Ricardo Darín e os demais atores de 'Argentina, 1985', de pé, no corredor do Palácio dos Tribunais, em Buenos Aires, vestidos como seus personagens

Cr�ticos de cinema destacam a "solidez dramat�rgica" e o "excepcional" uso de g�neros pela cinematografia argentina, capaz de produzir longas como o de Santiago Mitre protagonizado por Ricardo Dar�n

Prime Video/Divulga��o

"'Argentina, 1985' � uma li��o, ainda que enquanto cinema n�o tenha novidade nenhuma, pois � um filme linear, realista. Mas ele toca num problema que o Brasil n�o tem como resolver ainda, que � a mem�ria como justi�a"

Maria Luiza Rodrigues Souza, autora de "Arquivos da derrota: O cinema p�s-ditatorial no Brasil e na Argentina"



Certeza n�o h�, mas a probabilidade de “Argentina, 1985” estar entre os indicados a Melhor Filme Internacional no Oscar 2023, no an�ncio que ser� feito na pr�xima ter�a-feira (24/1), � grande. Uma vitoriosa trajet�ria em pr�mios, iniciada em setembro passado no Festival de Veneza, com o Fipresci (da cr�tica internacional), e refor�ada pelo recente Globo de Ouro, creditam o filme de Santiago Mitre. 

O longa-metragem lan�ado pelo Prime Video suscitou discuss�es sobre o acerto de contas pela viol�ncia e o horror perpetrados por uma ditadura. Na segunda metade do s�culo 20, Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, para falar somente de pa�ses do Cone Sul, sofreram golpes de Estado impetrados por militares. O cinema vem, at� hoje, passando a limpo a hist�ria, seja por meio da fabula��o ou da recria��o de fatos. 

Dito isto, a pergunta feita diante da repercuss�o de “Argentina, 1985” � como o Brasil, com uma produ��o de filmes pol�ticos muito relevantes desde o Cinema Novo, ainda n�o fez um filme semelhante ao de Mitre. A resposta mais �bvia � que o que ocorreu no p�s-ditadura foi radicalmente diferente nos dois pa�ses. 

“Os filmes pol�ticos brasileiros tratam sempre de sobreviv�ncia, resist�ncia, nunca d�o conta de uma proposta de futuro, pois n�o houve fechamento aqui. Sentimos, inclusive, uma aceita��o do que ocorreu no per�odo (da ditadura). Os fantasmas continuam assombrando”, comenta o cr�tico e professor de cinema Jos� Ricardo da Costa Miranda.

Mas h� tamb�m quest�es particulares, que dizem mais respeito ao cinema do que � pr�pria hist�ria. Miranda comenta que a produ��o argentina mostra uma possibilidade de ir adiante. “Seria uma dor que eles carregariam para sempre, algo que os constitui, mas eles conseguem circunscrever a quest�o.” Para ele, a produ��o argentina pol�tica voltada para o cinema tem o foco “na ideia do �ntimo para fazer uma esp�cie de an�lise da �poca.”
 
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Vit�rias

Os exemplos mais claros s�o os dois Oscars de Melhor Filme Estrangeiro que o pa�s vizinho ostenta: “A hist�ria oficial” (1985), de Luiz Puenzo, sobre uma professora que descobre que a filha que adotou pode ser de presos pol�ticos, e “O segredo dos seus olhos” (2009), de Juan Jos� Campanella, que acompanha um ex-policial que retorna a Buenos Aires disposto a passar a limpo seu passado, escrevendo um livro sobre seu envolvimento no assassinato de uma jovem �s v�speras do golpe militar.

“O primeiro tem uma pegada de drama; o segundo, de policial. S�o filmes que abordam o per�odo a partir do g�nero. E, geralmente, � o g�nero a chave para o espectador m�dio, que se liga nos c�digos que conhece (suspense, policial, drama) para se vincular com a hist�ria. O cinema argentino tem feito isso de forma excepcional.”

“Argentina, 1985” tamb�m vai pelo mesmo caminho, ao acompanhar o chamado Julgamento das Juntas Militares, que processou os militares-l�deres da ditadura. O p�blico conhece a hist�ria pol�tica por meio da trajet�ria dos dois promotores encarregados do caso, Julio Strassera (Ricardo Dar�n) e Luiz Moreno Ocampo (Peter Lanzani), ambos personagens reais.

“O cinema argentino domina melhor os c�digos da narrativa cl�ssica (do que o brasileiro)”, comenta o cr�tico e programador de cinema Marcus Mello. “’Argentina, 1985’ tem tudo no lugar. A narrativa flui de uma maneira f�cil de ser seguida, ‘abra�a’ o espectador, que embarca nela. A Argentina sempre teve uma preocupa��o com a solidez dramat�rgica, coisa que n�o se v� em muitos roteiros no Brasil.”

Sem compara��o

Mello cita um longa brasileiro tamb�m baseado em fatos ocorridos durante a ditadura e que alcan�ou reconhecimento internacional, sendo indicado ao Oscar. “N�o d� para comparar, tanto em termos de narrativa quanto de atua��o, ‘Argentina, 1985’ com ‘O que � isto, companheiro’ (1997, Bruno Barreto). A estrutura dramat�rgica e o conjunto de atua��es � muito melhor resolvido (no caso do filme argentino).”

Para ele, tal fato tem muita rela��o tamb�m com forma��o. “Nos anos 1990, falava-se que a Argentina era o pa�s que mais tinha estudantes de cinema no mundo. H� um investimento de roteiristas, realizadores e uma tradi��o dramat�rgica muito grande. Eles v�o muito ao teatro, ao cinema, e n�o t�m uma rela��o com a telenovela como os brasileiros. Alguns filmes nacionais, inclusive sobre a ditadura, t�m uma estrutura novelesca. E isto no mau sentido”, comenta Mello.

Ele exemplifica a influ�ncia da TV com o longa-metragem “Olga” (2004, de Jayme Monjardim). “Um grande epis�dio foi transformado em um novel�o mexicano. Infelizmente, na nossa cultura, os c�digos narrativos da telenovela respingam onde n�o deveriam para atrair mais espectadores.”
 
 

Professora aposentada da Universidade Federal de Goi�s (UFG), a antrop�loga Maria Luiza Rodrigues Souza � autora de “Arquivos da derrota: O cinema p�s-ditatorial no Brasil e na Argentina” (2014), fruto de sua tese de doutorado na Universidade de Bras�lia (UnB). Na obra, ela analisa filmes brasileiros e argentinos da d�cada de 1980 at� os anos 2000. 

Entre os longas analisados est�o, do lado argentino, o supracitado “A hist�ria oficial” e “Kamchatka” (2002), de Marcelo Pi�eyro. Da produ��o nacional est�o, por exemplo, “A��o entre amigos” (1998), de Beto Brant, e “Quase dois irm�os” (2005), de L�cia Murat, cineasta e ex-integrante da luta armada, que, presa e torturada nos Anos de Chumbo, rel� o per�odo por meio de seus filmes.

Dedo na ferida

“Quando comecei a pesquisa, vi que a Argentina tinha um material variado nas artes muito contundente sobre a mem�ria do terror. O Brasil sempre faz uma coisa meio enviesada, a hist�ria � mais distanciada, como se a gente n�o conseguisse colocar o dedo na ferida. A Argentina vai direto ao ponto, com filmes muito realistas”, diz Maria Luiza.

Como sua pesquisa n�o chegou � atualidade, n�o est� ali, por exemplo, “Marighella” (2019), de Wagner Moura, que ela considera um “marco”. “Mas veja quanto tempo o Brasil demorou para falar de seus problemas. A rela��o com as For�as Armadas � um eterno problema. Parece que n�o se pode falar sobre isto. ‘Argentina, 1985’ � uma li��o, ainda que enquanto cinema n�o tenha novidade nenhuma, pois � um filme linear, realista. Mas ele toca num problema que o Brasil n�o tem como resolver ainda, que � a mem�ria como justi�a”, afirma.

Historiadora Heloisa Starling está séria, olhando para o interlocutor, durante entrevista

Historiadora Heloisa Starling diz que transi��o democr�tica brasileira foi negociada, e n�o decorr�ncia da derrota dos militares

Youtube/reprodu��o

"� nesta fic��o engenhosa de na��o, de uma sociedade racista e violenta, que reemerge o bolsonarismo. Apagar o passado � ruim para a democracia, pois ela perde a refer�ncia e se cria uma ideia de impunidade"

Heloisa Starling, historiadora


“N�s n�o enfrentamos o passado”

H� semelhan�as, como a Guerra Fria como pano de fundo, os grupos de esquerda apresentados como amea�a � ordem nacional, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de presos pol�ticos. No entanto, as ditaduras brasileira (1964-1985) e argentina (1976-1983, esta a �ltima e mais sanguinolenta delas, pois entre 1966 e 1973 os militares tamb�m governaram o pa�s ap�s um golpe de Estado) se diferenciam radicalmente em sua presta��o de contas.

“A Guerra das Malvinas (1982) fez a diferen�a. Como os militares foram derrotados, houve uma brecha maior para haver um enfrentamento pol�tico”, explica a historiadora e escritora Heloisa Starling, professora da UFMG. “Aqui, a transi��o n�o foi feita por uma derrota militar. Ela foi negociada, houve um processo de abertura lento e gradual organizado pelo (general) Geisel.”

De acordo com ela, o hist�rico julgamento que em 1985 revelou os horrores da ditadura na Argentina aumentou os debates no Brasil. “A sociedade foi para a rua, as pessoas discutiram a democracia. Nada diminui o vigor do movimento pela redemocratiza��o, mas a transi��o foi negociada.”

Diante da negocia��o, n�o houve um acerto propriamente – entre os sul-americanos, o Brasil � o pa�s que menos julgou e puniu crimes de um governo ditatorial. Para Heloisa, a quest�o � recorrente na hist�ria brasileira.
 
“N�s n�o enfrentamos o passado, nossa caracter�stica sempre foi a de tentar a concilia��o e o acordo. Negamos a escravid�o, a estrutura que fundou o Estado brasileiro. Em torno disto surgiu uma sociedade hier�rquica, violenta, que criou uma epiderme civilizat�ria de valores, como disse Joaquim Nabuco, um pensador muito importante do s�culo 19.”

As consequ�ncias chegam aos dias de hoje. “� nesta fic��o engenhosa de na��o, de uma sociedade racista e violenta, que reemerge o bolsonarismo. Apagar o passado � ruim para a democracia, pois ela perde a refer�ncia e se cria uma ideia de impunidade”, arremata Heloisa.