
Um pa�s que vive sob um clima de desconforto latente, habitado por uma classe m�dia que n�o se reconhece como parte dos problemas e uma elite indiferente a eles, com uma disputa presidencial polarizada que d� vaz�o a pensamentos repletos de preconceito e no qual narrativas farsescas orientam a opini�o p�blica.
Parece o Brasil de 2022, mas s�o os Estados Unidos de 1980, cen�rio do novo filme de James Gray, "Armageddon time", em cartaz nos cinemas. Exibido no Festival de Cannes e na Mostra de Cinema de S�o Paulo, o t�tulo est� cotado para algumas das principais categorias do pr�ximo Oscar e chega aos cinemas brasileiros um tanto perdido no espa�o-tempo.
Se por um lado o longa se esfor�a para capturar com fidelidade a virada do pa�s para o conservadorismo implac�vel de Ronald Reagan, que saiu das elei��es daquele ano como presidente, por outro deixa �bvia sua pretens�o de tamb�m cutucar a ascens�o direitista pela qual passou o mundo e, mais especificamente, os Estados Unidos sob Trump.
"Foi por isso que quis fazer esse filme. Olhei para ele e pensei que nada mudou. Se voc� estudar os Estados Unidos daquela �poca vai ver muita coisa que est� acontecendo hoje", diz Rodrigo Teixeira, que produz "Armageddon time" e fez do filme um tiquinho brasileiro.
"As pessoas associam o Reagan ao presidente que p�s fim � Guerra Fria, que venceu a Uni�o Sovi�tica. Hoje ningu�m lembra que, quando ele foi eleito, muita gente foi tomada por um medo absurdo. Foi como a rea��o que houve agora com o Trump, com a diferen�a de que ele era ator e tinha um carisma maior. Por isso estamos num momento muito prop�cio para lan�ar o filme."
Teixeira j� produziu outro longa de Gray, "Ad Astra: Rumo �s estrelas". Tem ainda no curr�culo nacionais como "A vida invis�vel" e "Alem�o" e estrangeiros como "A bruxa" e "Me chame pelo seu nome".
Di�logo
Carioca, ele foi � estreia de "Armageddon time" na Mostra de Cinema de S�o Paulo com um adesivo pr�-Lula colado no peito, tr�s anos ap�s dizer que o cinema brasileiro ia ter que dialogar com Bolsonaro e, depois, perceber que o di�logo era improv�vel.
"Eu vejo muito eco entre o Brasil de hoje e o per�odo em que o filme se passa. � curioso ver como o Brasil foi se assemelhar a situa��es que a gente abomina em outros lugares, como o que houve na Alemanha na Segunda Guerra. Ent�o, temos que fazer arte para ensinar tamb�m. Vem muita arte boa agora, para ensinar quem desaprendeu algumas coisas nos �ltimos quatro anos, a quem precisa lembrar de ser mais tolerante e de respeitar a verdade."
"Armageddon time" � mais um exemplar na safra de autobiografias que t�m sa�do do cinema recentemente -como "Belfast", de Kenneth Branagh, "Bardo, falsa cr�nica de algumas verdades", de Alejandro Gonz�lez I��rritu, e "The fabelmans", de Steven Spielberg.
Nele, Gray revisita sua inf�ncia, misturando realidade e fic��o para tecer um retrato do que foi crescer na Nova York da virada dos anos 1970 para os 1980. Vemos um alter-ego do cineasta na figura de Paul Graff, um menino de 12 anos de origem judaica que se torna amigo de um garoto negro chamado Johnny, que repetiu na escola e foi parar em sua turma.
Contraste
Surge da� um contraste entre o lar do primeiro - est�vel e mon�tono, de uma classe m�dia inegavelmente americana - e o do segundo, que vem de uma fam�lia que enfrenta problemas enraizados no racismo estrutural. Certo dia, a dupla � pega fumando maconha no banheiro da escola e Paul, al�m de levar uma surra do pai, acaba parando num col�gio de elite onde o rigor dos ternos e gravatas denuncia a inquebr�vel disciplina.
� com hipocrisia escancarada que os pais do protagonista, vividos por Anne Hathaway e Jeremy Strong, se referem � amizade dele com Johnny. Sugerem que a negritude do menino o credencia para a marginalidade e que, portanto, ele � uma m� influ�ncia para o filho - de uma insol�ncia que, aos seus olhos, nada tem a ver com a cria��o que lhe foi dada.
Ao mesmo tempo, fazem cara de choro e frustra��o diante do notici�rio, questionando onde � que o pa�s vai parar agora que elegeu um radical como Reagan, se as pessoas n�o t�m compaix�o, se n�o h� fim para o preconceito.
"Eu lembro da minha m�e dizendo constantemente que haveria uma guerra nuclear ap�s a vit�ria do Reagan. Havia um sentimento de um armagedom se aproximando na minha casa", disse Gray sobre sua inf�ncia, em conversa com a imprensa durante o Festival de Cannes.
"A hist�ria � muito complexa e tem muitas camadas, mas h� momentos de mudan�as de paradigma, para o bem ou para o mal. Foi nesse per�odo da hist�ria, por exemplo, que a desigualdade social se alastrou, e n�s subestimamos essa virada da d�cada enquanto ponto de inflex�o."
Almofadinhas
Nesse debate mordaz entre negros e brancos, ricos e pobres, crist�os e judeus, "Armageddon time" encontra espa�o para mostrar em cena a fam�lia Trump. No novo col�gio, Paul conhece um grupo de almofadinhas que tem como passatempo disparar ofensas a minorias e, num evento, assiste a um discurso do pai de Donald.
A irm� do ex-presidente, Maryanne, sobe tamb�m ao palco e diz se orgulhar de ter alcan�ado o sucesso por esfor�o pr�prio, n�o com "apertos de m�o". Em meio a tantos debates sobre meritocracia hoje, a fala parece tirada do dia a dia, n�o de um filme ambientado h� quatro d�cadas.
Quem se op�e ao discurso elitista escancarado, nesse caso, e velado, no caso dos pais de Paul, � curiosamente o mais velho dos personagens em cena. O av� do menino, papel de Anthony Hopkins, fala para ele sobre a import�ncia de n�o esquecer de onde veio e de sonhar - em ser artista, no caso.
Numa conversa emotiva, conta ainda sobre a persegui��o que seus antepassados sofreram por serem judeus, sobre a fuga da Europa totalit�ria para um ideal de "Am�rica" que parece desfalecer diante de seus olhos.
Se o ciclo que o espectador de "Armageddon time" v� � o do hoje repetindo os anos 1980, o que os personagens veem � o dos anos 1980 repetindo a Segunda Guerra Mundial.
Carregando um discurso historicamente comovente para a turma de Hollywood, em tempos como os de hoje e com atua��es que competem por aten��o em cena, "Armageddon time" j� � ventilado como um dos poss�veis indicados ao Oscar do ano que vem. Teixeira conta que a campanha est� a todo o vapor, em especial para as categorias de filme, roteiro original e ator e atriz coadjuvantes, para Strong e Hathaway, nesta ordem.
Se Teixeira j� bateu na trave com "Me chame pelo seu nome", Gray parece estar, a cada projeto que assina, � espreita da estatueta dourada. Ele nunca foi indicado, apesar de "Ad Astra", "Era uma vez em Nova York" e tantos outros terem ca�do no burburinho pr�-Oscar. S� na mostra competitiva de Cannes ele j� esteve cinco vezes, mas saiu sempre de m�os vazias.
O produtor carioca acha que essa hist�ria pode mudar em breve e, em Cannes, ouviu o mesmo de Michael Barker, presidente da Sony Classics, que esteve ao seu lado na campanha de pr�mios de "Me chame pelo seu nome" e que profetizou que, da Riviera Francesa, "Armageddon time" sairia sem nada - mas que n�o podia dizer o mesmo sobre o Oscar.
“ARMAGEDDON TIME”
(EUA, Brasil, 2022, 115 min.). Dire��o: James Gray. Com Anne Hathaway, Jeremy Strong e Anthony Hopkins. Classifica��o: 16 anos. Em cartaz no Cineart Ponteio 4 (16h40 e 21h15), no Cinemark Diamond Mall (17h45 e 21h15) e no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 14h e 20h30).