
No sof� de sua casa, em Roma, em frente a Gabriele Costa e Gianni Russo, produtores que mal conhecia, Ennio Morricone (1928-2020) se levantou e foi ao telefone. Ligou para o cineasta Giuseppe Tornatore. “Giuseppe, tem dois tipos aqui que querem fazer um filme sobre mim. Voc� quer fazer?” Diante da afirmativa, Morricone voltou, se sentou novamente no sof� e disse: “Eu aceito, mas s� se o Giuseppe dirigir”.
Quem conta esta hist�ria � Marco Morricone, de 65 anos, mais velho dos quatro filhos que o compositor, maestro e arranjador italiano teve com sua mulher, Maria Travia. “A primeira claquete foi batida no Natal de 2014”, relembra Marco, que por mais de 30 anos administrou a carreira do pai – e agora seu legado.
Durante cinco anos, at� 2019, Tornatore filmou Morricone e seus incont�veis parceiros para o document�rio “Ennio, o maestro”, filme de abertura da nona edi��o da 8 ½ Festa do Cinema Italiano. O evento, de volta � vers�o presencial, ser� realizado neste ano em 19 cidades. Em Belo Horizonte come�a nesta quinta (28/7), no UNA Cine Belas Artes. At� a quarta (3/8) ser�o exibidos 10 filmes, nove deles in�ditos no circuito.
“Ennio, o maestro” � monumental em v�rios sentidos, a come�ar pela dura��o (2h36). Morricone chegou a assistir a duas vers�es: o primeiro corte, com 6h40, e o segundo, com pouco mais de 4h. Mas n�o haveria como ser diferente: o maestro viveu muito (morreu aos 91, em julho de 2020, em decorr�ncia de uma queda em casa, onde fraturou o f�mur) e trabalhou sem parar: s�o cerca de 500 composi��es para cinema, televis�o, al�m de obras cl�ssicas.
M�sica absoluta
Somente na maturidade Morricone entendeu que poderia fazer as duas coisas: m�sica para cinema e m�sica absoluta, o termo que utilizava para falar sobre a produ��o concebida como um ato livre, n�o condicionada a outras express�es art�sticas.
“Meu pai regia com muita do�ura, quase posso dizer que ele fazia amor com a m�sica. Isto � certamente resultado de um percurso. Disse a Tornatore que aprendi muito com o filme. Mas que queria saber a opini�o dele sobre os arranjos, a m�sica absoluta, o grupo de improvisa��o, a m�sica experimental, as can��es”, afirma.
“Afinal, tudo aquilo era ‘filho’ de quem? Ele me disse que o Ennio era muito curioso, gostava de inovar. Mas que nunca traiu sua origem, a m�sica cl�ssica, Stravinsky, (Goffredo) Petrassi (compositor, professor e principal mentor de Morricone). Ele transferiu, devagarzinho, tudo para a m�sica de cinema”, afirma Marco.
Em ordem cronol�gica, o document�rio desfia esta hist�ria por meio das entrevistas com Morricone, parceiros e admiradores, muitos deles c�lebres. Quentin Tarantino, Quincy Jones, Bruce Springsteen, John Williams, Wong Kar Wai (um dos produtores do filme) e Clint Eastwood se juntam a um time de criadores italianos que conviveram e trabalharam com ele, como Marco Bellocchio, Dario Argento e Bernardo Bertolucci.
Teimosia
O pr�prio Tornatore est� em cena. Lembra-se, com humildade, de como se sentiu quando Morricone aceitou fazer a trilha de “Cinema Paradiso” (1988). Ele j� tinha centenas de trilhas; Tornatore era apenas um cineasta estreante – e boa parte da for�a do drama vem da trilha sonora.
Mas o filme vai al�m de enumerar os sucessos. Por um lado, trata de m�sica para iniciados, falando sobre acordes, movimentos e g�neros musicais. O mais importante, no entanto, � que a hist�ria envolve o espectador com um personagem complicado, teimoso e discreto. A montagem, de Massimo Quaglia, � muito fluida, unindo v�rios pontos de uma trajet�ria em que a m�sica est� sempre em primeiro plano.
Ficamos sabendo pelo pr�prio Morricone que sua inten��o era se tornar m�dico. Mas seu pai, o trompetista Marco Morricone, n�o deu chances ao primog�nito. Ele teria que ter a mesma profiss�o, tocando inclusive o mesmo instrumento. Fez o que o pai mandou, mesmo que n�o se encontrasse como tal. Durante a ocupa��o da It�lia na Segunda Guerra Mundial, relembra da humilha��o que era tocar por comida.
� bonito v�-lo falar do pai. Ao perceber que Marco, aos 55 anos, havia deca�do como instrumentista, parou de incluir o trompete em suas grava��es – n�o queria contratar outro m�sico. Somente ap�s a morte do pai voltou a incluir o trompete em suas pe�as.
Com muito esfor�o, na juventude conseguiu entrar na turma de composi��o de Petrassi. Sentia-se desconfort�vel no meio de grandes alunos, e o reconhecimento do mentor s� viria mais tarde. Casado com Maria, uni�o que durou 63 anos, pagava as contas fazendo trabalho comercial: durante a noite fazia arranjos para programas de TV que eram gravados no dia seguinte. N�o recebia nenhum cr�dito por isso.
Pseud�nimo
Paralelamente, j� influenciado pela m�sica de John Cage, montou um coletivo de vanguarda. Com um pseud�nimo, estreou fazendo trilha para cinema com dois westerns. Isto tudo aconteceu antes de ele se reunir a Sergio Leone (e os dois descobriram, com surpresa, que foram colegas na escola prim�ria). Nascia ali uma amizade e uma not�vel parceria no cinema.
E que gerou hist�rias curiosas. Em dado momento, Morricone afirma que o �nico filme que lamenta n�o ter feito foi “Laranja mec�nica” (1971). Na �poca, uma unanimidade no mercado de cinema (chegou ao fim dos anos 1960 fazendo cerca de 20 trilhas por ano), foi consultado por Stanley Kubrick sobre a possibilidade de fazer a m�sica do filme.
S� que Kubrick ligou tamb�m para Leone, que disse que Morricone estava ocupado com “Quando explode a vingan�a” (1971). O cineasta americano declinou da oferta. Mas Morricone conta no filme que j� tinha terminado a trilha, estaria dispon�vel. Foi enganado por Leone, seu mais fiel parceiro.
O maestro perdeu algumas (n�o muitas) brigas art�sticas. Quando enviou a Brian De Palma nove ideias para um tema de “Os intoc�veis” (1987), disse a ele: “Por favor, n�o escolha a n�mero seis”. Foi justamente esta que entrou no filme. Tamb�m se recusou a trabalhar em “A miss�o” (1986), alegando que as imagens de Roland Joff� eram t�o bonitas que ele s� poderia piorar as coisas. Foi convencido do contr�rio.
E o filme de Joff�, por sinal, lhe deu a segunda indica��o ao Oscar de melhor trilha sonora. A aposta geral era de que o pr�mio seria do italiano. Morricone deixou a cerim�nia da Academia de Hollywood assim que o nome de Herbie Hancock foi anunciado como vencedor na categoria pela trilha de “Por volta da meia-noite”.
O Oscar s� veio em sua sexta e �ltima indica��o (e quase uma d�cada ap�s o Oscar honor�rio pelo conjunto da obra), por “Os oito odiados” (2015), uma sinfonia que surpreendeu Quentin Tarantino, que esperava algo como da fase Sergio Leone.
Morricone trabalhou at� o fim. Em agosto de 2018, uma parte da Ponte Morandi, em G�nova, desabou, matando 43 pessoas. O governo da Lig�ria encomendou a ele uma pe�a em mem�ria das v�timas para ser executada na inaugura��o da nova ponte, em 2020.
“Depois que recebeu o convite, ele me disse que n�o queria fazer”, comenta Marco, que mora no mesmo pr�dio em que os pais. “Pois no dia seguinte, �s 9h da manh�, passei na casa dele e meu pai estava trabalhando na pe�a. �s 15h j� tinha terminado”.
8 ½ FESTA DO CINEMA ITALIANO
Em Belo Horizonte, a mostra ser� exibida entre quinta (28/7) e quarta (3/8) no UNA Cine Belas Artes, Rua Gon�alves Dias, 1.581, Lourdes. O document�rio “Ennio, o maestro” ser� exibido nesta quinta (28/7), �s 18h, e no domingo (31/7), �s 16h. Programa��o completa no site. . Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia).
AVENTURA, DRAMA, COM�DIA
Confira outros t�tulos que integram a mostra em Belo Horizonte

» “Il buco”, de Michelangelo Frammartino (2021, 93min.)
Vencedor do pr�mio do j�ri do Festival de Veneza de 2021, o filme reconstitui a jornada realizada por jovens espele�logos nos anos 1960. O grupo encontra o fundo do Abismo do Bifurto, no interior da Cal�bria, uma das cavernas mais profundas do mundo. A aventura passa despercebida pelos habitantes de uma aldeia vizinha, mas n�o por um velho pastor do planalto, cuja vida solit�ria come�a a se entrela�ar com a do grupo.
.Ter�a (2/8), �s 20h e quarta (3/8), �s 18h

» “Leonora, adeus”, de Paolo Taviani (2022, 90min.)
O mais recente filme de Paolo Taviani, de 90 anos, dedicado ao irm�o Vittorio, morto em 2018, traz a morte como tema central. Ap�s permanecer por d�cadas em um cemit�rio de Roma, as cinzas do escritor Luigi Pirandello s�o transferidas para seu local de nascimento, na Sic�lia. No entanto, a transfer�ncia � marcada por acontecimentos surreais – alguns deles baseados nas pr�prias fic��es do autor.
.Sexta (29/7), �s 18h, domingo (31/7), �s 18h50 e quarta (3/8), �s 14h

» “Guia rom�ntico para lugares perdidos”, de Giogia Farina (2020, 106min.)
Com�dia rom�ntica em formato de road movie, o filme � estrelado por Clive Owen e Jasmine Trinca. Ela � Allegra, uma blogueira de viagens agoraf�bica, que nunca p�e o p� para fora de casa, sofre de ataques de p�nico e tem todas as fobias do mundo. J� ele � Benno, um alco�latra incontrol�vel. Vizinhos que se encontram ao acaso, eles entram em uma viagem de autodescoberta entre lugares perdidos e esquecidos
da Europa.
.Sexta (29/7), �s 16h e quarta (3/8), �s 20h