
Quando um ator recebe o Oscar, � de se esperar que sua carreira ganhe impulso, que bons roteiros inundem sua mesa poucas semanas ap�s a honraria. N�o foi isso que aconteceu com Will Smith, que ganhou a estatueta de melhor ator este ano.
Ao contr�rio. Sua carreira foi posta em xeque j� enquanto ele deixava o Dolby Theatre, em Los Angeles, com o homenzinho dourado em m�os. Isso porque, minutos antes da vit�ria, ele acertou um tapa no rosto do comediante Chris Rock, que achou de bom tom fazer piada com a condi��o m�dica da mulher de Will, Jada Pinkett Smith.
A turba nervosa da internet respondeu � agress�o instantaneamente, se dividindo entre aqueles que defendiam o que seria um gesto de devo��o e os que condenavam a viol�ncia televisionada para milh�es de espectadores.

Hollywood penou para navegar pela pol�mica, chegou a paralisar projetos de Smith e a banir o ator do Oscar por uma d�cada. Por�m, por mais que as partes envolvidas tenham lentamente deixado o caso morrer, era de se esperar que ele ressuscitaria t�o logo Smith retornasse �s telas.
Nove meses depois, isso ocorre envolto em aten��o, certo temor e elogios – nova indica��o ao Oscar n�o parece ser del�rio, mas possibilidade real – com “Emancipation: Uma hist�ria de liberdade”, filme de Antoine Fuqua que acaba de estrear na plataforma Apple TV+.
“Espero que o Antoine, que provavelmente fez o melhor trabalho de sua carreira, e toda a equipe do filme n�o sejam penalizados pelas minhas atitudes, at� porque esta � uma hist�ria importante”, diz Smith em conversa com jornalistas, num raro momento em que driblou as muralhas que seu time ergueu para blind�-lo das inevit�veis lembran�as do Oscar.
“Sou um artista consumido pela import�ncia da mensagem que seu trabalho deixa”, acrescenta, no tom de penit�ncia e amor ao pr�ximo que pautou toda a conversa. “E a mensagem de Peter � sobre como se equilibrar na balan�a entre sofrimento e salva��o.”
Inspira��o para C�zanne
Peter � o nome do personagem de Will em “Emancipation”, criado a partir da figura real de Gordon ou “Whipped Peter”, o "Peter Chicoteado", como ficou conhecido.
Fotos dele com as costas desfiguradas pelo a�oite rodaram o mundo, ajudando a comprovar o �bvio em meio � discuss�o abolicionista que se formava na segunda metade do s�culo 19: que os negros usados como m�o de obra nas Am�ricas eram submetidos a abusos f�sicos extremos e rotineiros.
Este corpo estampa ainda o quadro “Cipi�o”, de Paul C�zanne, que comp�e o acervo do Museu de Arte de S�o Paulo (Masp).

O longa come�a com o personagem sendo separado de sua fam�lia, numa planta��o do estado americano de Louisiana. Ao longo de mais de duas horas, mostra o caminho tortuoso que Peter tomou para n�o ser capturado, at� chegar a um acampamento nortista. Isso em meio � Guerra Civil Americana, que opunha abolicionistas e os confederados do sul, que queriam manter os negros como escravos.
Alistado, Peter – ou Gordon – inspirou, com suas fotos, milhares de outros negros a fazerem o mesmo, a fugirem dos brancos escravocratas e lutar ao lado do chamado Ex�rcito da Uni�o. O protagonista o faz para poder reencontrar a mulher e os filhos.
“N�s estamos retratando a escravid�o nos Estados Unidos, mas este n�o � um problema americano, tampouco um problema de negros ou brancos. � uma quest�o humana. Trabalhar neste filme me fez perceber que temos quest�es em nossos cora��es que precisam ser resolvidas coletivamente, porque quando pensamos de forma individualista, tendemos a repetir os pecados do passado”, diz o ator.
Smith perdeu cerca de 20kg para fazer o filme. E, repetindo algo que faz desde os tempos seminais de “Um maluco no peda�o”, reivindicou uma parcela da produ��o, na esperan�a de fazer “acender nos cora��es dos espectadores algum n�vel de compaix�o”.
Brasa na bochecha
N�o ser� dif�cil fazer isso. A jornada do protagonista de “Emancipation” � interrompida com frequ�ncia por cenas atrozes de agress�o. Nos primeiros 10 minutos, a c�mera de Fuqua, que j� retratou a viol�ncia em “Dia de treinamento” e “O protetor”, foca um escravo queimado com brasa ardente numa das bochechas.
Pouco depois, gritos desesperados se alternam com o som de chibatadas, causando espasmos de afli��o no espectador sem nem precisar p�r na tela, de forma visual e expl�cita, o sofrimento ali retratado. Um dos personagens vistos em cena chega a levar as m�os �s orelhas.
“Se voc� v� um negro com uma ideia, o ponha no ch�o”, diz um dos brancos da hist�ria, sintetizando a natureza selvagem do grande vil�o de “Emancipation”, interpretado por Ben Foster. A ele se junta, no elenco principal, a zimbabuense-australiana Charmaine Bingwa, que frisou o clima de leveza e descontra��o naquele set pr�-Oscar, apesar de toda a viol�ncia que os cercava. Foi o mecanismo que todos encontraram para enfrentar as pesadas p�ginas do roteiro.
“Emancipation” n�o � exatamente inova��o numa ind�stria que, todos os anos, lan�a alguma trama de or�amento robusto e grandes pretens�es sobre a escravid�o nos Estados Unidos. � quase o mea culpa da Hollywood que tenta vender a imagem de progressista e libert�ria, mas que s� recentemente passou a tomar a��es concretas para aplacar a heran�a centen�ria desse mesmo sistema escravocrata.
Outro produtor do longa ilustrou bem essa falta de tato ao lidar com o problema, quando caminhou pelo tapete vermelho segurando a foto original de Gordon cheio de cicatrizes nas costas.
Joey McFarland, que � branco, disse que queria um peda�o do soldado junto dele na exibi��o do filme, mas foi prontamente criticado por expoentes do movimento negro, que viram na atitude a espetaculariza��o do sofrimento.
McFarland se desculpou, disse que aquilo n�o passou de tentativa de frisar a import�ncia de continuarmos debatendo o passado escravocrata e segregacionista dos Estados Unidos, e que, com o filme, queria dar ao p�blico “a oportunidade de apreciar o hero�smo” daquela figura.

'Emancipation' mostra que os negros se salvaram, ao contr�rio do que refor�am v�rias narrativas sobre um suposto grande salvador branco'
Charmaine Bingwa, atriz
Protagonismo negro
A fala entra em conflito com o que a atriz Charmaine Bingwa disse em entrevista, ao tentar distanciar “Emancipation” de tantos outros longas que, no passado, abriram o debate sobre a escravid�o e o racismo.
“Narrativamente, o longa � diferente, porque tem elementos de filmes de g�nero, de aventura, por exemplo. Mas mais importante, 'Emancipation' mostra que os negros se salvaram, ao contr�rio do que refor�am v�rias narrativas sobre um suposto grande salvador branco”, afirma a atriz.
“� importante lembrarmos que n�s fizemos isso por n�s mesmos e, nos tempos polarizados em que vivemos, � imprescind�vel que a gente honre nosso passado”, defende.