemos e que permanece”, salienta. Assim, ela entende “Rev�s de um parto” como um campo de acolhimento. Esse sentimento � compartilhado pelas coautoras.
“Muitas das m�es que aceitaram escrever seus relatos para o livro me falaram que, quando sofreram a morte do filho ou da filha, n�o tinham material nenhum que representasse um acalanto, um colo. � muito legal ouvir essas mulheres dizendo que escreveram como forma de acolhimento para outras m�es enlutadas.”
Necessidade de troca
Uma das coautoras do livro, a tamb�m psic�loga M�rcia Noleto, considera, assim como Karina, que “Rev�s de um parto” pode representar uma forma de suporte para m�es enlutadas ou para pessoas que trabalham com esse p�blico.
“As mulheres t�m essa necessidade da troca, � muito importante para uma m�e que perdeu o filho ouvir outras mulheres. Quando voc� est� diante de uma pessoa que passou pela mesma situa��o traum�tica, fica mais f�cil aliviar as dores. De alguma forma, estamos contando nossas hist�rias, todas muito impactantes, e esse compartilhamento conforta”, diz.
Ela conta que a partir da morte da filha Mariana, em um acidente de helic�ptero, em 2011, deu um direcionamento completamente diferente para sua vida. “Eu trabalhava no consulado da Fran�a e resolvi fazer psicologia. Hoje fa�o mestrado em filosofia e, em 2014, criei o grupo M�es SemNome, com a ajuda da Funda��o Get�lio Vargas. De l� para c�, tenho feito trabalhos variados, por exemplo, com as m�es da escola de Realengo, onde 13 alunos foram assassinados. Tenho na minha cl�nica um grupo de apoio ao luto materno que � um prop�sito, n�o cobro nada, � uma coisa que fa�o e vou fazer at� o fim da minha vida”, afirma.
Rearticula��o da vida
M�rcia avalia que “Rev�s de um parto” pode ajudar outras m�es enlutadas a entender por meio da experi�ncia alheia o que est�o sentindo – em que pese ela tamb�m acreditar que n�o existam processos iguais de luto.
“O livro, de qualquer forma, oferece um panorama de que � poss�vel voc� sair de uma dor muito profunda. Ela vai te acompanhar ao longo da vida, ningu�m descarta a dor, mas h� uma possibilidade de voc� viver com ela, colocar em outro lugar e seguir vivendo feliz. Em termos de luto materno, n�o existe a palavra ‘superar’, mas existe a rearticula��o da vida. A gente consegue transmutar a dor”, refor�a.
Paula T�vora, que assina um dos cap�tulos do livro e tamb�m � psic�loga – h� uma preval�ncia das profissionais da �rea justamente porque Karina iniciou os convites a partir de seu c�rculo profissional –, acredita, como as demais autoras, que, nesses casos, o compartilhamento de experi�ncias fortalece.
“O livro traz as formas que cada uma encontrou para trabalhar sua passagem pela perda. Digo passagem, e n�o simplesmente perda, porque n�o � algo pontual ou est�tico. Voc� encontra nessa obra identidades, semelhan�as, relatos muito tristes e tamb�m muito inspiradores”, opina.
A PERDA DE CADA UMA
Saiba quem s�o as m�es/coautoras de “Rev�s de um parto”
• Helena Taliberti � m�e de Camila e de Luiz, v�timas do rompimento da barragem de Brumadinho, que tamb�m levou sua nora, gr�vida de 5 meses
• M�rcia Noleto � m�e de Mariana, que morreu em um acidente de helic�ptero entre Porto Seguro e Trancoso, em 2011, quando tinha 20 anos
• Ligiane Righi da Silva � m�e de Andrielle, v�tima do inc�ndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS)
• Sandra Moreno � m�e de Ana Paula, que desapareceu em outubro de 2009, quando tinha 23 anos
• Rosana de Rosa � m�e Luiz Felipe, que morreu dois dias ap�s o parto prematuro, e de Thiago, que morreu afogado na piscina da casa quando tinha 1 ano e oito meses
• Amanda Tinoco � m�e de Gabriel, que morreu atropelado por um �nibus quando tinha 16 anos
• Paula Fernandes T�vora � m�e de Juliana, que morreu, v�tima de um c�ncer, quando tinha 18 anos
• Cristiana Jac� Monteiro Cascaldi � m�e de Felipe Augusto, que cursava o terceiro ano de medicina na USP e cometeu suic�dio
• Gl�ucia Rezende Tavares � m�e de Camile, que morreu em um acidente de carro em 1998
• Elaine Prestes � m�e de Mariana, que morreu repentinamente aos 16 anos, ap�s sofrer uma convuls�o na escola, em 2016

“REV�S DE UM PARTO - LUTO MATERNO”
• Karina Okajima Fukumitsu (organiza��o)
• Summus Editorial (120 p�gs.)
• R$ 53 e R$ 31,80 (e-book)
• � venda no site da Summus Editorial