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Estado de Minas PENSAR

Em 'Outono', Karl Ove Knausg�rd derrapa no pr�prio cansa�o provinciano

Novo livro do escritor noruegu�s, o primeiro de uma s�rie de quatro, cont�m ensaios a respeito do cotidiano e pode frustrar o leitor pela estreiteza do projeto


08/07/2022 04:00 - atualizado 07/07/2022 22:35

Karl Ove Knausgård
Knausg�rd no primeiro livro ap�s o projeto liter�rio 'Minha luta': alguma perspic�cia, muitas obviedades e conclus�es apressadas (foto: Federico Gambarini/AFP)
Tr�s cartas gentis para uma filha ainda n�o nascida pontuam os ensaios a respeito de temas do cotidiano no novo livro do escritor noruegu�s Karl Ove Knausg�rd, “Outono”.
 
� o primeiro de uma s�rie de quatro, a respeito das esta��es do ano, e o primeiro a ser traduzido depois da monumental s�rie de seis volumes enfeixados sob o t�tulo geral de “Minha luta”.
 
Os leitores que acompanharam com interesse e sofreguid�o os intervalos cada vez mais espa�ados entre o lan�amento de um e outro dos volumes da s�rie anterior, � espera da apoteose em que a escrita afinal se realiza num belo projeto liter�rio de sucesso, devem sentir talvez misto de alegria e frustra��o com o novo t�tulo.
 
Alegria pelo reconhecimento do escritor, da escrita, por saber que ele continua a escrever depois da imensa catedral erguida com os seis livros da s�rie passada, ao fim da qual anunciou que n�o escreveria mais. Frustra��o por conta da pequenez e estreiteza do projeto atual. 

Nascido em Oslo, em 1968, Knausg�rd n�o � um autor qualquer. Fato. Seu mecanismo para engajar o leitor envolve uma capacidade de se ater a min�cias muito triviais e retirar da banalidade uma esp�cie de observa��o inovadora, esteticamente desafiadora, e n�o se restringir de contar as pr�prias limita��es (intelectuais, manuais ou de que natureza for), expondo-se de um modo �s vezes brutal.
 
A pretexto de escrever cartas para uma filha em gesta��o, a quarta da fam�lia, ele aproveita para intercalar com ensaios a respeito de assuntos t�o �bvios como vespas, ou o sol, gasolina, sangue que corre pelas veias, raios durante tempestades ou v�mito, mijo, vasos sanit�rios. 

Tudo merece aten��o, mas ao contr�rio do in�cio da s�rie anterior, em que ele se debru�a sobre a morte e o morrer para tirar da� quase que um tratado em forma de romance, o problema aqui nesse novo livro � que o alcance se torna muito mais restrito.
 
� como se, em vez de olhar para o mundo e para a grandeza que o cerca — e se algo, o fato � que o escritor p�de conhecer muito do mundo, em viagens de divulga��o do livro ou atendendo a convites —, ele tivesse se cansado demais (quase lasco aqui um pregui�oso para definir a postura assumida agora) e se restringisse a observar apenas o que est� realmente muito pr�ximo. No quintal de casa, no m�ximo.

Claro que, em se tratando do observador perspicaz, alguma coisa de �timo sempre ocorrer�. Mas o leitor certamente come�a a se perguntar se ele n�o ficou caseiro demais, pacato al�m da conta. Na primeira das cartas, Knausg�rd faz a pergunta: “O que faz com que valha a pena viver?”.
 
Por se dirigir a uma filha no futuro, que provavelmente se interessar� pela vida pregressa do pai, ele talvez tenha raz�o em postular quest�es como essa. � uma pergunta, ele diz, que as crian�as normalmente n�o fazem. Para elas, a vida est� dada, fala por si: “N�o importa se aquilo que diz � bom ou ruim”.
 
� um alerta interessante, de um pai talvez preocupado em ensinar � filha futura a import�ncia de se atentar para certos aspectos, aprender a enxergar as tessituras e camadas que se apresentam com a vida. Anh�m, est� bom. 
 

Mas ent�o vem uma ladainha a respeito da textura das ma��s, ou a observa��o sobre o comportamento de vespas, ou considera��es sobre o destino dos sacos pl�sticos ou o que fazer com os dentes ca�dos dos filhos, ou papo a respeito da multiplica��o das r�s numa estrada a certa altura do ano e tudo parece t�o pueril que beira o in�til.
 
Certo, � livro a meio caminho entre ser a apresenta��o do mundo para a filha quando jovem, e tamb�m quando jovem adulta, no entanto � ainda texto a ser consumido por milhares de leitores curiosos e sem rela��o direta com a primeira inf�ncia ou com a juventude, necessariamente, e para eles tamb�m o volume se dirige. 

Certa pregui�a 

As conclus�es �s vezes s�o um tanto precipitadas, como associar o vazio das igrejas com a chegada do reino dos c�us — por isso as igrejas est�o vazias e n�o s�o mais necess�rias, ele sustenta, mas a coisa fica um tanto frouxa na argumenta��o, como � f�cil de notar (ver “trecho”).
 
As igrejas que observa, claro, s�o as que est�o ao alcance dos olhos escandinavos do escritor, que n�o parece mais nem um pouco interessado em se afastar do mundo sossegado e familiar para ver os muitos, os inumer�veis conflitos em que o restante do planeta est� mergulhado. 

O pior � quando a observa��o redunda em tautologia, em descri��o im�vel de um estado de coisas, como por exemplo ao iniciar um texto a respeito de molduras: “As molduras s�o bordas do quadro e estabelecem o limite entre o que est� e o que n�o est� dentro dele”.
 
A �gua � molhada, o c�u � azul, o mar � salgado, estamos sabendo, seu Knausg�rd. Bem mais interessante � quando ele realmente parece ter feito alguma pesquisa para trazer informa��es reveladoras: “As v�boras n�o t�m audi��o, e isso j� faz com que o mundo que habitam seja diferente do nosso”. 

�s vezes, ele parte das aberturas e orif�cios do corpo para falar a respeito das bordas e limites que o mundo tem ou deixa de ter. Mas logo depois o texto escorrega de novo para certo cansa�o descritivo. “� na boca que se localiza o sentido do paladar”, ele escreve, e a essa altura o leitor fica se perguntando se realmente leu essa obviedade e o que mais vem por a�.
 
 
Tudo bem, depois ele vai entrar nos meandros do que � externo ao corpo e de como isso funciona para internalizar o mundo. Mas parece que Knausg�rd d� certas mostras de cansa�o, depois de ter aberto as pr�prias v�sceras � visita��o mundial na s�rie anterior.
 
Ele quer ser deixado quieto num canto, a contemplar a aldeia, ver os filhos crescerem em paz na tranquilidade de uma cidadezinha sueca, tomar ch� e deixar os problemas do mundo bem longe do quintal. Quando a guerra aparece, � um eco distante de um lugar que parece ter sido deixado para tr�s h� muito tempo.
 
“A R�ssia est� se preparando e a atividade na fronteira aumentou, o que deu in�cio a uma discuss�o sobre a diminui��o do Ex�rcito observada nas �ltimas d�cadas aqui na Su�cia”, ele anota. Mas depois muda de assunto, sem nem pestanejar.

Salvo pela arte

A percep��o do sujeito ainda inquieto est� l�, um tanto dilu�da, mas est�: num texto a respeito de daguerreotipia, ou quando recorda sua experi�ncia diante do deslumbramento desencadeado por telas de grandes pintores. No meio disso tudo se encontra, claro, o grande sujeito que tira algumas sacadas magistrais do arsenal de recursos (a arte � um motivo forte, percebam).
 
A vergonha, ele diz, “estabelece diferen�as, cria segredos e promove tens�o”. Como contraponto a ela est� o desejo, “cuja exist�ncia busca acabar com as diferen�as, revelar os segredos e relaxar as tens�es”. Ao mesmo tempo em que parece um tanto �bvio, cad� algu�m que havia feito esse tipo de conex�o antes?
 
Pois �, seu Knausg�rd decidiu ent�o juntar ele mesmo os pontos. E continua. “A colis�o frontal entre a vergonha e o desejo encontra-se na sexualidade. Um dos aspectos mais interessantes nessas duas grandezas � que ambas se relacionam com a fic��o, no sentido de que ambas lidam com realidade alternativas.” A�, sim, come�a uma conversa interessante. Ela est� l�, um tanto acanhada (a balan�ar o ch� na x�cara para que esfrie um pouco), mas pelo menos se apresenta. 

Num texto a respeito de Van Gogh, por exemplo, ele diz que o pintor tentou se comprometer com o mundo, n�o conseguiu; com a pintura, n�o conseguiu; “e assim se ergueu acima de ambos e comprometeu-se com a morte: somente dessa forma o mundo e a pintura tornaram-se poss�veis para ele”. Mas quando voc� acredita que a barra se elevou, ele no texto seguinte vai � cozinha colocar a lou�a na m�quina de lavar e inicia uma longa perora��o a respeito da vida provinciana.
 
Dessa mistura ele procura extrair algum substrato importante. Diz que a chamin� em sua casa tem uma coisa qualquer de importante (n�o tem), e logo depois relembra uma visita a uma galeria de arte em Oslo, quando percebe que o deslumbramento sentido com as pinturas rom�nticas e nacionalistas de repente esmaecem diante da pintura de Munch.
 
“De um s� golpe todo o resto empalideceu”, escreve. “Era aquilo. A exce��o era a arte.” Desse mesmo contraste ele tenta fazer a literatura funcionar. Funciona, mas s� pela metade. Quase d� vontade de dizer a ele que tirasse uma licen�a maior com a dinheirama que recebeu pela s�rie anterior e n�o voltasse ao trabalho antes de ter uma ideia mais consistente. 

TRECHO

“A tristeza que sinto n�o � apenas imotivada, uma vez que n�o tenho nenhuma viv�ncia do s�culo XIX, como tamb�m diminui a minha alegria em rela��o a tudo aquilo que existe, tudo aquilo que temos, em um grau t�o profundo que deveria ser classificado como uma doen�a. A nostalgia, o anseio por aquilo que existiu outrora, a doen�a da sombra. O sentimento natural correspondente � o desejo por aquilo que ainda n�o existe, pelo futuro repleto de for�a e esperan�a que n�o � imposs�vel, n�o mant�m nenhuma rela��o com aquilo que foi perdido, mas apenas com aquilo que pode ser conquistado. E talvez seja esse o motivo para que a minha nostalgia seja t�o profunda, porque a utopia sumiu da nossa �poca, de maneira que o anseio n�o pode mais se orientar rumo ao futuro, mas apenas rumo ao passado, onde toda essa for�a se concentra. Vistas sob essa perspectiva, as igrejas eram tamb�m obras de engenharia espiritual, pois n�o apenas tornavam vis�vel a identidade local como tamb�m representavam um outro n�vel de realidade, o n�vel divino, que se encontra no centro de toda a faina cotidiana, e que se mantinha aberto ao futuro, ao dia em que o reino do c�u enfim surgisse na Terra. O fato de que j� ningu�m procura esse n�vel de realidade divino e de que as igrejas se encontram vazias significa que j� n�o s�o mais necess�rias. E o fato de que n�o s�o mais necess�rias significa que o reino do c�u j� chegou. N�o h� mais nada pelo que ansiar sen�o o anseio em si mesmo, e as igrejas vazias que vejo daqui s�o hoje o s�mbolo disso.”

Capa do livro 'Outono'
(foto: Companhia das Letras/Reprodu��o)
 
“Outono”
• Karl Ove Knausg�rd
• Tradu��o de Guilherme da Silva Braga
• Companhia das Letras
• 208 p�ginas
• R$ 69,90; e-book: 39,90

* Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia 


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