
''Sempre tivemos o gosto de tocar juntos, de compor e de nos surpreender com o que fizermos de novo''
Tony Belloto, m�sico
Em meados dos anos 1980, os Tit�s sa�ram em turn� no �nibus s� para eles. Na estrada, Paulo Miklos pegou o viol�o e come�ou a tocar as notas r� e d� sustenido, com estilo parecido ao do tema do filme “Tubar�o” (1975), de Steven Spielberg. Ficou repetindo sem parar. Branco Mello, sentado uma poltrona � frente de Miklos, levantou-se, virou-se para tr�s, mandou o colega continuar a tocar. E soltou: “Cabe�a dinossauro. Cabe�a dinossauro. Cabe�a, cabe�a. Cabe�a dinossauro”. E s�.
Miklos gostou. Continuou tocando e, com Mello, ficou por minutos e mais minutos repetindo aquilo. At� que, de novo, Branco, teve outra inspira��o: “Pan�a de elefante. Pan�a de elefante. Pan�a, pan�a. Pan�a de elefante”. Isso deu g�s � dupla, j� meio entediada com a can��o mon�tona que custava a sair.
Miklos e Mello pararam. Em sil�ncio, olharam um para o outro. Pensaram a mesma coisa: Pronto! temos a m�sica pronta. Mas n�o era qualquer can��o. Surgia ali a faixa-t�tulo de um dos �lbuns mais famosos da banda Tit�s. Na hora de gravar, “pan�a de elefante” virou “pan�a de mamute”. Foi a �nica altera��o.
Ping-pong na madrugada com Lob�o
Casos curiosos e engra�ados assim s�o comuns na trajet�ria da banda, que completa 40 anos em 2022. Hist�ria que os m�sicos contam com gosto � a de “T� cansado”, outra faixa do �lbum “Cabe�a dinossauro”.
Em uma das viagens ao Rio de Janeiro, na d�cada de 1980, Arnaldo Antunes e Branco Mello foram visitar o m�sico e amigo Lob�o. O trio passou a noite em claro, fazendo n�o se sabe o qu�... Nos shows do projeto “Tit�s ac�stico”, Branco, com um pouco de mal�cia, dizia que os tr�s ficaram apenas “jogando ping-pong”...
Fato � que, quando voltaram ao hotel, na manh� do dia seguinte, estavam exaustos. Entraram no quarto, e, sem conseguir dormir, pegaram o viol�o e come�aram a compor “T� cansado”, a m�sica que talvez tenha o sentido mais literal em toda a discografia da banda.
At� 1992, a banda somava oito integrantes. Verdadeira multid�o, se comparada a outros grupos de rock. Com essa quantidade de gente – criando can��es de alta qualidade po�tica e mel�dica, cumpre dizer –, � claro que atritos e hits surgiam aos montes. Contudo, o projeto coletivo dos Tit�s sempre superou ressentimentos, m�goas ou vaidades.
“A gente sempre teve firme essa ideia de grupo. Nas brigas para decidir quais m�sicas entrariam nos �lbuns, os fatores que decidiam eram, claro, a qualidade da m�sica e se ela estava de acordo com o que a banda representava, refletindo o esp�rito dos Tit�s, e n�o de um integrante espec�fico”, afirma o guitarrista Tony Bellotto, agora vocalista.
Devido a isso, reconhece Tony, muitas can��es de qualidade acabaram ficando de fora de �lbuns da banda. “Mas uma coisa � fato: quando a m�sica � boa, ela se imp�e”, ressalta o guitarrista.
Ao longo de quatro d�cadas, os Tit�s alcan�aram a gl�ria e acumularam sucessos. Gravaram 29 �lbuns, uma �pera rock (projeto at� ent�o in�dito no Brasil), fizeram o filme-document�rio “Tit�s – A vida at� parece uma festa” e ganharam a biografia hom�nima, escrita por H�rica Marmo e Luiz Andr� Alzer.
V�rias m�sicas da banda marcaram gera��es e s�o cantadas at� hoje, como “Epit�fio”, “Enquanto houver sol”, “Marvin” e “Son�fera ilha”, entre outras.
Com essa trajet�ria bem-sucedida, os Tit�s poderiam muito bem se dedicar somente aos hits do passado. No entanto, ressalta Bellotto, a vontade de se surpreender com o pr�prio trabalho n�o deixa a banda se acomodar. Exatamente por isso, eles lan�am agora o �lbum “Olho furta-cor”, dispon�vel nas plataformas digitais.
Dos integrantes da forma��o original, l� est�o Bellotto (guitarra e vocais), Branco (baixo e vocais) e S�rgio Britto (piano e vocais). Juntaram-se a eles o guitarrista Beto Lee, filho de Rita Lee e Roberto de Carvalho, e o baterista M�rio Fabre.
“Nunca encaramos a banda como emprego. Sempre tivemos o gosto de tocar juntos, de compor e de nos surpreender com o que fizermos de novo. Por isso, temos todos esses trabalhos, que, de certa forma, s�o um pouco diferentes dos anteriores”, afirma Bellotto.
Apocalipse, caos e Rita Lee
Discos-cr�nicas do tempo em que se vive. Essa sempre foi uma caracter�stica dos lan�amentos dos Tit�s. N�o � diferente em “Olho furta-cor”. Na faixa de abertura, “Apocalipse s�”, Branco Mello canta: “O c�u/ Espelho do ch�o/ Fuma�a/ Engole avi�o”/// “P� e cinza, cinza e p�/ N� e ru�na, ru�na e n�”.Depois do apocalipse tit�nico vem o “Caos”. Composta por Rita Lee, Beto Lee e Roberto de Carvalho especialmente para o disco da banda, a can��o traz versos que refletem o sentimento de muitos brasileiros nos dias de hoje.“T� pilhado e de saco cheio/ Da excresc�ncia calhorda /Da horda de Vossas Excel�ncias/ Cuspindo no microfone/ Cheirando a enxofre”, diz a letra.
No refr�o, surge o esp�rito rebelde de Rita: “Hay gobierno, soy contra/ Soy contra, soy contra/ Contra el gobierno”.
Outra letra forte � a de “Por galletas”. Escrita em espanhol, a can��o trata dos estupros cometidos por soldados da ONU integrantes da miss�o de paz no Haiti coordenada pelo Ex�rcito brasileiro entre 2004 a 2017.
Conforme a imprensa divulgou na �poca, soldados atra�am mulheres pobres de Porto Pr�ncipe oferecendo garrafas de �gua e biscoitos. Quando elas se sentiam seguras em companhia deles, o abuso era consumado.
N�o se pode dizer, contudo, que “Olho furta-cor” � �lbum de protesto. H� tamb�m baladas, como “Um mundo” e “Papai e mam�e”, inspiradas em quest�es intimistas e existenciais.
Sem contar as faixas “S�o Paulo 3” e “S�o Paulo 1”, que nasceram a partir de poemas do livro “Entre mil�nios”, de Haroldo de Campos.
“Foi em uma conversa com o diretor Felipe Hirsch que descobrimos alguns dos poemas de Haroldo. Isso seria para outro projeto que far�amos com o Felipe, mas que acabou n�o indo para a frente”, revela Bellotto.
Haroldo ficou na cabe�a de S�rgio Britto, que comp�s “S�o Paulo”. “Era para ser uma faixa s�, com o nome da cidade. Mas depois, quando o Britto foi mostrando a m�sica para a gente, parecia que havia uma m�sica dentro da outra. O jeito foi dividir. Da� 'S�o Paulo 1', '2' e '3'. Fomos emendando uma parte na outra e n�o sei onde 'S�o Paulo 2' foi parar”, conta Bellotto, rindo.
Raul Seixas na veia
O novo �lbum faz homenagem a Raul Seixas. Partindo de uma entrevista que o Maluco Beleza deu a Pedro Bial, dizendo que o rock de Elvis Presley tem tudo a ver com o bai�o de Luiz Gonzaga, os Tit�s compuseram a faixa “Raul”.A can��o sugere que h� semelhan�as entre americanos e nordestinos, comparando Andy Warhol a Mestre Vitalino, Jackson do Pandeiro a Chuck Berry, Bob Dylan a Patativa do Assar�, Bill Haley a Z� do Fole e Johnny Cash a Catulo da Paix�o Cearense.
No final, os Tit�s concluem: “Vai ver que o Mark Twain � o Ariano Suassuna”.

“OLHO FURTA-COR”
• Disco da banda Tit�s
• Est�dio Midas
• 14 faixas
• Dispon�vel nas plataformas digitais

UM TRIO NA MULTID�O
No in�cio, a banda Tit�s, criada em S�o Paulo, reunia Arnaldo Antunes, Branco Mello, Ciro Pessoa, S�rgio Britto, Nando Reis, Paulo Miklos, Andr� Jung, Marcelo Fromer e Tony Belloto. Ciro saiu, seguido por Jung, que foi substitu�do pelo baterista Charles Gavin em 1985. Em 1992, Antunes decidiu seguir carreira solo. Em 2001, Marcelo Fromer morreu, ap�s ser atropelado em S�o Paulo. No ano seguinte, Nando Reis deixou o grupo, tamb�m rumo � carreira solo. Em 2010, foi a vez de Charles Gavin e, em 2016, de Paulo Miklos. Quarenta anos depois, Branco Mello, S�rgio Britto e Tony Belloto seguem na pista.