Guarda de pé em frente às portas fechadas do mercado de Huanan

Guarda vigia o mercado de Huanan, na prov�ncia chinesa de Wuhan, que foi fechado depois de ter sido apontado como epicentro da epidemia

Hector RETAMAL / AFP - 24.jan.2020

Em meados de 2020, o escritor norte-americano David Quammen, de 74 anos, se viu diante de um novo desafio – que poderia se tornar um problema. Depois de 15 t�tulos sobre a ci�ncia (e outros tantos de fic��o), ele assinou contrato para um livro sobre a pandemia de COVID-19, que deveria ser entregue em dezembro de 2021.

Quammen, que havia emplacado no in�cio da crise sanit�ria um bestseller escrito quase uma d�cada antes – “Cont�gio”, de 2012, em que ele investigou o fen�meno spillover (transbordamento), quando pat�genos que afetam animais contaminam os seres humanos, basicamente o que ocorreu com o Sars-CoV-2 – tinha alguns dificultadores a enfrentar na empreitada. 

Pela primeira vez, escreveria sobre um tema que estaria sendo tratado por dezenas de outros autores – “Geralmente meus livros s�o sobre quest�es que ningu�m mais est� abordando”. Mais: suas narrativas instigam o p�blico tamb�m porque s�o escritas com muita pesquisa de campo – Quammen est� nos locais dos acontecimentos, a maior parte deles cen�rios remotos e ex�ticos. Pois teria que escrever o novo livro sem sair de casa – e, al�m dos cuidados a serem tomados diante da pandemia, havia ainda os joelhos operados recentemente. 

“Sem f�lego – A corrida cient�fica para derrotar um v�rus mortal” (Companhia das Letras) foi todo realizado do escrit�rio de Quammen em sua casa, em Bozeman, no estado de Montana. Durante os primeiros seis meses de 2021, o escritor realizou, por meio de videoconfer�ncia, 95 entrevistas com cientistas que estavam pesquisando sobre o v�rus da COVID-19. E seria ele, o causador de 6,8 milh�es de mortes no mundo (at� o momento, segundo dados da OMS), o seu protagonista.

Com uma escrita �gil e acess�vel, mas sempre respeitando o rigor cient�fico, o escritor perfaz o caminho do Sars-CoV-2 desde os primeiros alertas, vindos da China, no final de 2019. Ele consegue chegar ao leitor comum porque tamb�m recapitula as trajet�rias destes pesquisadores. Por meio de longas conversas, Quammen consegue levar o p�blico a sentir o mau cheiro que ainda hoje povoa o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, em Wuhan, tr�s anos ap�s seu fechamento.

O livro come�a com as tentativas de pesquisadores mundo afora de decodificar o material gen�tico do v�rus e vai at� o final de 2021, quando a variante �micron trouxe uma onda mundial de novos casos. “Aprendemos que este v�rus � ainda capaz de evoluir, de derrotar, ou ao menos contornar nossas defesas”, afirma Quammen, em entrevista ao Estado de Minas.

David Quammen, autor do livro Sem fôlego, com calça jeans e as mãos nos bolsos, olha para a câmera

David Quammen, autor do livro "Sem f�lego - A corrida cient�fica para derrotar um v�rus mortal"

Louise Jones/Divulga��o

"Sabemos que teremos novos v�rus perigosos que poder�o chegar at� os humanos e causar doen�as. Temos ferramentas para observar e conter os surtos. O que precisamos tamb�m � de vontade pol�tica, dinheiro e apoio do p�blico para que isto aconte�a"

David Quammen, escritor



Um dos trunfos de “Sem f�lego” � que o senhor recupera, passo a passo, a hist�ria do v�rus. De certa maneira foi como montar um grande quebra-cabe�as, n�o?
Quando comecei a escrever, eu tinha as 95 entrevistas (que duraram, em m�dia, 1h30, cada uma), impressas. N�o gosto de criar esbo�os, estrutura com t�picos. Gosto que meus livros cres�am de forma mais org�nica. Mas eu tinha um esbo�o b�sico, sabia que tinha quest�es que iria abordar: a evolu��o do v�rus, o desenvolvimento de vacinas, falsas ideais como a da imunidade de rebanho. Fiquei me perguntando sobre de quem seria a primeira voz para esta hist�ria. A� me lembrei de Henry Li, o cientista chin�s que, em dezembro de 2019, na Filad�lfia, conversou com colegas em Xangai (sobre um surto de um “pat�geno desconhecido” em Wuhan). Ele trabalhava no laborat�rio com Susan Weiss (autoridade em coronav�rus da Universidade da Pensilv�nia). Eu a inclu� nesta parte tamb�m, o que me levou a Marjorie Pollack, editora do Promed-mail (servi�o de e-mail que divulga informa��es sobre casos de doen�as em todo o mundo). Fui caminhando desta maneira, hora ap�s hora, para encontrar as v�rias vozes de cada parte da hist�ria.
  
Na �poca do lan�amento de “Cont�gio” (publicado originalmente em 2012 e, no Brasil, em 2020), o leitor m�dio n�o sabia nada sobre v�rus e infec��es de origem animal. J� agora, no caso de “Sem f�lego”, este mesmo leitor est� mais bem informado sobre v�rus e pandemias. Para quem o senhor escreveu o livro?
Sempre penso no leitor m�dio; tanto por isso gosto de usar nos textos a linguagem que uso com as minhas entrevistas. Quero escrever para todo mundo. Na minha cabe�a, busco escrever para ser lido por todos. Sobre este livro, minha pr�pria irm� me disse que havia muitas quest�es t�cnicas, que havia pulado algumas partes. Eu disse: ‘N�o, voc� � uma mulher bem informada, n�o tenha medo da ci�ncia’. Por um lado, sempre penso neste p�blico. Mas, por outro, tamb�m penso nos cientistas. Espero que leiam meu livro, pois ser�o eles que v�o decidir se fui acurado ou n�o. E isto poder� determinar meu pr�ximo livro. Quero satisfaz�-los, mas tamb�m quero falar com o p�blico em geral como uma voz amiga, para que o ajude a entender as coisas.

Uma das quest�es que “Sem f�lego” deixa claro � de que n�o estamos seguros, mesmo dentro de nossas casas. No final da narrativa, o senhor prev� uma nova pandemia para este s�culo, que poder� ser, inclusive, pior. N�o d� para ser um pouco otimista diante de tudo o que ocorreu? 
Podemos ser otimistas, sim, pois temos a ci�ncia e ferramentas da sa�de para prevenir que a pr�xima amea�a se torne uma grande pandemia. Sabemos que teremos novos v�rus perigosos que poder�o chegar at� os humanos e causar doen�as. Temos ferramentas para observar e conter os surtos. O que precisamos tamb�m � de vontade pol�tica, dinheiro e apoio do p�blico para que isto aconte�a. � isto que escritores e jornalistas, pessoas que possuem a informa��o, t�m que ajudar as pessoas a entender: haver� amea�as de novas pandemias. Hoje estamos assistindo � gripe avi�ria H5N1 matando aves em todo o mundo. Ocasionalmente, isto pode chegar aos mam�feros. E toda vez que isto acontece, o v�rus ter� uma oportunidade de descobrir como infectar humanos. Se isto realmente ocorrer, � poss�vel hoje conter (a dissemina��o).

O que o pico de casos na China, no final de 2022, mostrou sobre a pol�tica de COVID zero?
Na minha opini�o, a pol�tica de COVID zero sempre foi fadada a falhar. Tony Fauci (um dos mais c�lebres imunologistas que atuaram na crise sanit�ria, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doen�as Infecciosas dos EUA e atual conselheiro m�dico do presidente Joe Biden) me disse: ‘Este v�rus � t�o nefasto e trai�oeiro, pois sua capacidade de transmiss�o � muito persistente’. A China pagou um pre�o muito alto com essa pol�tica de COVID zero. N�o acho que as medidas teriam evitado nada, como a onda t�o severa que chegou. Nos �ltimos dias foram apresentados n�meros oficiais dizendo que os casos est�o diminuindo na China. E h� muitas pessoas que contestam tais n�meros. 

O que, do alto de sua longa trajet�ria como escritor e divulgador cient�fico, o senhor aprendeu com a pandemia?
Todos aprendemos que este v�rus � ainda capaz de evoluir, de derrotar nossas defesas. Ou se n�o, ao menos de contornar nossas defesas. � um v�rus incrivelmente adapt�vel. Ao mesmo tempo, tivemos muito sucesso com o desenvolvimento das vacinas. A Pfizer e a Moderna foram muito efetivas e produzidas muito rapidamente, mais do que se esperava. Foi um al�vio. A Oxford AstraZeneca tamb�m o foi. Por outro lado, uma coisa que n�o dava para prever seriam os extensos argumentos sobre as origens do v�rus e sobre as vacinas que geraram uma onda enorme de nega��o da ci�ncia. O medo, a confus�o e acusa��es infundadas custaram muito em termos de vacina��o. Sobre a origem do v�rus, � quase certo que ela se deu na vida selvagem. Mas ainda hoje h� gente falando que veio de um vazamento de laborat�rio. Isto � dif�cil de provar, mas n�o h� nenhuma evid�ncia positiva que confirme. A desinforma��o afetou o radar de vacina��o. Muita gente n�o se vacinou por ignor�ncia e medo, e teve gente que n�o teve oportunidade, pois n�o havia vacinas suficientes. A �frica n�o foi vastamente vacinada, o que � um problema. Fiquei surpreso porque a �frica, � exce��o da �frica do Sul, n�o foi atingida t�o ferozmente pelo v�rus como se supunha. Pensei que uma cidade como Kinshasa (capital da Rep�blica Democr�tica do Congo e uma das tr�s maiores metr�poles daquele territ�rio) sofreria grandes ondas, e isto n�o ocorreu. O que � um grande e bem-vindo mist�rio. 

Capa do livro 'SEM FÔLEGO A CORRIDA CIENTÍFICA 
PARA DERROTAR UM VÍRUS MORTAL'

Capa do livro "SEM F�LEGO A CORRIDA CIENT�FICA PARA DERROTAR UM V�RUS MORTAL"

Companhia das Letras/Divulga��o

“SEM F�LEGO – A CORRIDA CIENT�FICA PARA DERROTAR UM V�RUS MORTAL”
• David Quammen
• Tradu��o: Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares
• Companhia das Letras (432 p�gs.)
• R$ 129,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)