Registro fotográfico de  Jeffrey Dahmer feito pela polícia mostra seu rosto de perfil e de frente

Imagens de Jeffrey Dahmer exibidas no document�rio "Conversando com um serial killer: O canibal de Milwaukee", dispon�vel na Netflix, que tem tamb�m vers�o ficcional da hist�ria do assassino

Netflix/Divulga��o

“Dahmer: Um canibal americano” (2022) ocupa o terceiro lugar entre as 10 s�ries em ingl�s da Netflix mais assistidas no mundo (em seus primeiros 28 dias de exibi��o). Em outubro passado, um m�s ap�s a estreia da fic��o de Ryan Murphy sobre a trajet�ria do psicopata que matou 17 homens, crimes que envolveram estupro, necrofilia e canibalismo, a mesma plataforma lan�ou uma vers�o documental da hist�ria. J� em sua primeira semana de exibi��o, “Conversando com um serial killer: O canibal de Milwaukee” ocupou o segundo lugar entre as s�ries mais vistas.

N�o � de hoje que os crimes ati�am a curiosidade. Dos tabloides na linha “espreme que sai sangue”, passando pelo cl�ssico do jornalismo liter�rio “A sangue frio” (1966), de Truman Capote, at� os programas sensacionalistas da TV, a vida real envolvida em sangue, facadas e sadismo sempre foi consumida por toda parte. Mais recentemente, com a explos�o do streaming, a produ��o de document�rios criminais, os chamados true crimes, encontrou sua morada. 

Com lan�amentos semanais, as hist�rias, seja em formato de longas-metragens ou de s�ries, se multiplicaram. O fen�meno atinge tamb�m os podcasts – muitos programas acabaram gerando sua vers�o audiovisual; vide a miniss�rie “O caso Evandro”, do Globoplay, nascida do podcast “Projeto humanos”. 

No passado uma esp�cie de “primo pobre” da fic��o, o document�rio, enquanto g�nero, teve sua produ��o expandida para toda sorte de temas. 

"O Datena (apresentador do 'Brasil urgente', na Band) n�o faz sucesso � toa no Brasil. A atra��o do brasileiro por crime e viol�ncia � um fen�meno muito forte, para al�m do document�rio de true crime"

Emilio Domingos, diretor



Excesso

“Um excesso de informa��o est� chegando nas pessoas, seja pelas redes sociais, canais de streaming, jornais, TV, internet. H� 10 anos a gente n�o tinha tanta informa��o: da Ucr�nia, do Piau�, como tamb�m de uma briga de futebol amador do interior de Goi�s. Mas todo este excesso de realidade � fragmentado, ningu�m consegue formar vis�es hol�sticas atrav�s disso. E acho que � isto que os document�rios fornecem: eles sistematizam um conjunto de informa��es, contando a genealogia, dando v�rios pontos de vistas”, comenta o diretor Luiz Bolognesi, autor dos document�rios “Ex-paj�” (2018) e “A �ltima floresta” (2021).

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Sobre o boom do segmento criminal, Bolognesi se arrisca a dizer que ele vem ao encontro do pr�prio desejo do espectador. “N�s temos o impulso de matar, seja o vizinho, o chefe, o empregado, o namorado. Temos a vontade de resolver alguma coisa atrav�s da experi�ncia radical que � a morte. Acho que os filmes e s�ries dialogam com a vontade reprimida. E esta vontade tem aumentado com a polariza��o pol�tica, os discursos de �dio e mesmo com o entretenimento, j� que a ind�stria trabalha de forma muito abusiva e excessiva com assassinatos violentos.”

Bastante cr�tico do formato, o documentarista Jo�o Moreira Salles credita aos reality shows parte da responsabilidade pela preval�ncia dos programas de true crime. “Era algo que o (documentarista Eduardo) Coutinho (1933-2014) dizia. O denominador comum de quase todos (os reality shows) � o fato de que estimulam o que as pessoas t�m de pior. N�o a solidariedade, mas a rasteira; n�o a gentileza, mas a grosseria. Quem sabe da� se chega muito naturalmente a hist�rias reais de crimes e criminosos. Outra coisa: realities s�o estruturalmente punitivistas, donde reacion�rios. Os que erram devem ser eliminados. Ao transformar delinqu�ncia em entretenimento, programas de true crime eliminam o elemento pol�tico e transformam at� progressistas em torcedores da pol�cia.”

Com mais de 50 anos de carreira dedicada ao document�rio, Jorge Bodanzky afirma que, embora desfrute de popularidade no mundo de hoje, o g�nero criminal sempre existiu no cinema, por meio dos filmes policiais. “S� que a grande demanda foi para o document�rio.” 

"O denominador comum de quase todos (os reality shows) � o fato de que estimulam o que as pessoas t�m de pior. N�o a solidariedade, mas a rasteira; n�o a gentileza, mas a grosseria. Quem sabe da� se chega muito naturalmente a hist�rias reais de crimes e criminosos. Outra coisa: realities s�o estruturalmente punitivistas, donde reacion�rios. Os que erram devem ser eliminados. Ao transformar delinqu�ncia em entretenimento, programas de true crime eliminam o elemento pol�tico e transformam at� progressistas em torcedores da pol�cia"

Jo�o Moreira Salles, documentarista e escritor


Investiga��o

Cineasta cuja carreira teve in�cio com “Em nome da raz�o” (1979), curta-metragem que denunciava os maus-tratos sofridos por pacientes psiqui�tricos do Hospital Col�nia, em Barbacena, Helv�cio Ratton acredita que o aumento de consumo de produ��es documentais se deve ao crescimento da oferta do streaming, algo que as salas de cinema nunca tiveram.

“Sobre os document�rios criminais, o interesse vem muito de ter uma investiga��o mais profunda sobre o que h� por tr�s de um crime que choca a opini�o p�blica. Mas acho que este crescimento n�o se deve somente a crimes b�rbaros, mas tamb�m a golpes interessantes”, observa Ratton, citando a s�rie ficcional baseada em fatos “Inventando Anna”, sobre a jovem golpista que enganou rica�os em Nova York. “A hist�ria traz coisas que nem um bom roteirista seria capaz de imaginar.”  

“O Datena (apresentador do ‘Brasil urgente’, na Band) n�o faz sucesso � toa no Brasil. A atra��o do brasileiro por crime e viol�ncia � um fen�meno muito forte, para al�m do document�rio de true crime”, comenta o diretor Emilio Domingos. Para ele, um divisor de �guas no segmento foi o longa “A t�nue linha da morte” (1988), de Errol Morris, que mostrou as inconsist�ncias da condena��o por assassinato de um policial texano, ocorrido 12 anos antes – posteriormente, o condenado, que estava no corredor da morte, foi libertado.

Para Domingos, o fen�meno no true crime tem aspectos positivos. “De certa maneira, ele mostra que o document�rio pode ser popular. Tor�o para que as pessoas possam, a partir desta experi�ncia, se interessar por outros temas.”

Na opini�o de Jo�o Moreira Salles, h� uma distin��o a ser feita entre as produ��es que se autodenominam documentais. “As m�dias sociais universalizaram a difus�o de certo tipo de realismo encenado. A gente se acostumou com uma realidade hiperatuada, fingida at�, movimento cuja pr�-hist�ria s�o os reality shows da d�cada de 1990. Isso pode ter contribu�do para a populariza��o dos programas narrativos de n�o fic��o e talvez explique parte do fen�meno”, aponta. 

“Penso que nem toda essa produ��o pertence ao g�nero document�rio, ao menos n�o como eu o entendo. Nem toda narrativa audiovisual de n�o fic��o � necessariamente um document�rio. Programas jornal�sticos, por exemplo, tanto os excelentes quanto os maus, n�o s�o document�rios, s�o jornalismo. Document�rio � um g�nero que se preocupa com a forma. � uma explora��o n�o s� do que � dito mas tamb�m do modo como se diz. Boa parte desses programas toma a forma como dada, mudando apenas o assunto. S�o artefatos n�o ficcionais, e nisso s�o primos do document�rio, mas n�o pertencem � mesma estante.”

"N�s temos o impulso de matar, seja o vizinho, o chefe, o empregado, o namorado. Temos a vontade de resolver alguma coisa atrav�s da experi�ncia radical que � a morte. Acho que os filmes e s�ries dialogam com a vontade reprimida. E esta vontade tem aumentado com a polariza��o pol�tica, os discursos de �dio e mesmo com o entretenimento, j� que a ind�stria trabalha de forma muito abusiva e excessiva com assassinatos violentos"

Luiz Bolognesi, diretor



Podcast de casos criminais atrai p�blico feminino

Podcast que est� entre os cinco de maior audi�ncia no Brasil no segmento de crime e suspense do Spotify, “Modus operandi”, comandado h� tr�s anos por Carol Moreira e Mab� Bonaf�, tem um p�blico majoritariamente feminino. 

“Entre 75% e 80%, no nosso caso. De uma maneira geral, s�o as mulheres que mais consomem este tipo de conte�do em todo o mundo. Acho que muito pela curiosidade, como forma de entender a mente humana, j� que as mulheres s�o a maioria das v�timas”, comenta Mab�.

Com epis�dios semanais, lan�ados sempre �s quintas, o “Modus operandi” s� tem um crit�rio: n�o tratar de casos em aberto. “Falamos sobre qualquer hist�ria de qualquer pa�s. Mas como entendemos que precisa haver um distanciamento, pois v�rias vezes os casos s�o revistos de outra forma, n�o tratamos de casos que est�o sendo investigados”, explica Mab�.

Obsess�o

Ela mesma entrou nesse universo como f�. “Quando fizeram ‘Making a murderer’ (Netflix, 2015), fiquei obcecada pela hist�ria (sobre um homem que cumpriu pena de 18 anos por crime que n�o cometeu e, uma vez posto em liberdade, tornou-se o principal suspeito de outro assassinato) e comecei a pesquisar por fora. Participava de grupos que pesquisavam nos documentos p�blicos que tinham rela��o com o caso.”

Com quase 200 edi��es, o “Modus operandi” fala de todo tipo de crime: a chacina da Candel�ria, a trag�dia da Boate Kiss, a seita de Jim Jones, os crimes de Jeffrey Dahmer e a trajet�ria da Maria da Penha est�o entre alguns dos programas mais recentes. O sucesso do projeto gerou o livro “Modus operandi – Guia de true crime” (Intr�nseca), que a dupla lan�ou em 2022.

“A curiosidade existe e pode ser problem�tica quando se vai para o caminho do sensacionalismo. Ainda mais hoje, quando todo mundo est� ligado ao mesmo tempo. Nosso podcast n�o vai no sentido da curiosidade m�rbida, pois acreditamos na responsabilidade de falar sobre certos assuntos”, afirma.