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Estado de Minas M�SICA

Torquato Neto, o poeta da Tropic�lia

Carlos �vila escreve sobre a vida e a obra do escritor, letrista e jornalista piauiense que se matou aos 28 anos, em novembro de 1972


15/11/2022 04:00 - atualizado 14/11/2022 23:30

Torquato Neto, sentado na areia, de costas para o mar, com pernas e braços cruzados
O poeta e letrista em cena do filme "Torquato Neto - Todas as horas do fim", document�rio de Eduardo Ades e Marcus Fernando (foto: Vitrine Filmes/Divulga��o)
 
 
Carlos �vila*
Especial para o Estado de Minas

Em 2022, completam-se 50 anos de morte de Torquato Neto. Em 10 de novembro de 1972, ele abriu o g�s e partiu, com apenas 28 anos. Desespero de fio a pavio. E o pavio era curto. Deu em curto-circuito. O anjo torto, muito louco, o vampiro l�rico da Tropic�lia se esvaiu na luz da manh� como o Nosferatu expressionista de Murnau. Torquato Neto (1944-1972) se matou de madrugada, num apartamento no Rio, onde morava com a mulher, Ana, e o filho Tiago, depois de comemorar seu anivers�rio com amigos num bar. 

Poeta sem livro publicado em vida; letrista de m�sica (com parcerias com Edu Lobo, Gil, Caetano, Macal� e outros; s�o dele, por exemplo, as letras das can��es “Pra dizer adeus”, “Geleia geral”, “Mam�e coragem” e “Let’s play that”); ator-vampiro em filme underground, em Super 8, de Ivan Cardoso; editor, com Waly Salom�o, da revista Navilouca; cr�tico de MPB e de cinema; jornalista da �ltima Hora, onde manteve a coluna “Geleia Geral” (nela acompanhava e divulgava todo o movimento da contracultura, do “desbunde” e da resist�ncia cultural sob a ditadura).

Sim, “Geleia Geral”: hoje a express�o est� vulgarizada e introduzida nas linguagens falada e escrita. Primeiro, virou letra de can��o tropicalista (versos de Torquato e m�sica de Gilberto Gil) – inclu�da no disco-manifesto “Tropic�lia – Ou Panis et circensis”, de 1968 – e, mais adiante, t�tulo da coluna de jornal. Depois disso, a express�o entrou na circula��o sangu�nea da l�ngua portuguesa no Brasil. 

A express�o foi criada pelo poeta, tradutor e ensa�sta D�cio Pignatari. Surgiu numa discuss�o deste com Cassiano Ricardo, ainda em 1963, e acabou sendo inserida no pref�cio do n�mero 5 (o �ltimo) da revista de vanguarda Inven��o, em 1967. Torquato adorava o texto de Pignatari: “Aquele texto tem tudo”, afirmou em conversa com Gil e Augusto de Campos, reproduzida no livro “Balan�o da bossa”. 
 
Torquato Neto e Gilberto Gil se abraçam sorrindo
Torquato Neto e Gilberto Gil, autores de 'Geleia geral', obra-prima da Tropic�lia (foto: Vitrine Filmes/divulga��o)
 

Torquato deixou tudo estilha�ado, fragmentado como ele pr�prio – depressivo, suicida e radical esteticamente (tamb�m adepto do desregramento rimbaudiano, se ligou no �lcool e nas drogas). Entre tudo que produziu, se realizou mais nas letras de can��es, criativas e bem-estruturadas. No restante – poemas e escritos de todo tipo; alguma prosa; trabalhos visuais; os textos jornal�sticos r�pidos, sint�ticos e improvisados; as investidas no cinema e a milit�ncia cr�tica etc. –, ressalta o “inacabado”, a pressa e a press�o, a urg�ncia de viver e o “sonho desesperado” daquela antiga can��o (com m�sica de Caetano): “Um dia depois do outro/ao teu lado ou sem ningu�m/no m�s que vem/neste pa�s que me engana/ai de mim, Copacabana/ai de mim...”. 

Na defini��o de Pignatari, “Torquato era um representante da nova sensibilidade dos n�o especializados”, ressaltando que seu processo criativo inclu�a montagem, colagem e bricolagem. De fato, o poeta utiliza par�frases e par�dias – lan�a m�o de cita��es e apropria��es variadas nos seus escritos. “Geleia Geral” seria o exemplo por excel�ncia desse procedimento, uma esp�cie de colcha de retalhos textuais (onde se destacam express�es cunhadas por Oswald de Andrade): “A alegria � a prova dos nove/e a tristeza � teu porto seguro/minha terra � onde o sol � mais limpo/e Mangueira � onde o samba � mais puro/tumbadora na selva selvagem/Pindorama, pa�s do futuro”. 

J� em “Let’s play that” (com m�sica de Macal�), Torquato come�a parodiando o Drummond do “Poema de sete faces” (“Quando eu nasci/um anjo louco, muito louco/veio ler a minha m�o...”) e termina citando duas linhas do “Inferno de Wall Street”, de Sous�ndrade, fundidas por Augusto de Campos: “Desafinar/o coro dos contentes”. Esse lema-poema tamb�m entrou na circula��o sangu�nea de nossa l�ngua.
 

"Algo na escrita de Torquato anunciava e antecipava a linguagem antilinear e entrecortada da internet, onde tudo (texto, imagem, som etc.) se cola e se descola, se corta e se recorta, se comp�e e se decomp�e rapidamente. Da� a atra��o que sua produ��o exerce sobre os jovens"

Carlos �vila, poeta

 

Curiosamente, � toda essa fragmenta��o algo ca�tica (textual e visual) que atrai no seu legado, reunido postumamente em livros como “Os �ltimos dias de paup�ria”, coordenado por Waly Salom�o e Ana Maria Silva de Ara�jo (ent�o vi�va de Torquato), e “Torquat�lia” – dois volumes organizados por Paulo Roberto Pires. Ou ainda na antologia “Torquato Neto – Essencial”, preparada por Italo Moriconi, e nas edi��es produzidas por George Mendes (primo de Torquato e curador de seu acervo, em Teresina), com textos in�ditos e estilha�os po�ticos extra�dos de cadernos deixados pelo trovador da “Tristeresina” (deve-se registrar tamb�m o CD “Todo dia � dia D”, reunindo 14 can��es, lan�ado pelo selo Dubas, de Ronaldo Bastos). 

Algo na escrita de Torquato anunciava e antecipava a linguagem antilinear e entrecortada da internet, onde tudo (texto, imagem, som etc.) se cola e se descola, se corta e se recorta, se comp�e e se decomp�e rapidamente.  Da� a atra��o que sua produ��o exerce sobre os jovens, sobre todos que encontram ali muito do que hoje se identifica como multim�dia – tamb�m como conceitual e at� perform�tico. 

Afora isso, a postura anticonvencional e certa mitifica��o, e mesmo fetiche, relacionados � imagem do poeta-suicida (como ocorreu igualmente com Maiakovski e S�-Carneiro), alimentam o interesse pelo “personagem” Torquato – piaui- ense que se soltou para o mundo (via Salvador, Rio, S�o Paulo, Londres-Paris e novamente Rio, onde morreria). 

Torquato Neto, de capa preta, e Scarlet Moon, de biquíni, sorriem em cena do filme Nosferato do Brasil
Torquato e Scarlet Moon no filme 'Nosferato no Brasil' (foto: Reprodu��o)
Em vida, o poeta se ligou n�o s� aos amigos baianos da m�sica popular, como tamb�m a artistas pl�sticos, como Lygia Clark, H�lio Oiticica e Luciano Figueiredo; aos poetas concretos (Irm�os Campos e Pignatari); ao teatro de Jos� Celso e seu grupo Oficina; ao cinema-inven��o de Bressane e Sganzerla – tamb�m ao “terrir” (terror/humor par�dico) de Ivan Cardoso, que dirigiu “Nosferato no Brasil”, no qual Torquato atuou como vampiro: “Um vampiro ensolarado, malandro e desinibido”, segundo Haroldo de Campos, “tropicalizado em cores berrantes, para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos dos C�rpatos”. Torquato foi biografado por Toninho Vaz e tamb�m foi tema de um filme-document�rio, “Todas as horas do fim”, dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando – com depoimentos e imagens raras do poeta.   

“Morre jovem quem � amado pelos deuses” (Quem di diligunt, adolescens moritur – Plauto, 254-184 a.C.). Torquato, assim como M�rio Faustino – tamb�m poeta e piauiense, morto 10 anos antes dele, num desastre a�reo –, teve sua trajet�ria interrompida, cortada tragicamente. Ficaram os seus “disjecta membra”, fragmentos que sugerem um projeto de livro – o esbo�o de uma po�tica. 

Torquato, figura algo genial e atormentada, que escreveu com sabedoria: “Um poeta n�o se faz com versos. � o risco, � estar sempre a perigo sem medo, � inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, � destruir a linguagem e explodir com ela”.

Torquato viveu poeticamente. Vida-obra (que guarda alguma rela��o com a de Pagu, a brava Patr�cia Galv�o, escritora-jornalista inventiva e combativa, que tamb�m n�o publicou nenhum livro). Torquato viveu “tranquilamente/todas as horas do fim” – como escreveu no seu belo “Cogito” (que traz algum “eco” de S�-Carneiro).

Sim, cogito ergo sum: penso – poeto – logo existo. Logos. Palavra escrita ou falada (tamb�m cantada, no caso de Torquato): “Toda palavra guarda uma cilada”. Palavra-cilada: Torquato torto. Palavra calada: Torquato morto. Mas vivo, muito vivo, aqui e agora, na palavra POETA.

*Carlos �vila � poeta e jornalista. Autor de “Bissexto sentido”, “�rea de risco” e “Poesia pensada”, entre outros. Foi editor do Suplemento Liter�rio/MG    


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