
''Acredito na for�a e no poder desse Brasil africano, desse Brasil que sempre � capaz de se reerguer, porque ganhou, ao longo dos s�culos, uma din�mica pr�pria e tem um otimismo incorrig�vel. Ent�o, sim, acredito que � poss�vel, mas � preciso que o Brasil consiga enfrentar os grandes problemas que tem hoje''
Jos� Eduardo Agualusa, escritor
Lisboa – O escritor angolano Jos� Eduardo Agualusa, de 61 anos, � espectador atento do que se passa no Brasil. "� um pa�s inspirador por sua diversidade social e cultural", diz. Neste momento, por�m, o autor de obras como “As mulheres de meu pai”, “Esta��o das chuvas” e “Barroco tropical” s� tem olhos para as elei��es presidenciais, que, no entender dele, t�m a miss�o de retirar o pa�s do caminho do retrocesso.
De acordo com o escritor, a percep��o que se tem hoje � de que o fundamentalismo religioso tomou conta do Brasil, movimento semelhante ao que ocorre em alguns pa�ses africanos, como Mo�ambique, cen�rio de v�rias de suas obras.
"Vemos, no Brasil, uma esp�cie de fundamentalismo crist�o, muito semelhante ao fundamentalismo isl�mico de Mo�ambique", afirma. "� importante que se diga isso em p�blico, para que possa ser combatido. Esse fundamentalismo religioso tamb�m � uma esp�cie de fascismo."
Para o escritor, apesar do assanhamento dos militares, que mergulharam de cabe�a na pol�tica, n�o h� possibilidade de golpe no pa�s, como se cogita, por total falta de apoio internacional, em especial dos Estados Unidos. Otimista, diz acreditar que o Brasil ser� salvo pela cultura, que, nos �ltimos anos, vem sendo atacada pelo governo.
"N�o tenho nenhuma d�vida de que a cultura salvar� o Brasil, um pa�s que tem uma coisa extraordin�ria. Apesar deste per�odo, que, de alguma forma, obscureceu o horizonte, n�o eliminou a capacidade de rea��o", assinala.
Agualusa, que esteve recentemente no Piau� de f�rias — as primeiras, segundo ele, que tirou na vida —, enfatiza que o Brasil conta com grande respeito no mundo. "Talvez seja o povo que goza de mais simpatia no planeta. E essa simpatia tem a ver com a cultura. Tem a ver com o fato de as pessoas, no mundo inteiro, se identificarem com a m�sica brasileira, com o carnaval, com o candombl� e com toda a riqu�ssima tradi��o cultural largamente de matriz africana. Portanto, se o Brasil existe no mundo, existe por meio da cultura", afirma.
A seguir, trechos da entrevista que o escritor concedeu durante a apresenta��o da exposi��o com fotos de sua autoria no Espa�o Talante, na regi�o central de Lisboa.
O Brasil est� �s v�speras de uma elei��o muito polarizada. Como o senhor v� o pa�s hoje?
Estou otimista. Acho que o Brasil est�, espero eu, � beira de resgatar o Brasil. O pa�s foi sequestrado por uma esp�cie de anti-Brasil, e � preciso, agora, resgatar o Brasil que eu amo, que, no fundo, � o Brasil que a maioria das pessoas no mundo amam, o Brasil da mesti�agem, do encontro, da toler�ncia, da amizade, da can��o, da alegria. A percep��o � de que esse Brasil, nos �ltimos quatro anos, desapareceu, submerso pelo �dio, pela incompreens�o, pelo rancor. Espero que, agora, seja resgatado.
Na sua avalia��o, onde foi que o Brasil se perdeu para chegar ao ponto em que est� hoje?
H� muitas raz�es para explicar o que ocorreu, mas n�o tenho nenhuma d�vida de que uma delas tem a ver com um fen�meno que n�s temos, que � o fundamentalismo religioso. Isso n�o � exclusividade do Brasil, est� acontecendo tamb�m, por exemplo, em Mo�ambique. No Brasil, vemos o fundamentalismo crist�o; em Mo�ambique, o fundamentalismo isl�mico, que, na verdade, s�o absolutamente id�nticos. Esse fundamentalismo �, tamb�m, uma forma de fascismo.
Quais as consequ�ncias disso?
A partir do momento em que o Brasil se deixou sequestrar por esse fundamentalismo, come�ou essa guerra interna, de radicaliza��o. Portanto, embora seja dif�cil de dizer isso em p�blico no Brasil, tal � a for�a desse movimento fundamentalista, � preciso que seja dito e � preciso que esse fen�meno comece a ser combatido.
� poss�vel reverter esse movimento?
Acredito que o Brasil tem salva��o, porque acredito na for�a e no poder desse Brasil africano, desse Brasil que sempre � capaz de se reerguer, porque ganhou, ao longo dos s�culos, uma din�mica pr�pria e tem um otimismo incorrig�vel. Ent�o, sim, acredito que � poss�vel, mas � preciso que o Brasil consiga enfrentar os grandes problemas que tem hoje, e passa muito pelo risco da exist�ncia desse fundamentalismo religioso.
''O pa�s foi sequestrado por uma esp�cie de anti-Brasil, e � preciso, agora, resgatar o Brasil que eu amo, que, no fundo, � o Brasil que a maioria das pessoas no mundo amam, o Brasil da mesti�agem, do encontro, da toler�ncia, da amizade, da can��o, da alegria''
Jos� Eduardo Agualusa, escritor
Fala-se muito da possibilidade de um golpe no Brasil. O senhor acredita que o pa�s pode retornar a tempos sombrios como os de uma ditadura?
N�o acredito, porque a possibilidade de um golpe n�o tem sustenta��o internacional. Imagino que os Estados Unidos, que, de uma forma ou de outra, apadrinharam ao longo de d�cadas muitos golpes no continente americano, n�o est�o nada interessados em que isso aconte�a agora. Essa posi��o deve ter sido transmitida de forma veemente ao atual governo brasileiro. Ent�o, n�o acredito que haja condi��es para um golpe militar no Brasil de agora.
A cultura vem sendo atacada de todas as formas no Brasil por ser um ponto de resist�ncia contra retrocessos e movimentos autorit�rios. Como o senhor avalia isso? A cultura vai salvar o Brasil?
N�o tenho nenhuma d�vida de que a cultura salvar� o Brasil, um pa�s que tem uma coisa extraordin�ria. Apesar deste per�odo, que, de alguma forma, obscureceu o horizonte, mas n�o eliminou a capacidade de rea��o. O Brasil goza de uma grande simpatia no mundo. Talvez seja o povo que goza de mais simpatia no planeta. E essa simpatia tem a ver com a cultura. Tem a ver com o fato de as pessoas, no mundo inteiro, se identificarem com a m�sica brasileira, o carnaval, com o candombl� e com toda a riqu�ssima tradi��o cultural largamente de matriz africana. Portanto, se o Brasil existe no mundo, existe por meio da cultura.
O senhor esteve de f�rias recentemente no Brasil, no Piau�. O pa�s o inspira?
Sim, muito. Por isso digo que, apesar de tudo o que aconteceu, de o Brasil ter regredido em termos sociais e em termos culturais, inclusive, ainda mant�m uma for�a e uma pujan�a. N�o perdeu, est� l�, continua, mant�m essa alegria e, sobretudo, essa capacidade de receber o outro, que � importante para o turismo.
''A cultura salvar� o Brasil, um pa�s que tem uma coisa extraordin�ria. Apesar deste per�odo, que, de alguma forma, obscureceu o horizonte, mas n�o eliminou a capacidade de rea��o. O Brasil goza de uma grande simpatia no mundo. Talvez seja o povo que goza de mais simpatia no planeta''
Jos� Eduardo Agualusa, escritor
Autor exp�e em Lisboa seus “escritos” com a c�mera
A Ilha de Mo�ambique sempre esteve no imagin�rio de Agualusa, que a descobriu por meio da poesia de Rui Knopfli, Mia Couto, Nelson Sa�te, Virg�lio de Lemos, entre outros. Os la�os foram se estreitando atrav�s das fotografias do mesmo Rui Knopfli. A intimidade com a ilha era tamanha que, quando ele desembarcou l� pela primeira vez, foi como se tivesse chegado a um territ�rio que j� era dele, meio sonhado, meio imaginado, como ressalta.
Os la�os entre Agualusa e a Ilha de Mo�ambique foram selados de vez em 2018. A segunda filha, Kianda Ainur, nasceu l�, em um hospital p�blico, cuja estrutura era bem prec�ria. N�o por acaso, esse per�odo ocupa todo o espa�o nas fotografias e nas poesias que o escritor fez quando estava � espera do rebento e que, agora, est�o expostas em Lisboa, no Espa�o Talante.
"Essas imagens s�o um tributo � ilha e ao que ela representa para mim: um lugar de encontro de culturas, de concilia��o e de paz. Ilustram, portanto, uma hist�ria de amor", diz.
As fotos s�o todas em preto e branco, com exce��o de uma, a que retrata a gravidez da mulher, Yara. "Fui captando as imagens enquanto esperava pela minha filha", conta o escritor.
As imagens tamb�m fazem parte de um livro com poesias e encaderna��o especial. As capas da publica��o s�o cobertas por capulanas, tecidos mo�ambicanos com forte tradi��o familiar. Agualusa lembra que as fotos foram colhidas em suas redes sociais pela editora do livro, L�cia Bertazzo. "Um material muito especial, que merece ser visto", afirma ela.
Mia Couto: "Agualusa escreveu hist�rias com luzes e sombras"
A exposi��o “Gram�tica do instante e do infinito”, que vai at� 23 de outubro, mereceu um depoimento do amigo Mia Couto, mo�ambicano de nascimento.
"Ler a luz, ouvir as sombras. N�o vejo. Leio estas fotografias. Leio-as como se fossem um livro, como se contassem uma hist�ria. O meu encantamento � o mesmo que me assalta perante as narrativas liter�rias do Agualusa. Diz-se que uma imagem vale mil palavras. O inverso tamb�m � verdade: uma palavra pode dizer mais do que mil imagens. Neste caso, n�o sei se vejo, se escuto. N�o sei de quem � a autoria do olhar: se sou eu que vejo ou se sou eu quem � contemplado. Entre a ilha dos escritores e o escritor de ilhas, Jos� Eduardo Agualusa escreveu hist�rias com luzes e sombras. As paisagens e os rostos s�o a frente e o verso da mesma p�gina."
"Ler a luz, ouvir as sombras. N�o vejo. Leio estas fotografias. Leio-as como se fossem um livro, como se contassem uma hist�ria. O meu encantamento � o mesmo que me assalta perante as narrativas liter�rias do Agualusa. Diz-se que uma imagem vale mil palavras. O inverso tamb�m � verdade: uma palavra pode dizer mais do que mil imagens. Neste caso, n�o sei se vejo, se escuto. N�o sei de quem � a autoria do olhar: se sou eu que vejo ou se sou eu quem � contemplado. Entre a ilha dos escritores e o escritor de ilhas, Jos� Eduardo Agualusa escreveu hist�rias com luzes e sombras. As paisagens e os rostos s�o a frente e o verso da mesma p�gina."
Agualusa ressalta que sempre est� com a c�mera nas m�os. E os registros que faz s�o fundamentais para que possa desenvolver suas hist�rias. Isso ficou evidente em “As mulheres do meu pai'', em que o autor conta a hist�ria de Laurentina, que tenta reconstruir a vida do pai m�sico. Boa parte do caminho percorrido pela personagem foi feito de carro pelo escritor. Fotografia e escrita est�o t�o interligadas que uma complementa a outra, reconhece ele.
O Espa�o Talante, que abriga a exposi��o, fica dentro da Livraria Ler Devagar. A curadoria do centro cultural � do ator mineiro Antonio Grassi e da mulher dele, Ci�a Castello.