
Desse modo, a Vila Rica do final do s�culo 18 representaria o equivalente a uma vanguarda para a sociedade civil em constitui��o no Brasil colonial. Com a voz do povo, gritava-se pela independ�ncia que viria tr�s d�cadas depois, sob a batuta da elite portuguesa, mais precisamente atrav�s de seu pr�ncipe, imperador – sem a rep�blica.
Sob esse prisma, � f�cil associar o malogro do movimento ao anseio social pela sua autonomia. A vit�ria seria da repress�o da elite, da oligarquia, contrariando a verdadeira vontade popular.
Ali�s, como mito, pode soar bonito a derrota dos inconfidentes, romantizando a tentativa de emancipa��o de uma sociedade arredia, que n�o se curvava �s regras que lhe eram impostas.
A independ�ncia e a rep�blica perdiam ali, mas a dignidade conquistada com o esfor�o revolucion�rio de ent�o ficou para sempre. Fica obscurecido, ent�o, o que havia de mais retr�grado por estas terras. Contudo, � necess�rio que se ponha na mesa a faceta reacion�ria da sociedade colonial.
“O pasquim do Calambau: inf�mia, s�tira e o reverso da Inconfid�ncia Mineira” chama a minha aten��o por este motivo. O livro da Ch�o Editora foi organizado por �lvaro de Ara�jo Antunes e Luciano Figueiredo, jogando luz � eventual resist�ncia da sociedade colonial. A obra, uma verdadeira rel�quia, mostra o tom sat�rico, jocoso e popular sobre a avers�o a um dos movimentos mais conhecidos do Brasil Col�nia.
Para quem n�o sabe, pasquim � como um panfleto an�nimo, pendurado em lugares p�blicos, geralmente de grande movimento. Nele encontramos textos ou desenhos que normalmente satirizam uma determinada personalidade de sua �poca.
Trata-se, enfim, de interessante recurso de mobiliza��o de opini�o p�blica – uma das �nicas formas de tentar desmoralizar algu�m de prest�gio e poder econ�mico. Normalmente, as pessoas se aglomeravam ao redor do documento durante a sua leitura, feita por quem detinha a arte das letras.
O pasquim foi muito utilizado como artif�cio durante a Idade M�dia na Europa. Contudo, chegou a circular por aqui, na sociedade colonial. E este � o ponto interessante do livro da Ch�o Editora. Ao ser resgatado, “O pasquim do Calambau” � uma importante fonte documental da organiza��o social de ent�o.
VILA RICA E O PASQUIM
Contextualizando, Calambau era distrito de Mariana, hoje cidade de Presidente Bernardes. O pasquim aqui mencionado tem autoria atribu�da a Domingos de Oliveira �lvares, contando com a ajuda de Raimundo de Penaforte. O libelo, totalizando tr�s vers�es id�nticas, foi pendurado em lugares estrat�gicos de Calambau, atacando Manoel Caetano Lopes de Oliveira, de maneira sat�rica.
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Segundo relatado, a motiva��o do ataque � um entrevero entre Domingos e Manoel. Este �ltimo foi acusado publicamente pelo primeiro, no dia 4 de junho de 1794, de tentar usurpar suas terras em um cercamento que fazia atr�s capela de Santo Ant�nio, em Calambau.
Domingos, ao se dar conta da suposta investida de Manoel, grita em pedido de socorro: “Voc� quer roubar as minhas terras! Aqui del-rei!”. Testemunhas afirmam que Manoel, acompanhado de seus escravizados, tentou conversar. De toda forma, a sua investida no terreno, para a constru��o de uma casa, foi interrompida naquele instante.
No dia 14 de julho seguinte, Calambau amanhece com os pasquins pendurados em lugares estrat�gicos do povoado. Por seu conte�do, fica f�cil imaginar as rea��es dos que ali passavam, entre risos, esc�rnio e espanto, em vistas do que era dito sobre Manoel Caetano.
Diante disso, resta a pergunta: o que dava aos autores do pasquim a seguran�a de espalhar, pelo povoado, informa��es difamat�rias sobre uma das figuras mais conhecidas da regi�o? Certamente, este � o ponto mais significativo. O sargento-mor Manoel Caetano Lopes de Oliveira era c�lebre fazendeiro na regi�o do Rio das Mortes.
Poderoso, era dono de propriedades e cativos. Todavia, em seu passado pesava algo que, imaginamos, fazia parte do repert�rio local, tendo sido resgatado pelo pasquim.
“Fortes inj�rias eu passei
E todos os meus parentes
E todos n�s padecemos
Enforcado o Tiradentes”
O pequeno fragmento acima, retirado do pasquim, narra como se Manoel Caetano estivesse confessando o terr�vel crime de participa��o do movimento de 1789. Em um dos versos isso se torna mais enf�tico: “Eu fui dos inconfidentes”.
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FIDELIDADE � COROA
Manoel Caetano n�o foi inconfidente. Contudo, como demonstra o posf�cio dos professores �lvaro Antunes e Luciano Figueiredo, ele mantinha rela��es com alguns dos participantes da Inconfid�ncia Mineira, antes do movimento, incluindo Joaquim Jos� da Silva Xavier, o Tiradentes. E, neste �nterim, isso bastava para um julgamento popular.
O pasquim motivou a abertura de uma devassa. Um dos pontos mais interessantes do livro � a organiza��o dos depoimentos de diversos moradores – depoimentos que montariam o processo movido por Manoel Caetano contra Domingos �lvares e Raimundo Penaforte.
Atrav�s dele notamos a quantidade de pessoas que se aglomeraram ao redor dos libelos para a leitura p�blica. Os difamadores sabiam que contavam com o apoio popular de seus leitores.
Diferentemente do que a boca pequena imaginaria, naqueles tempos a Inconfid�ncia Mineira n�o era celebrada. Pode n�o ser novidade para alguns, mas a documenta��o deste fato � de suma import�ncia.
Os envolvidos diretamente no movimento foram tratados como traidores, dignos de desconfian�a que espalhariam a desordem por toda a col�nia. A riqueza de “O pasquim do Calambau” est� nesta afirma��o do anseio popular pela manuten��o de uma condi��o colonial – ainda que isso seja feito por desconhecimento dos objetivos dos inconfidentes.
O temor popular pelo que viria com uma independ�ncia e amea�a aos costumes faz-se gritante – a ideia de rep�blica era veementemente recha�ada.
A apresenta��o do manuscrito do pasquim, da devassa e trechos do processo, feita pelos organizadores da obra, deixam em evid�ncia esse aspecto reacion�rio da col�nia.
Explicam com bastante exatid�o os processos enriquecendo com detalhes hist�ricos cada um dos personagens envolvidos, suas posi��es e disputas derivadas das assimetrias sociais e econ�micas. Da mesma maneira, dimensionam a relev�ncia de tais diferen�as utilizando a Inconfid�ncia como refer�ncia para a sua an�lise.
O progressismo atribu�do hoje � Inconfid�ncia Mineira n�o corresponde � realidade do que se via na �poca. Nota-se como at� mesmo camadas mais baixas da sociedade, como Domingos �lvares, mantinha-se fiel � Coroa Portuguesa – s�o diversas as men��es no pasquim � trai��o � rainha Maria I, de Portugal, como neste fragmento:
“Monarca esclarecida senhora
Esses b�rbaros com soberba
Querem ser reis
Na sua monarquia
Vossa Alteza e senhora
N�o vos pare�a ser est�ria
E o correio Tiradentes
Andava com os pap�is de corriola
Veja a Vossa Majestade
As leis dos insolentes
Bem � que se enforcasse
O correio Tiradentes”
Embora o documento, por si s�, n�o seja suficiente para julgar a Inconfid�ncia Mineira como movimento de elite, mostra-se bastante s�lido para questionar a unanimidade e o anseio pela independ�ncia de ent�o.
As suas ideias n�o eram partilhadas pela sociedade como um todo. Talvez, neste caso, mais do que nunca, devemos celebrar a Inconfid�ncia n�o como uma repress�o bem sucedida, mas, sim, como uma revolu��o fracassada. Cultivar o imagin�rio de progressismo destes tempos realmente faz bem para a consolida��o de uma mem�ria em nossa sociedade. Entretanto, devemos ir al�m.
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Devemos reconhecer que o discurso reacion�rio opera em franca liberdade no interior da sociedade colonial, nos segmentos sociais mais inesperados. Da mesma forma que hoje, para entender a sociedade brasileira, � imprescind�vel perscrutar esse tom reacion�rio, identificando onde ele � cultivado.
Enfim, o Brasil � mais complexo do que se imagina. A hist�ria de Minas Gerais, desde sempre, mostra isso muito bem.
* Faustino Rodrigues � psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais
“O pasquim do Calambau: inf�mia, s�tira e o reverso da Inconfid�ncia Mineira”
�lvaro de Ara�jo Antunes e Luciano Figueiredo (org.)
Ch�o Editora
231 p�ginas
R$ 48,29
