
"L� vamos n�s outra vez. O amor, o medo, as noites sem dormir", diz Sara, em certo momento de "Com amor e f�ria". Ela fala sobre o ex-namorado Fran�ois, papel de Gr�goire Colin, que foi preterido, quase uma d�cada antes, porque ela decidiu se casar com Jean, vivido por Vincent Lindon, amigo dos dois.
Esp�cie de s�ntese da obra de Claire Denis, o coment�rio fala do desejo intenso a ponto de gerar desespero e dor, al�m de um passado que se torna presente pelo que legou de desvio ou marca.
A melhor entre todos os cineastas franceses de sua gera��o, Claire Denis conseguiu trazer, de forma enviesada entre romance e drama, o trauma de uma Fran�a – ou, por extens�o, de uma Europa ocidental – que perdeu o ch�o da hist�ria ao longo do s�culo 20.
Um exemplo est� no celebrado "Bom trabalho", de 1999, em que, �rf� do colonialismo, a Legi�o Estrangeira se torna uma mera exposi��o vazia de corpos masculinos malhados ao sol. Em meio a isso, um soldado se apaixona por um recruta, e o filme passa a dar especial aten��o a essa convulsiva atra��o.
Outro exemplo � a fic��o cient�fica "High life", de 2018, com Robert Pattinson, em que condenados � morte ou � pris�o perp�tua ganham a op��o de tripular uma viagem espacial sem chance de volta � Terra. Insistem em permanecer vivos a ponto de recriar, na espa�onave, flora e fauna daqui de baixo e, de quebra, os conflitos, desejos, disputas de poder, opress�o e at� o nascimento de um beb�.
Sociedade
A Sara de "Com amor e f�ria", ali�s numa atua��o sempre incr�vel de Juliette Binoche, de certo modo insiste em amar verdadeiramente Jean, mas jamais deixou de pensar em Fran�ois. Seria mais exato, inclusive, dizer que o casal carrega no corpo e na alma um passado presentificado. A escolha de Sara e Jean inaugurou um amor genu�no, uma d�cada atr�s, mas n�o sem algumas fissuras – quase como se tivessem os dois cometido um crime.Fran�ois volta � cena justamente porque Jean, que largou o r�gbi profissional por les�o, quer empresariar jogadores e, para tal, abrir sociedade justamente com o amigo. Sara reencontra Fran�ois e entra numa esp�cie de desespero ag�nico t�pico de um romance de Flaubert.
N�o � toa, este � um filme quase at�pico de Claire Denis, pois, ao abdicar dos sil�ncios em favor dos di�logos, faz tal qual um n�ufrago com uma boia. O resultado � interessante porque a fala � desmascarada pelo semblante, pelo gestual, pelo corpo.
A fala ser�, tamb�m especialmente neste filme, uma esp�cie de panorama sint�tico do estado do mundo. Sara � uma radialista que noticia um mundo em perigo.
Seja a crise do L�bano ou o racismo na Fran�a. Neste caso, o ex-jogador Lilian Thuram faz uma especial participa��o no filme, como um entrevistado de Sara. Ele lembra Frantz Fanon e fala sobre o pensamento branco ser imposto � identidade de todos. Enquanto isso, Marcus, o filho adolescente negro que Jean teve com a primeira mulher, se rebela contra o estado de coisas, incluindo a� seu pai branco e ausente.
O drama particular dos tr�s amantes n�o � necessariamente algo menor diante dos fortes abalos do mundo, este da grande hist�ria, da viol�ncia mortal, do racismo, dos abusos pol�ticos. Porque Claire Denis sempre vai ao �ntimo particular dos seus personagens para, de certo modo, mostrar uma paridade com algo maior, mais do cosmos do mundo humano.
N�o � o "cinema do corpo", essa gen�rica express�o da moda, mas uma aten��o � vida, ao respirar, sofrer, transpirar, amar ou morrer. Marcus, perdido em como lidar com a viol�ncia de uma cultura hegemonicamente branca, ou Sara, Jean e Fran�ois, lidando com os efeitos colaterais do desejo extremo. Todos eles, insistentemente vivos e, por isso, numa inevit�vel melancolia, que tinge os �nimos de prazer e dor, alegria e leve desola��o.
A trilha sonora da banda Tindersticks, parceira constante de Claire Denis, aponta essa bela tristeza j� na primeira sequ�ncia, em que Sara e Jean nos s�o apresentados como um casal em amor na praia, entre olhares e sorrisos, m�os apertadas dentro d'�gua, a luz do sol incidindo no mar e emulsionando aqueles dois corpos.
“COM AMOR E F�RIA”
(Fran�a, 2022, 116min) Em cartaz no Cineart Ponteio (18h15 e 20h40), UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 16h e 20h10), Centro Cultural Unimed-BH Minas (Sala 2, 16h). Dire��o: Claire Denis. Com Juliette Binoche, Vincent Lindon e Gr�goire Colin. Classifica��o 14 anos