
Arnaldo Cohen tinha 14 anos quando se apresentou pela primeira vez ao lado de uma orquestra. Lembra-se muito bem da noite ocorrida 60 anos atr�s. Vencedor do Concerto para Juventude, no Rio de Janeiro, iria executar com a Sinf�nica Brasileira o “Concerto para piano nº 1 em sol menor, op. 25”, de Mendelssohn.
“O �ltimo movimento � muito dif�cil. N�o era rezar, mas eu pedia a Deus, aos c�us, para me ajudar a terminar tudo sem eu parar, de tanta dor que sentia no bra�o”, conta ele, assumindo que, na �poca, n�o tinha t�cnica nenhuma. Nesta quinta (14/7) e sexta (15/7), Cohen retorna � Sala Minas Gerais para, ao lado da Orquestra Filarm�nica, executar a pe�a, composta pelo alem�o em 1831.
Al�m de Mendelssohn, o pianista, sob a reg�ncia de Fabio Mechetti, vai tocar “Raps�dia sobre um tema de Paganini, op. 43” (1934), de Rachmaninov. As duas noites tamb�m ter�o no programa a estreia da obra “Sel�h”, de Igor Maia, vencedor do Festival Tinta Fresca de 2019, e a “Raps�dia espanhola”, de Ravel (1895/1907, revis�o 1908).
Para Cohen, o concerto de Mendelssohn � um “champanhe borbulhante musical”. “� um dos primeiros concertos rom�nticos, e Mendelssohn, que na �poca tinha 20 anos, tinha uma capacidade de improvisa��o extraordin�ria. � uma pe�a de um vigor e de uma alegria muito grandes.”
Melancolia
J� as varia��es sobre o tema de Paganini foram “a coroa��o” do compositor russo, diz Cohen. “Rachmaninov foi descrito por muitos de seus conterr�neos como um homem de 1m90 de melancolia russa. Ele mesmo dizia que tinha receio de n�o ter usado a pr�pria exist�ncia corretamente. Era de uma inseguran�a brutal.”
“O primeiro concerto foi uma cat�strofe, detest�vel. Come�ou a fazer psican�lise e no quarto concerto ainda n�o tinha tido sucesso”, cita. Depois de perder tudo na Revolu��o Russa de 1917, Rachmaninov emigrou para os Estados Unidos.
“Escreveu nos EUA a ‘Raps�dia’, que, como forma e qualidade de composi��o, acho perfeita. Ele pretendia que a trilha fosse a parte musical de um bal� cujo tema seria o pr�prio Paganini. Corria a lenda de que Paganini teria feito um acerto com o diabo, que, em compensa��o, teria dado a ele o dom de tocar violino como ningu�m. Rachmaninov fez tudo em torno dessa ideia: s�o 24 varia��es de um camarada que vendeu a alma ao diabo.”
Cohen conta essa hist�ria com gra�a, pois ela tamb�m tem rela��o com sua pr�pria trajet�ria, j� que se relaciona com seus dois instrumentos, o piano e o violino. Como pianista, admite, � um “cavalo azar�o”. Todo pianista de proje��o internacional come�a a tocar piano na inf�ncia. Ele, n�o.
"O grande piano � aquele que n�o soa como um piano, e esse � o grande paradoxo. Para o violino, voc� toca com o som muito perto do seu ouvido, ent�o a capacidade expressiva � maior. Para mim, ele serviu como inspira��o para eu tentar o mesmo tipo de expressividade com um instrumento de percuss�o"
Arnaldo Cohen, pianista
Violino
Carioca, filho de imigrantes judeus – o pai, nascido na Palestina, no que � hoje o Estado de Israel, chegou ao Brasil aos 11 anos, e a m�e, vinda para o pa�s na primeira inf�ncia, nasceu na Ucr�nia –, ele come�ou a ter aulas de m�sica quando pequeno. Come�ou no violino, pois o pai achava que piano era instrumento para mulher – ent�o este coube � sua irm� mais velha.
Por causa da irm�, Cohen passou tamb�m a se dedicar, al�m do violino, ao piano, “mas como um amador”. “Eu n�o sabia estudar, eram duas horas por semana quando tinham que ser oito por dia.” Ele diz que os professores das bancas examinadoras deveriam “ser surdos o suficiente” para deix�-lo passar de ano.
Mas Cohen continuou tocando os dois instrumentos, inclusive quando entrou para o curso de engenharia civil. “Certamente, se tivesse me formado, teria comprado um bom apartamento e um piano, para tocar todo contra�do.” Foi morar sozinho e, para se sustentar, entrou para a orquestra do Theatro Municipal.
Ficava na �ltima fila dos violinistas. “Como eu achava que tocava mal, tocava bem baixinho. Por causa da sonoridade da orquestra, eu praticamente n�o me ouvia, ent�o achava uma maravilha. Isso me lembra o tempo em que n�o sabia cozinhar. Tomava dois copos de vinho e preparava comida pronta de micro-ondas. Achava �timo, mas n�o era a comida, eram os dois copos de vinho.”
Na �poca, segundo Cohen diz, ele achava essa temporada como violonista desnecess�ria. “Deveria estar estudando piano e n�o tocando com orquestra.” Mas o fazia porque precisava do sal�rio para se sustentar – posteriormente, abandonou a engenharia no �ltimo semestre.
Amigo
Hoje, olhando para tr�s, v� que o violino foi essencial para sua forma��o como pianista. “Ele foi meu melhor amigo. Por causa dele, conheci um repert�rio completamente diferente, tive experi�ncia junto a colegas e regentes. N�o tem a menor import�ncia o fato de tocar muito bem ou n�o.”E o violino, na opini�o de Cohen, tem muito mais hist�ria do que o piano. “O primeiro grande violino, um Stradivarius, � de 1709. Mozart nasceu em 1756. Na �poca, o que havia era um pianinho. Ent�o, as express�es musicais, sobretudo dos s�culos 18 e 19, v�m de outros instrumentos que n�o o piano.”
Na opini�o dele, tocar piano muito bem “� um ato de ilusionismo”. “Voc� tem que dar impress�o ao ouvinte de que ele est� ouvindo um instrumento potente, e n�o de percuss�o. O grande piano � aquele que n�o soa como um piano, e esse � o grande paradoxo. Para o violino, voc� toca com o som muito perto do seu ouvido, ent�o a capacidade expressiva � maior. Para mim, ele serviu como inspira��o para eu tentar o mesmo tipo de expressividade com um instrumento de percuss�o.”
A grande virada na carreira de Cohen se deu em 1972, quando ele, aos 24 anos, ganhou o Concurso Internacional de Piano Ferruccio Busoni, na It�lia. “A L�cia Branco, que foi tamb�m professora do Nelson Freire, do Arthur Moreira Lima, sempre respondia a mesma coisa quando um aluno lhe perguntava se podia ser pianista. Ela dizia que claro, mas que tem o pianista internacional, o nacional, o do estado, o do munic�pio, o do bairro, o do quarteir�o, o da rua e o do edif�cio. Dizia que o aluno poderia ser um pianista, mas n�o saberia qual deles. Entre os 20 e os 24 anos, eu diria que era o pianista do bairro”, diz Cohen.
As portas se abriram para Cohen a partir de 1972 e ele, ao longo das d�cadas seguintes, atingiu o topo da escala internacional de solistas. A partir dos anos 1980, foi viver na Europa e, em 2004, partiu para os EUA, quando se tornou professor da Universidade de Indiana – obteve, em 2019, o t�tulo de distinguished professor, o mais alto na hierarquia acad�mica daquele pa�s.
Ao longo da carreira, tocou com as grandes orquestras do mundo, com grupos de c�mara, em recitais solo – � hoje o maior pianista brasileiro em atividade. Tinha em m�dia 80 concertos por ano ao redor do planeta. A� veio a pandemia e mudou tudo.
A curta temporada no Brasil vai contar com os dois concertos com a Filarm�nica, com quem n�o tocava desde 2019 – astro das programa��es de 2020 e 2021, Cohen n�o p�de vir por causa da crise sanit�ria – e uma apresenta��o beneficente em Curitiba.
Objetivo
“Na realidade, ainda n�o retomei a minha agenda. Estou come�ando agora. A pandemia me fez repensar no objetivo das coisas, nas minhas necessidades. A m�sica, para mim, � um pouco como o ar. Preciso dela. Mas cheguei � conclus�o de que n�o quero mais aceitar todos os concertos. Voc� vai para as cidades e mal tem tempo para ir ao museu, s� conhece o percurso do aeroporto, hotel, sala de concerto. Tocava um repert�rio muito grande e resolvi diminuir, pois n�o tenho voca��o para ser super-homem.”
Ainda falando sobre a crise sanit�ria, ele diz que a pandemia foi horrorosa. “Perdi minha m�e e n�o pude vir para o enterro. S�o muitas trag�dias para muita gente. O que sobrou disso foi um repensar sobre a vida, fazer um redimensionamento.” Ele voltou aos palcos no final de 2021 e, desde ent�o, acredita ter feito n�o mais do que uma d�zia de concertos.
“Querer, hoje, abra�ar o mundo com as pernas como se tivesse 20 anos s� vai causar frustra��o. Tenho que fazer as coisas dentro do meu ritmo, do meu gosto. Pessoalmente, o conceito de liberdade para um m�sico � somente um: a possibilidade de dizer n�o. N�o se pode dizer n�o para tudo, mas se voc� puder dizer n�o o m�ximo poss�vel, numa boa, com convic��o, para mim � um nirvana, sobretudo para um artista.”
Diante de tanta hist�ria – e tanta m�sica – h� alguma pe�a que Cohen ainda n�o tocou (e deseje faz�-lo)? “O segundo concerto de Brahms � um concerto que me preparei v�rias vezes para tocar, mas n�o me senti, n�o vou dizer que preparado, mas n�o me senti � vontade para tocar. J� toquei coisas t�o dif�ceis quanto, e n�o � quest�o de dificuldade, mas s�o aspectos mais emocionais. A minha dificuldade, eventualmente, n�o teria sido percebida pelo p�blico. Mas acho que se voc� n�o tiver convic��o do que faz, n�o pode convencer ningu�m de coisa nenhuma”, afirma.
ORQUESTRA FILARM�NICA DE MINAS GERAIS
Reg�ncia de Fabio Mechetti, com Arnaldo Cohen como solista convidado. Nesta quinta (14/7) e sexta (15/7), �s 20h30, na Sala Minas Gerais, Rua Tenente Brito Melo, 1.090, Barro Preto. Ingressos: R$ 50 a R$ 167 (valores de entrada inteira). � venda no local e no site da Filarm�nica.