
MARIANA PEIXOTO
Aos 11 anos, Kayllane Campos achou que fosse morrer. Vestida de branco, deixou o terreiro de candombl� no Rio de Janeiro onde sua av� era m�e de santo, num domingo, pronta para ir para casa. S� que uma pedra atravessou seu caminho. A menina recebeu uma pedrada na testa, ap�s ouvir insultos de dois homens que seguravam a B�blia.
A agress�o a Kayllane ocorreu em junho de 2015. J� nesta �poca, o diretor mineiro Marcos Pimentel, consumidor voraz de not�cias, come�ava a atentar para casos de intoler�ncia religiosa que estavam pipocando em todo o pa�s. “Me chamou bastante a aten��o que as hist�rias se passavam sempre em favelas ou sub�rbios e que (as agress�es) eram sempre contra religi�es de matriz africana”, afirma.
Foi este o ponto de partida do document�rio “F� e f�ria”, que estreia nesta quinta-feira (13/10), �s 18h20, no UNA Cine Belas Artes. O longa traz para o centro da narrativa mais de 20 personagens, pessoas que vivem e atuam em favelas e comunidades perif�ricas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Todos s�o ligados a religi�es de matriz africana ou a igrejas evang�licas, em especial as neopentecostais.
Pimentel, que n�o tem religi�o e diz respeitar todas, vive pr�ximo ao Aglomerado Santa L�cia, em BH. Foi ali que come�ou a ouvir, mais de perto, algumas hist�rias. “Me chamou a aten��o que os casos (de agress�o) n�o fossem t�o isolados, mas estavam sendo reproduzidos em v�rios lugares. � medida que entrei mais no processo, vi tamb�m que a partir das intoler�ncia podemos ir al�m e ver como as rela��es de religi�o e poder influenciam a sociedade brasileira.” E o tr�fico � elemento essencial nesta equa��o.
Trabalhando com pesquisadores que encontraram os personagens, o filme foi realizado nas duas capitais porque o “Rio � uma cidade emblem�tica em sua rela��o com o tr�fico, e BH, al�m de ser onde moro, reproduz o que voc� encontra em qualquer grande centro brasileiro”, segundo diz.
Al�m de pais e m�es de santo, pastores, adeptos do candombl�, da umbanda e de religi�es neopentecostais, a c�mera de Pimentel tamb�m aborda traficantes – nenhum, obviamente, mostra sua cara. Um grupo do Comando Vermelho (CV) fala que tenta manter uma boa rela��o com diferentes agremia��es. Mas, nas favelas, a presen�a das figuras de Deus e Jesus � maci�a – Jesus, inclusive, � apontado como o general de diferentes igrejas, que criam ex�rcitos de crentes.
Micro e macro
As hist�rias v�o se somando e ganhando outras nuances. “A partir do momento em que tive contato com os personagens – filmei muito mais do que os que aparecem no document�rio –, vi que poderia partir do micro para o macro. No come�o, � uma menina com uma pedrada na cabe�a, uma briga de vizinhos num centro de umbanda. De repente, come�am a quebrar santos, botar fogo (nos terreiros), a rela��o com o tr�fico se alternando no morro”, diz Pimentel.Para ele, um dos personagens mais ricos do filme � Fabr�cio Carvalho, tatuador e body piercer evang�lico que vive em BH e � discriminado entre os pr�prios crentes. O document�rio acompanha Carvalho se dependurando em uma �rvore, por meio de pequenos ganchos nas pr�prias costas, que trazem uma enorme tatuagem do Cristo crucificado. Ao fundo, o ouvimos falar que a a��o lhe traz uma “paz muito grande”, ainda que muitas pessoas o considerem tomado pelo diabo.
“O filme mostra uma guerra bem definida entre dois lados, e o lado mais forte, que � o evang�lico, quer acabar com o outro. O Fabr�cio tem muitas camadas, pois ele � um evang�lico supertolerante e consciente, e prova que a vida � feita de tons de cinza, que n�o se pode colocar pessoas dentro de caixas”, afirma Pimentel.
Na metade final do longa, a dimens�o � outra. “� UPP, agentes p�blicos que trabalham colocando a religi�o na frente, bancada evang�lica... Por tr�s de tudo, est� o racismo, que � a grande ferida n�o sanada na sociedade brasileira. Ele aparece na forma de racismo religioso”, diz o documentarista.
“F� e f�ria”, vale dizer, foi rodado entre setembro de 2016 e julho de 2018. Ou seja, as filmagens terminaram quando Jair Bolsonaro iniciava sua campanha para a elei��o presidencial. Antes dos cr�ditos subirem na tela, o filme informa ao espectador que, em outubro de 2018, com “amplo apoio da bancada evang�lica e valendo-se de um discurso armamentista e desfavor�vel �s minorias”, Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil.
O longa teve premi�re no IDFA – International Documentary Film Festival Amsterdam, em novembro de 2019. No m�s seguinte, foi exibido no Festival do Rio. Com o lan�amento adiado em decorr�ncia da pandemia, o filme n�o mudou em nada para chegar tr�s anos depois ao circuito comercial.
“E ele, impressionantemente, est� superatual. Estamos felizes por ele estar chegando agora, em que a pauta religiosa est� inflamada para o segundo turno. � um filme que incentiva a reflex�o, espero que ajude no di�logo. Al�m de mostrar muita gente com os direitos feridos, o processo de aniquilar as diferen�as est� matando a diversidade do pa�s, bem como alimentando os discursos de �dio”, afirma Pimentel.
“F� E F�RIA”
(Brasil, 2019, 104min., de Marcos Pimentel) – Estreia nesta quinta (13/10), �s 18h20, no UNA Cine Belas Artes