
Leia:'Que tal um samba?': as m�sicas do show de Chico Buarque com M�nica Salmaso
O convite ao samba para aliviar a dureza concreta cotidiana n�o � novidade na obra de Chico Buarque de Hollanda. Em 1966, ele j� avisava que "com o samba eu n�o compro briga, do samba n�o abro m�o". Mesmo sem saber como seria o amanh�, do alto dos 20 anos de idade, ele garantia: "Vem que passa teu sofrer, se todo mundo sambasse seria t�o f�cil viver." Mas, nos dias desleais que o pa�s atravessa, o recado foi refor�ado a partir da m�sica que d� nome � primeira turn� depois de cinco anos e prop�e "puxar um samba" capaz de "alegrar o dia, zerar o jogo, desmantelar a for�a bruta".
�ltimo dos grandes nomes da MPB a voltar a fazer shows depois do controle da pandemia, Chico Buarque escolheu a Para�ba, estado natal do parceiro Sivuca (homenageado no segundo bis com "Jo�o e Maria"), para o pontap� inicial de "Que tal um samba?". As cortinas se abrem pouco depois das 21h e, para surpresa dos f�s emocionados do cantor, M�nica Salmaso aparece sozinha no centro do palco. Volta ao s�culo passado para lembrar que, se estamos todos no mesmo barco, "n�o h� nada a temer".
Em "Todos juntos", da trilha do musical "Os saltimbancos", ela enfatiza os versos "E mais dia menos dia a lei da selva vai mudar". Inicia, assim, o envio de recados � situa��o social e pol�tica do pa�s, mas sem cita��o de nomes. Deixa ao p�blico a tarefa de vestir a carapu�a em quem ele achar mais conveniente. Os gritos de protesto antes e depois do show, al�m do L que o cantor faz com os dedos ao receber uma toalha com a face do candidato petista � presid�ncia, explicitam o lado escolhido.
O triunfo do sorriso
Mas "Que tal um samba?", o show, vai al�m da conjuntura pol�tica. Parece se concentrar em uma quest�o que transcende governantes e governados: o triunfo do sorriso. Afinal, ainda mais depois de uma pandemia, "� melhor ser alegre do que ser triste", como garante Vinicius de Moraes em "Samba da b�n��o", citado na parte final do show. E, se ainda ronda a amea�a descrita em "Passaredo" ("Toma cuidado que o homem vem a�"), acentuada pela ilumina��o vermelho-sangue de Maneco Quinder�, � preciso acreditar na possibilidade de "Bom tempo", outro dos cinco n�meros que a cantora faz ainda sem o seu anfitri�o. O mais not�vel dos n�meros iniciais � o mais dif�cil: "Beatriz", com as notas mais altas que um arranha-c�u, arranca aplausos em cena aberta.
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O tom algo solene de uma das tr�s parcerias com Edu Lobo presentes no repert�rio d� lugar, ent�o, ao despojamento da entrada de Chico para os versos finais de "Paratodos". "Sou um artista brasileiro", anuncia, iniciando com a int�rprete uma jornada �s ra�zes do pa�s ("O velho Francisco", "Sinh�") e aos duetos do pr�prio passado, da intensidade de "Sem fantasia" (que Chico dividiu com Maria Beth�nia em disco ao vivo de 1975) � gaiatice sincopada de "Biscate" (originalmente gravada com Gal Costa).

Diante de refer�ncias t�o fortes, Salmaso percorre caminho pr�prio. Alia � t�cnica impec�vel uma certa brejeirice. Com respeito e com afeto, parece ciosa do que ela representa neste show - as vozes que cantam as m�sicas do dono de uma das vozes po�ticas mais celebradas da MPB. N�o � pouco. Imagina dividir o palco com Chico Buarque? Sonho imposs�vel de nove entre dez cantoras brasileiras. Para Salmaso, que tantas vezes cantou Chico em lives e tem um disco inteiro de releituras do compositor, "Que tal um samba?" � sonho realizado.
A s�s com as f�s
M�nica Salmaso deixa o palco e, ainda que ladeado por m�sicos t�o tarimbados quanto discretos, Chico parece estar a s�s com elas, as f�s. Porque o tempo vai, o tempo vem, roda num instante e l� est�o "Samba do grande amor" e "Futuros amantes" a provocar suspiros, cantadas em un�ssono pelo p�blico predominantemente feminino. Os outros homens no teatro nos sentimos invis�veis, qui�� intrusos, ao testemunhar a �ntima cumplicidade de Chico e suas almas g�meas, de s�bito bandidas, soltas na vida com os versos provocativos de "Sob medida".
Sabemos que "As minhas meninas" homenageia as filhas do cantor e as notas musicais, mas mulheres de todas as idades se sentem um pouco representadas nesta e em outras composi��es. S�o as que combinam dois trunfos da obra de Chico Buarque: a alteridade e a perenidade. Nelas, observamos "o tempo meio que girando em falso, meio que transcorrendo sempre no presente, meio que sendo um ger�ndio", como est� escrito em "O s�tio", um dos melhores contos de "Anos de chumbo" (2021), o mais recente livro do vencedor do Pr�mio Cam�es.
Nas duas horas de sucessivos ger�ndios, a gente vai levando uma surpresa a cada resgate pouco �bvio (a setlist est� longe de uma compila��o de sucessos), vai se divertindo com a inser��o de uma hist�ria real de fake news em "Bancarrota blues", vai se arrepiando com a conversa da m�e de "Meu guri" com a gente insana que vocifera em "As caravanas". Um di�logo refor�ado pela inclus�o de "Deus lhe pague", talvez o momento mais cat�rtico de um show sem a explos�o provocada por "Geni e o zepelim", na turn� anterior. Mas que percorre todos os sentimentos e os transforma um s� sentimento: empatia. E empatia, sabemos, � quase amor.
N�o h� "Apesar de voc�", "Quem te viu, quem te v�" ou "Vai passar" no repert�rio de "Que tal um samba?". Mesmo que M�nica Salmaso realce versos como "Um dia ele vai embora pra nunca mais voltar" no bis dedicado a Mi�cha, Chico Buarque parece mais interessado em olhar, simultaneamente, para tr�s e para a frente. Tenta enxergar a possibilidade de um outro tempo. Como o pr�prio Chico cantou, h� exatos 50 anos, em plena ditadura militar, ao responder aos que o ofendiam "humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar", na m�sica-tema do filme de Cac� Diegues: "Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar, t� me guardando pra quando o carnaval chegar."
A alegria, tantas vezes adiada, contagia a despedida. A lembran�a festiva de "Noite dos mascarados", com a aproxima��o dos cantores e do p�blico sem as m�scaras outrora exigidas pela pandemia, � a senha da certeza. Amanh� tudo volta ao normal, deixa o dia raiar. E, se n�o for assim, seja o que Deus quiser.
“QUE TAL UM SAMBA?”
A turn� chega a Natal (RN), nesta sexta e s�bado (9 e 10/9). Percorrer� 11 cidades at� abril de 2023. BH recebe quatro shows, de 6 a 9/10, no Minascentro, com ingressos j� esgotados.