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Estado de Minas PENSAR

Nuno Ramos: 'O Brasil � um pa�s muito deformado'

Artista pl�stico lan�a livro que nasceu durante montagem de exposi��o no CCBB de BH e re�ne ensaios sobre a realidade brasileira


29/07/2022 04:00 - atualizado 29/07/2022 07:58

Nuno Ramos em 2016, durante montagem de instalação no CCBB
Nuno Ramos em 2016, durante montagem de instala��o no CCBB, g�nese do livro 'Fooquedeu: ensaios e observa��es originais sobre a realidade brasileira' (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
“Os artistas s�o as antenas da ra�a”, escreveu Ezra Pound em algum lugar de sua obra. Para o poeta norte-americano, arte n�o se faz s� com criatividade. � preciso tamb�m sintonia com a �poca: saber captar os sinais que est�o no ar.

 

O ensinamento de Pound poderia servir de ep�grafe para uma futura biografia de Nuno Ramos. Antenado ao seu tempo, o artista pl�stico, compositor e escritor paulista vem construindo, ao longo das �ltimas d�cadas, algumas das mais interessantes obras de sua gera��o. O leitor certamente j� deve ter trombado com algumas delas. Aqui, por conta do espa�o, fico em apenas dois exemplos.

 

� dele “111”, exposi��o de 1992, que ocupou duas salas em uma galeria em S�o Paulo e criada a partir do impacto do artista diante do massacre de 111 homens encarcerados no pres�dio do Carandiru. J� a segunda obra � bem mais recente. E aconteceu em 2020, durante a pandemia.

 

Nuno parou, literalmente, Avenida Paulista, em S�o Paulo. Um cortejo de ve�culos se deslocou em sentido inverso ao usual, em marcha � r�. Nele, os motoristas completaram um trajeto que partiu da frente do edif�cio da Fiesp e terminou no cemit�rio da Consola��o.

 

Durante o percurso, sempre usando a marcha � r�, houve uma dramaturgia sonora composta, em parte, de sonoridades emitidas pelos ve�culos que remetem ao som de respiradores utilizados no tratamento de pacientes com coronav�rus, que necessitam de ventila��o mec�nica em unidades de terapia intensiva (UTI). A performance/filme foi feita em colabora��o com Teatro da Vertigem e filmada por Eryk Rocha.

 

Mas, aqui, aten��o: engana-se quem acha que Nuno fa�a arte engajada, mero documento hist�rico. Seu trabalho, que vai da performance � fic��o, passando pelos v�deos, m�sica, teatro e poesia, � muito mais do que isso. � pol�tica no sentido de que simplesmente nunca perdeu o contato com o real. Um real tr�gico, injusto, de um estranho pa�s desandado chamado Brasil.

 

Seu mais recente livro, “Fooquedeu: Ensaios e observa��es originais sobre a realidade brasileira”, � mais uma bela (e triste) prova disso. Escrito a partir de anota��es que come�aram a ser feitas ainda em 2016, durante a montagem de uma instala��o que fez no CCBB de Belo Horizonte, � um di�rio da barb�rie do nosso cotidiano.

 

Leia: S�rgio Abranches: 'Escrever sobre o �dio foi quase uma imposi��o'  

 

Partindo da hist�ria real de um morador em situa��o de rua que morreu eletrocutado quando se banhava em um dos chafarizes da Pra�a da Liberdade, Nuno escancara nossa infinita, e c�nica, capacidade de naturalizar a viol�ncia contra os mais pobres. 

 

Morando atualmente em Berlim, Nuno conversou com o Pensar do Estado de Minas. Na entrevista, falou do seu novo livro, da paix�o por Carlos  Drummond de Andrade, relembrou sua amizade com Am�lcar de Castro e de seu ceticismo com o futuro do pa�s. “A distribui��o de renda no Brasil � uma pornografia. Algo que faz com que a gente n�o ande. Temos uma bomba rel�gio contra n�s”. 

 

A capa do seu novo livro mostra o CCBB da Pra�a da Liberdade. Na �poca, voc� estava montando uma exposi��o l� e presenciou a morte de um morador de rua. A partir da� voc� faz uma reflex�o sobre a barb�rie do nosso cotidiano. Me lembrei do ceticismo de “Alguma Poesia”, do Drummond, um poeta que, sei, voc� l� muito. Seu livro tamb�m � bem c�tico em rela��o ao pa�s. Ou estou enganado?

 

Pode ser. Nunca tinha pensado nisso: da rela��o entre o meu livro e “Alguma poesia”. Voc�, falando agora, me dou conta de que os dois livros falam da pra�a e o livro dele tamb�m tem um tom c�tico.

 

Drummond � de fato uma coisa �nica, muito singular. Sua obra � mesmo inesgot�vel. Ele tem esse f�lego intermin�vel: parece realmente um veio de ouro no qual voc� n�o consegue chegar ao fim nunca. Acho a obra dele muito estranha. Uma poesia muito ambiciosa.

 

A gente, em geral, tende um pouco pela conten��o, para a mod�stia num lugar, num pa�s, onde a arte, muitas vezes sem p�blico, acaba n�o fazendo muito sentido. 

 

Esta aus�ncia de sentido da arte, como voc� j� chamou a aten��o outras vezes, e tamb�m est� no livro, est� relacionada com o baix�ssimo n�mero de pessoas que t�m acesso a civiliza��o, arte, literatura,  educa��o e cultura no Brasil. Estamos fadados a ser um pa�s onde a arte ser� sempre para poucos?

 

� dif�cil saber. N�o saberia te responder. Esta aus�ncia de p�blico d� um sentimento amb�guo para o artista: por um lado, temos muita liberdade. Podemos fazer o que quiser, j� que n�o h� press�o.

 

J�, por outro lado, vai ficando cada vez mais esquisito: quando voc� soma tudo o que fez, sua arte, tudo � muito isolado. Apesar de voc� sair no jornal, na m�dia, voc� sabe que n�o atinge nunca muita gente. A quest�o toda � que o Brasil � um pa�s muito deformado. Qualquer coisa que voc� diga tem uma peculiaridade que vem da distribui��o da renda. Do fato de a maioria n�o ter acesso aos bens culturais do pa�s.

 

Como o pa�s � loucamente desigual, doentiamente desigual, tudo � diferente. Dou um exemplo: dizer um simples “bom-dia” aqui na Alemanha, onde estou morando, � diferente de dizer “bom-dia” no Brasil. � um outro dia, � um outro bom. Porque n�o � s� a renda. � uma quest�o de acesso ao b�sico: � vida, ao direito, � calma, ao batimento card�aco, � civiliza��o. Tudo isto, com o passar do tempo, vai enlouquecendo a gente.

 

Apesar de j� ter melhorado muito, eu tenho, no entanto, um sentimento de isolamento: que vem da minha classe, da minha cor, da minha escolha sexual. J� que tudo isto tamb�m entrou em quest�o. Acho que o principal � mesmo esta regress�o universal que a gente est� vivendo no Brasil. Com exce��o de alguns novos grupos que t�m surgido, que lutam contra o racismo, a luta feminina, pelo direito das minorias, o Brasil s� tem caminhado para tr�s.

 

No livro senti um certo tom de balan�o de vida. Nuno: como � chegar aos 60?

 

A minha expectativa era de um caminho diferente do que a gente est� vivendo hoje. N�o imaginava que f�ssemos viver na pol�tica o que estamos vivendo hoje. E n�o adianta botar a culpa em ningu�m, voc� p�r o dedo na cara de ningu�m, porque n�o vai resolver nada. 

 

O irracionalismo da era das fake news e da p�s-verdade colocou em xeque as democracias ocidentais. No Brasil o estrago foi maior?

 

No Brasil � pior, sim. Eu acho que o pa�s, antes do impeachment da Dilma, j� era um lugar com problemas graves, muito s�rios. E a gente se recusava a ver, especialmente a viol�ncia contra o pobre. E, como j� disse, a distribui��o de renda, que no Brasil � uma pornografia.

 

Algo que faz com que a gente n�o ande e n�o chegue a nenhum lugar. Temos uma bomba rel�gio contra n�s. Claro, aqui na Alemanha tamb�m existe este discurso irracional. Quando cheguei, fiquei muito impressionado, por exemplo, com a for�a que o movimento contra a vacina tinha tamb�m por aqui.

 

Leia: O dia em que Gabriel Garc�a M�rquez puxou a orelha dos europeus  

 

Existe mesmo uma coisa meio neonazista aqui. E que est� o tempo todo batendo � porta. Agora, no Brasil foi diferente: ter tido a maior lideran�a pol�tica nacional conspirando contra a vacina, boicotando a compra de vacinas � muito dif�cil de entender. E isso n�o teve em nenhum lugar do mundo. E te confesso: at� hoje n�o entendi direito.

 

Voc� n�o parece otimista com nosso futuro...

 

N�o sei. Essas coisas, assim como vieram r�pido, de repente tamb�m v�o. N�o sei. O que eu acho � que hoje vivemos uma esp�cie de autofagia. Nos �ltimos trinta anos, fomos incapazes de ter promovido mudan�as sociais mais significativas.

 

Acho que fomos mais conservadores do que dever�amos ter sido. Ter�amos que ter realizado uma anistia bem-feita, distribu�do de verdade a renda, ter resolvido as desigualdades raciais, o problema da seguran�a.

 

Esta in�rcia acabou implodindo o mundo pol�tico. E abriu a porta para este terror que hoje a gente vive.  A naturaliza��o com que a gente trata a viol�ncia � uma coisa para mim muito chocante. A viol�ncia foi institucionalizada.

 

Somos um pa�s muito mais violento do que ach�vamos que f�ssemos...

 

Exatamente. Muito mais violento, muito mais racista, muito mais agressor. Muito mais sem vergonha de ser violento. Aquilo que estava latente aconteceu.

 

Sabe, eu antes tinha um sentimento de que haveria uma certa possibilidade de fus�o, de intera��o.

 

Agora n�o. Isto tudo me parece muito confuso. Quer dizer: antes t�nhamos algumas tentativas de universaliza��o que agora me parecem meio fragmentadas. 

 

Eu me lembro de voc� em Belo Horizonte nos anos 1990, na turma de artistas pl�sticos que orbitava em torno do Am�lcar de Castro. Poderia lembrar um pouco dessa �poca?

 

Olha, na verdade � um conjunto de coisas. Quando n�s �ramos muito meninos, eu me lembro que teve um ano que a gente fez um livro sobre o Am�lcar. N�s conseguimos um patroc�nio e ent�o fizemos um livro. E �amos a BH para encontr�-lo.

 

Naquela �poca n�o era t�o f�cil fazer livro, n�? Foi quando eu o conheci. Mais tarde, eu tive uma rela��o pessoal significativa, ao menos para mim, com ele. Quando ia at� Minas, me encontrava com ele. Eu expus muito em Minas, sabe? Trabalho hoje com o Allen Roscoe, que era quem produzia as pe�as do Am�lcar. O Allen � um pouco o herdeiro do Am�lcar.

 

Ent�o, eu estive com o Am�lcar v�rias vezes. Ele foi uma pessoa muito generosa comigo e disse coisas muito bonitas sobre meus quadros, das quais me lembro sempre. Lembro que uma vez ele foi a uma exposi��o minha e me disse: “Eu vim para n�o gostar, mas gostei. Eu n�o vejo luta entre os elementos: vejo o amor entre eles”. Frases que eu nunca esqueci.

 

Lembro de uma outra exposi��o que fiz em BH com umas pe�as de areia socada. Ele batia na pe�a e dizia: “Esse � bom, esse � bom”, e eu com medo que ele quebrasse a pe�a. Ele ainda esteve em casa uma vez, l� em S�o Paulo.

 

Eu at� comprei uma cacha�a para ele. N�o entendo nada de cacha�a, e a� comprei uma daquelas cacha�as caras. E, claro, ele n�o gostou: preferiu a mais barata, a branca. A �ltima vez que estive com ele foi numa exposi��o na Gesto Gr�fico, em Belo Horizonte.

 

Ele estava expondo e veio, ent�o, uma rep�rter, meio desinformada, que me confundiu com ele. E ent�o a gente ficou brincando, tirando sarro. Ele disse: “Eu sou o Nuno Ramos”. E eu entrei na brincadeira. Am�lcar era uma pessoa muito generosa. Gostava muito daquele seu jeito muito simples.

 

Leia: Em 'Outono', Karl Ove Knausg�rd derrapa no pr�prio cansa�o provinciano  

 

Am�lcar � uma refer�ncia para voc�?

 

Ele foi importante para mim neste sentido. Eu me senti recebido. Por ele e pela Mira Schendel. Da gera��o mais velha que a minha, acho que os mais importantes foram os dois. Mais do que ningu�m, ele e a Mira me trataram como artistas. Foram generosos. Eu tenho uma lembran�a muito carinhosa deles. 

 

* Jo�o Pombo Barile � jornalista e redator do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais

 

Trecho

“Foi o que deu, vale pelo que n�o diz, conformando-se com o que n�o sabe, pois ningu�m sabe o que faz, muito menos o que fez, e ainda menos a medida proporcional entre o poss�vel e o realizado. Mas percebo agora que, se pronunci�-la bem r�pido [Mira n�o faria isso, pois enrolava-se nas consoantes], ‘foi o que deu’ fica ‘fodeu’, ou, mais precisamente, um misto de ‘fuck’ com ‘fodeu’. Fooquedeu. Nem que seja a �ltima coisa que eu diga, � exatamente o que quero dizer.”

 

“Fooquedeu”

De Nuno Ramos

Todavia

208 p�gina

R$ 69,90 


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