
"Candeias captou aspectos do povo brasileiro de uma maneira que poucos cineastas conseguiram, absorvendo as limita��es de produ��o impostas e devolvendo uma verdade e uma inventividade impressionantes"
Eug�nio Puppo, cineasta
Ozualdo Candeias inspeciona a tampa de um bueiro em uma obra na zona oeste de S�o Paulo. Ele quebra o cimento e averigua o ferro da estrutura. Mas em vez da bitola de tr�s oitavos, encontra um vergalh�o mais fino que o padr�o exigido pela construtora.
“N�o deu outra. Embargou a obra, tiveram que quebrar e refazer tudo”, diz o t�cnico de cinema Virg�lio Roveda, vulgo Ga�cho, ao se lembrar do colega bigodudo que trabalhava como funcion�rio p�blico da prefeitura, caminhoneiro e tamb�m cineasta. “Ele era muito caxias.”
Foi com esse mesmo jeit�o que Candeias p�s Roveda na equipe de um filme, em 1967. “Vem c�, voc� sabe ler e escrever? Ent�o vai anotando o que eu falar”, disse o diretor, entregando claquetes, folhas de continuidade e o roteiro para o rapaz.
Vestido de noiva
Aflito, ele corria atr�s do diretor, que comandava quatro personagens pelo Centro de S�o Paulo e �s margens do Rio Tiet� antes de Paulo Maluf.
Ganhavam a tela figuras miser�veis, pescadas da vida ou de jornais pitorescos – como a mulher negra, vivida por Val�ria Vidal, que decide nunca mais tirar o vestido de noiva depois de levar um “toco” no altar.
“Toda vida eu fui isso, mas nunca tinha me preocupado”, afirmou o cineasta quando decidiu que buscaria a poesia bruta desses seres.

Depois de enfrentar a produ��o prec�ria – que ao menos permitiu a Ga�cho dormir numa pens�o em vez de passar a noite num caix�o da sinagoga-est�dio de Jos� Mojica Martins, o Z� do Caix�o –, o t�cnico ficou radiante ao ver seu nome na telona como assistente de dire��o de “A margem”. Nascia ali n�o s� o primeiro t�tulo da longeva parceria entre os dois, como tamb�m a fita que batizaria o cinema marginal paulistano.
Essa vis�o particular criou ainda t�tulos como o faroeste caboclo “Meu nome � Tonho”, de 1969, transp�s a Dinamarca de Hamlet para um fazend�o em “A heran�a”, de 1970, e retratou trabalhadoras de canaviais que recorriam ao meretr�cio em “Aop��o ou As rosas da estrada”, de 1981.
“Candeias captou aspectos do povo brasileiro de uma maneira que poucos cineastas conseguiram, absorvendo as limita��es de produ��o impostas e devolvendo uma verdade e uma inventividade impressionantes”, diz o produtor Eug�nio Puppo, atual guardi�o da obra do diretor e autor do filme-ensaio “Ozualdo Candeias e o cinema”.
Obras desse marginal entre marginais, que nunca teve grandes bilheterias, ser�o exibidas na Cinemateca Brasileira, em S�o Paulo, desta quinta (8/12) a domingo (11/12), em c�pias restauradas. No streaming Ita� Cultural Play, alguns longas e m�dias, como “Z�zero”, est�o dispon�veis.
Morto h� 15 anos, o motivo da celebra��o � o centen�rio de nascimento do cineasta, pelo menos � o que diz seu RG. Registrado em Cajobi, no interior de S�o Paulo, em 1922, Candeias acreditava ter nascido quatro anos antes em alguma cidade de S�o Paulo ou do Mato Grosso.
Candeias veio por uma estrada diferente da maioria dos seus colegas. Bem mais velho do que expoentes da Boca do Lixo, como Mojica, Lu�s S�rgio Person e Carlos Reichenbach, foi militar durante a Segunda Guerra, chegando a sargento da Aeron�utica, o que acabou garantindo a ele uma vaga como funcion�rio p�blico na prefeitura paulistana.
Disco voador
No in�cio dos anos 1950, come�ou a tocar um neg�cio de transporte de cargas pelo pa�s e p�s as m�os na sua primeira filmadora, com um objetivo inusitado. “Era o momento em que estava pintando muito disco voador por aqui”, diz ele em depoimento para o livro “Pedras e sonhos no Cineboca”, do jornalista Moura Reis.
N�o � preciso dizer que seus filmes nunca mostraram alien�genas, mas puseram na telona um Brasil que muitos, inclusive do Cinema Novo, preferiam n�o ver.
“Candeias entendia a pobreza de maneira profunda, sabia vestir seus pobres, atribuir a eles gestos que eram e n�o apenas significavam essa condi��o”, escreveu o cr�tico de cinema In�cio Araujo, ao relembrar sua primeira impress�o sobre “A margem”.
N�o � com deboche que Candeias mostra em “Aop��o” um caminhoneiro dando leves marteladas nas n�degas de uma prostituta e no pr�prio p�nis para checar sua ere��o, antes de iniciar o ato usando graxa em vez de vaselina.
Da mesma forma, atores negros aparecem nos seus filmes menos por milit�ncia do que pelo olhar objetivo para o entorno. Mesmo assim, a Of�lia de Zuleica Maria em “A heran�a” despertou rea��es negativas de cr�ticos, que viram a escolha como ofensiva a Shakespeare.

Bangue-bangue e gargalhadas
In�cio Araujo adorou “Meu nome � Tonho”, bangue-bangue de incesto e vingan�a em que se mata e morre �s gargalhadas, e foi atr�s de Candeias na Boca. Como Ga�cho, acabou v�tima dos seus improvisos. “Depois do bom-dia, ele me perguntou: 'Voc� quer fazer um filme?'.” Acabou creditado como assistente de dire��o de “A heran�a”.
“Com o Candeias aprendi que a tampa de caldeir�o � um bom rebatedor”, diz In�cio Araujo. Ou que era poss�vel decidir o roteiro no dia ap�s reler uma cena da pe�a.
Sem dinheiro para dublar a fita, Candeias fez um filme quase mudo e aproveitou cantos de p�ssaros e sons de animais para dar voz aos personagens. Encaixou legendas nas cenas em que o texto era indispens�vel e reservou a m�sica para a cena em que a trai��o de Cl�udio � cantada numa moda de viola.
Candeias sabia mover a c�mera de forma a cobrir as falhas dos atores. Ao mesmo tempo em que tinha trato com an�nimos, sabia aproveitar a camaradagem de nomes como B�rbara Fazio ou de David Cardoso.
“Ele era um Charles Bronson”, afirma o rei da pornochanchada. Cardoso, al�m de ter vivido Hamlet, produziu “Ca�ada sangrenta” e chamou Candeias para dirigir este que foi seu primeiro longa colorido, em 1974 – cheio de a��o, mulher pelada e paisagens de Mato Grosso, para honrar os equipamentos fornecidos pelo governo.
“Ele n�o dava muita explica��o, n�o sentava com o ator. Mas sempre tinha uma forma distinta de fazer as cenas”, diz Cardoso. “Ele foi o mais primitivo dos cineastas”. O adjetivo, oportuno � primeira vista, n�o estava entre os preferidos do diretor, autodidata que aprendeu na marra com livros t�cnicos estrangeiros.
N�o � � toa que se esquivava quando os cr�ticos comparavam, por exemplo, a canoa de “A margem” com Caronte, o barqueiro do Hades. “Isso � ignor�ncia. N�o sabem que antigamente pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem � outra”, rebateu Candeias anos depois.
“Essa postura anti-intelectualista estava em voga entre os cineastas paulistas no fim dos anos 1960”, diz Puppo, o produtor. “Candeias tinha bastante repert�rio, cursou o Semin�rio de Cinema do Masp, onde teve contato com muitas produ��es.”
Ainda que raros, � poss�vel encontrar depoimentos em que ele cita Pudovkin, Eisenstein, Bu�uel e outros autores que norteavam sua objetiva.

Cinema de autor radical
O apuro t�cnico e o talento para improvisar faziam com que a versatilidade de Candeias se confundisse por vezes com teimosia, acredita Ga�cho. Afinal, ele mirava um cinema de autor radical, cuidando de tudo, da c�mera, do roteiro at� os figurinos, isso quando ele mesmo n�o atuava. E se zangava quando n�o o obedeciam – sorte que o assistente sabia o que fazia.
Ga�cho teve sua carreira contada no livro “O coringa do cinema”, do jornalista Matheus Trunk, e n�o � � toa que o t�cnico tenha se dado tanto com Candeias. De coringa para coringa, foram carne e unha, mas brigaram ap�s “Aop��o”.
No final dos anos 1970, a Boca do Lixo come�ava a decair apostando no porn�. Ga�cho, que havia trabalhado em sucessos de bilheteria de Mazzaropi e em publicidade, arriscou ter a pr�pria empresa, a Prodsul. Com pel�cula vencida, produziu “Aop��o”, feito por estradas e pequenas cidades do Maranh�o ao Rio Grande do Sul. O filme teve de ser finalizado com ajuda da Embrafilme e chegou a ser premiado no Festival de Locarno na �poca.
A rusga se deu na prepara��o para o projeto seguinte, “Manel�o, o ca�ador de orelhas”, que tamb�m teria dinheiro da estatal. “A Prodsul administrava o projeto juridicamente. Mas na hora o Candeias mudou de ideia, disse que n�o queria mais fazer conosco”, diz Ga�cho.
Seria apenas um mal-entendido se a rescis�o do contrato com a Embrafilme n�o tivesse gerado uma d�vida astron�mica para Roveda, que vendeu alguns de seus bens para se livrar dela. Ainda ficou como vil�o da hist�ria. Ga�cho diz n�o ter ressentimentos, mostrando o p�ster de “Aop��o” na sala do seu apartamento.
Almir Sater antes de 'Pantanal'
Sem o parceiro, Candeias ainda faria filmes provocativos, como “A freira e a tortura”, de 1983, produ��o de David Cardoso presa pela censura; “As Bellas da Billings”, 1986, despedida da Boca, em que Almir Sater vive um violeiro tr�s anos antes de seu estrelato em “Pantanal”; e “O vigilante”, de 1992, nunca lan�ado, v�tima da Era Collor.
Em paralelo, fez curtas autorais e encomendas em v�deo. Com sua c�mera, Candeias viu as produtoras darem lugar �s lojas de eletroeletr�nicos no Centro de S�o Paulo e seguiria frequentando a Rua do Triunfo, onde se concentrava a gente de cinema, at� a morte, � espera de quem aproveitasse sua expertise.
CEM ANOS DE OZUALDO CANDEIAS
• Filmes dispon�veis na plataforma Ita� Cultural Play (https://assista.itauculturalplay.com.br/Home)