
"Acho interessante quando a gente consegue, a partir do encontro do texto com a imagem e com a trilha, sugerir uma outra sensa��o que n�o est� necessariamente no texto e nem na imagem. � como se fosse um est�mulo para se ampliar os sentidos da compreens�o"
Clarissa Campolina, diretora
Realizado por Clarissa Campolina e Luiz Pretti, o filme “Enquanto estamos aqui”, que estreia nesta quinta-feira (6/10) em Belo Horizonte e em outras quatro capitais do pa�s, resulta de um percurso po�tico que parte do �ntimo e particular para o coletivo e global. O cerne da hist�ria � a quest�o das migra��es, das fronteiras, das diferen�as culturais e dos entendimentos poss�veis entre elas.
Misto de document�rio e fic��o, o longa, que teve filmagens no Brasil, nos Estados Unidos e na Alemanha, acompanha as hist�rias – que acabam por se cruzar – dos personagens Lamis, interpretada por Mary Gatthas, e Wilson, vivido por Marcelo Souza e Silva. Ele � um brasileiro que mora ilegalmente em Nova York h� 10 anos; ela, uma libanesa que acaba de chegar � megal�pole estadunidense.
A trama � toda conduzida pelo texto, elaborado por meio de di�logos em off e cita��es de diversos autores, como o fil�sofo Jonathan Crary (“24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”) e a poeta Ana Martins Marques, que comparece como uma das narradoras, ao lado dos protagonistas e tamb�m de Grace Pass�, Fernando Alves Pinto, Gl�ucia Vandeveld, Philippe Urvoy, Rodrigo Fischer e Theo Campolina Pretti – filho do casal de realizadores, a quem o filme � dedicado.
Resid�ncia na Alemanha
N�o necessariamente h� uma correspond�ncia objetiva entre o que o espectador v� na tela e a hist�ria que � contada. Esse formato deve-se, em boa medida, ao pr�prio processo de realiza��o da obra. Pretti explica que tudo come�ou em 2015, quando Clarissa foi fazer uma resid�ncia art�stica na Alemanha.
“O filme nasce de um desejo de filmarmos Berlim, onde est�vamos morando, para que pud�ssemos, atrav�s dessa filmagem, entender nosso lugar enquanto migrantes. A ideia era fazer uma investiga��o sobre a cidade, que, na ocasi�o, estava passando por uma crise de imigra��o, por conta da guerra na S�ria, com um fluxo imenso de refugiados se espalhando por toda a Europa, que estava come�ando a fechar as portas”, diz.
Ele sublinha que n�o havia ainda o projeto de um filme. Clarissa pontua que o in�cio dessa jornada, a princ�pio de escopo familiar, foi um acontecimento fortuito. “Est�vamos numa pra�a com o Theo e ele foi andando em dire��o a outras crian�as, s� que, em vez de brincar, se escondeu embaixo do escorregador para observar os meninos e ficou ali naquele limite entre tentar entender o que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, n�o ser visto”, recorda.

Dentro e fora
Segundo longa-metragem da cineasta, que estreou no formato em 2011, com “Girimunho”, em codire��o com Helv�cio Marins Jr., “Enquanto estamos aqui” explora, conforme ela aponta, a sensa��o de estar em um lugar e, ao mesmo tempo, se sentir fora dele. Pretti conta que s� com o tempo veio a percep��o de que as imagens que haviam capturado eram o esbo�o de um filme.
“Aos poucos, entendemos que para sair de uma esfera �ntima e pensar sobre aquele material como hist�ria e narrativa, seria necess�rio imaginar e escrever um roteiro. Trouxemos a narrativa para as vozes dos personagens e mantivemos as paisagens como palco para essa hist�ria”, destaca o diretor.
O casal imaginou, ent�o, os personagens Lamis e Wilson para que conduzissem uma narrativa que trata do encontro de culturas diferentes e de como essas culturas podem se relacionar, apesar das diferen�as, das divis�es geogr�ficas, dos muros. “Quisemos falar do encontro com o outro e do conv�vio com as diferen�as”, aponta Pretti. “No final das contas, � uma hist�ria de amor”, acrescenta.
Clarissa observa que n�o houve uma hierarquia no processo de realiza��o do longa. As filmagens, a escrita do roteiro, a montagem e a sele��o de imagens de arquivo foram feitas, quase sempre, de forma concomitante, sem que uma estivesse necessariamente condicionada a outra.
“No in�cio, a gente n�o sabia o que o filme seria. Ele foi muito feito na sala de montagem, a partir do que o mundo nos entregava. A gente ia elaborando conforme as coisas iam acontecendo”, diz. Ela ressalta que apenas tinham o desejo de que n�o fosse nem um document�rio nem uma esp�cie de �lbum de fam�lia. “Por isso criamos os personagens”, salienta.
A cineasta conta que, depois que voltaram de Berlim para o Brasil, surgiu a oportunidade de uma outra resid�ncia art�stica, desta feita em Nova York, onde ela j� havia morado em 2003. “A gente vinha trabalhando texto e imagem meio que ao mesmo tempo. Percebemos que os registros que hav�amos feito em Berlim dialogavam com imagens de Nova York, de quando eu tinha morado l�”, conta.
Imagens de arquivo
Clarissa destaca que a propor��o de imagens de arquivo e imagens feitas com a inten��o do filme � de aproximadamente 30% e 70%. “Nos valemos de coisas que eu j� tinha, mas tamb�m dirigimos muito. Na medida em que �amos escrevendo o texto, pens�vamos em que tipo de imagem precisar�amos”, aponta.
Pretti observa que as filmagens realizadas em Berlim n�o s� deram o rumo para uma sele��o de arquivos como levaram a novos registros, tanto em Nova York quanto na cidade alem�, para onde o casal retornou em 2018. A produ��o contou ainda com a colabora��o de Rodrigo Fisher, que, al�m de atuar como um dos narradores, realizou filmagens complementares.
“Ele estava morando em Nova York. N�s, daqui, faz�amos testes na ilha de montagem, v�amos o que funcionava e o orient�vamos sobre o que mais filmar. Ele, de l�, ia nos enviando imagens. O processo de filmagem, montagem e escrita do roteiro foi conjunto”, comenta.
A dissocia��o entre a hist�ria contada – por meio dos di�logos e reflex�es dos personagens e de uma narra��o onisciente, a cargo de Grace Pass� – e as imagens projetadas � tamanha que Lamis e Wilson praticamente n�o aparecem. “� uma op��o que faz parte do pr�prio processo de realiza��o do filme”, pontua Pretti.
Clarissa diz acreditar em uma montagem que seja criativa, no sentido de deixar espa�o para que o espectador se coloque na hist�ria. “Acho interessante quando a gente consegue, a partir do encontro do texto com a imagem e com a trilha, sugerir uma outra sensa��o que n�o est� necessariamente no texto e nem na imagem. � como se fosse um est�mulo para se ampliar os sentidos da compreens�o”, ressalta.
Marcelo Souza e Silva � ator, integrante da Cia. Luna Lunera, e j� participou de filmes como “Baixo centro” (2018), de Ewerton Belico e Samuel Marotta. J� Mary Gatthas � uma jovem refugiada s�rio-libanesa que vive em Belo Horizonte, cujas experi�ncias foram adicionadas ao filme, somando novas camadas � personagem.
"(As cita��es liter�rias) Ampliam para um contexto pol�tico e social maior do que a hist�ria particular dos dois personagens, tratando, por exemplo, da expans�o do capitalismo ou dos muros que dividem o mundo atual. � uma forma de falar do universo e da situa��o dos personagens inseridos na realidade, em uma hist�ria coletiva, que � de todos n�s"
Luiz Pretti, diretor
Migrantes e refugiados
Pretti explica que a produ��o chegou � escala��o de Lamis por meio de pesquisas e testes em Belo Horizonte, S�o Paulo e Rio de Janeiro. A dupla de diretores visitou centros de migrantes e refugiados e tamb�m locais de encontro da comunidade s�rio-libanesa nas tr�s capitais.
“Ped�amos �s pessoas que encontr�vamos que fizessem a leitura de um texto, porque j� sab�amos que o filme seria guiado por vozes. Quando Mary chegou, foi muito forte; sentimos que ela tinha uma voz muito especial, com uma viv�ncia intr�nseca, como se j� trouxesse a hist�ria de vida de algu�m que teve que sair de seu pa�s para morar em outro lugar”, diz.
“Discutimos com ela todo o roteiro, a maneira como as cartas que comp�em o texto eram escritas, e como a hist�ria da personagem se relaciona com a dela pr�pria”, salienta o diretor. Com rela��o � escolha do int�rprete de Wilson, Pretti aponta que se deveu a uma admira��o antiga. “Eu conheci Marcelo quando fiz a montagem de ‘Baixo centro’. J� me chamava a aten��o a for�a da voz dele, o dom�nio que ele tem do tempo, das pausas”, conta.
Narra��o de Grace Pass�
A presen�a de Grace Pass� como a narradora que conduz a trama tamb�m se deu pela admira��o dos cineastas por seu trabalho com a voz. “A gente entendeu que, para que a hist�ria pudesse ser contada, era preciso essa voz externa, mais s�bria, que acompanhasse ambos os personagens e se diferenciasse deles. Grace tem um trabalho com a voz muito forte tanto no teatro quanto no cinema”, aponta.
Pretti diz que a refer�ncia para esse modelo narrativo foi Marguerite Duras, escritora e diretora francesa que sempre trabalhou muito com a voz em off em seus filmes. Ele aponta que as cita��es liter�rias ou ensa�sticas s�o um terceiro elemento do filme.
“Elas ampliam para um contexto pol�tico e social maior do que a hist�ria particular dos dois personagens, tratando, por exemplo, da expans�o do capitalismo ou dos muros que dividem o mundo atual. � uma forma de falar do universo e da situa��o dos personagens inseridos na realidade, em uma hist�ria coletiva, que � de todos n�s”, ressalta.
Recep��o positiva em festivais
“Enquanto estamos aqui” fez sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Roterd� e tamb�m j� foi exibido em Nova York. No Brasil, teve sess�es na Mostra Internacional de Cinema de S�o Paulo e no Olhar de Cinema, em Curitiba. “A recep��o tem sido muito legal”, diz Clarissa.
“Em Roterd� foi muito forte, porque foi a estreia; e em Nova York, no Lincoln Center, tamb�m foi muito especial, porque foi acompanhada por muitas pessoas que viveram, vivem ou conhecem pessoas que viveram situa��es parecidas com a que � retratada no filme”, comenta a cineasta.
“ENQUANTO ESTAMOS AQUI”
(Brasil, 2019. 77 min.) Dire��o: , de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. Com Marcelo Souza e Silva, Mary Gatthas e Grace Pass� (voz). Classifica��o: 12 anos. Em cartaz a partir desta quinta no Centro Cultural Unimed-BH Minas T�nis Clube (Sala 1, �s 18h10) e no UNA Cine Belas Artes (sala 3, �s 18h30).