Atriz Vera Holtz, com sutiã à mostra, segura esqueleto de animal

Desdobrando-se em v�rias personas, do f�ssil � monja budista, Vera Holtz diz que vive as dores e del�cias do of�cio de atriz

Ale Catan/divulga��o

Baseado no livro “Sapiens: uma breve hist�ria da humanidade”, best-seller de Yuval Noah Harari, est� em cartaz em Belo Horizonte o mon�logo “Fic��es”, estrelado por Vera Holtz. A temporada vai at� maio. No dia 21 de mar�o, ela ganhou o Pr�mio Shell de Teatro de Melhor atriz por seu trabalho nesta pe�a.

O texto foi escrito por Rodrigo Portella, que tamb�m dirige a encena��o, a partir de premissas de Harari que considerou interessantes para o palco. O dramaturgo destaca que em nenhum momento pretendeu dar conta do livro na pe�a. Trata-se de um di�logo com a obra liter�ria, explica.

Reflex�es

O recorte sobre o qual o mon�logo se debru�a � a capacidade humana de criar fic��es e acreditar nelas: deuses, dinheiro, na��es, leis. O produtor Felipe Her�clito Lima, que comprou os direitos para adaptar o livro para o teatro em 2019, comenta que a pe�a permite uma centena de reflex�es, dialogando com v�rios p�blicos.

Dividindo o palco com o m�sico Federico Puppi – autor da trilha sonora executada ao vivo –, Vera Holtz se desdobra em personagens do livro e outros criados por Portella. Canta, improvisa, “conversa” com Harari, instiga a plateia e interage com Puppi. Em determinados momentos, encarna a narradora. Em outros, � a pr�pria Vera falando.

“Fic��es” estreou no segundo semestre do ano passado, no Rio de Janeiro, fez r�pida turn� por Niter�i, Juiz de Fora e Nova Igua�u, cumpriu temporada em S�o Paulo e integrou a programa��o do Festival de Teatro de Curitiba, na semana passada.

Vera Holtz n�o sabe precisar quantas personas encena. “N�o contei ainda”, diverte-se. “Mas a cada hora apresento o texto a partir de algum personagem: o f�ssil perdido numa caverna, o asno com ares de professor, o ramo de trigo, a ovelha curiosa, a monja budista, a atriz que virou n�made”, aponta.

A estrutura dramat�rgica � fracionada. “A gente fala que � uma revista, outros dizem que � jam session por causa da m�sica, mas tamb�m pode ser entendido como colagem”, comenta. Puppi vem “acudir”, com defini��o mais palp�vel: “S�o bolhas interligadas. Tem o arco dramat�rgico, mas com bolhas que se comunicam e formam um quadro geral no fim. � uma estrutura biol�gica, org�nica.”
 
Com sutiã à mostra, a atriz Vera Hotz segura um coelho em cena da peça Ficções

'Tenho 70 anos, ent�o � preciso conduzir este corpo c�nico de uma outra forma, mas nada � impeditivo', afirma Vera Hotz, que acaba de ganhar o Pr�mio Shell

Ale Catan/divulga��o

'A pe�a passa por uma reflex�o individual sobre o seu sistema de cren�as e sobre como voc� pode mexer nesse sistema de cren�as'

Vera Holtz, atriz


As palavras de Vera e de Puppi v�o ao encontro do dramaturgo Rodrigo Portella. “Queria fazer uma pe�a espatifada, n�o aquela montagem que � uma hist�ria, pega na m�o do espectador e o leva no caminho da f�bula. Quis ir por um caminho em que o espectador � convidado, provocado a construir a pe�a com a gente”, explica.

Desde o in�cio, Portella defendeu a ideia de espet�culo protagonizado por uma mulher. “Eles queriam int�rprete feminina, me convidaram, calhou de estar dispon�vel na �poca. Li o livro do Harari logo que foi lan�ado; ali�s, presenteei v�rias pessoas com ele”, destaca Vera.

'A quarta parede n�o existe, ou s� existe nos primeiros momentos do espet�culo. Como o assunto � o Homo sapiens, a plateia � assunto do espet�culo, o coletivo plateia faz parte'

Federico Puppi, m�sico


Jogo teatral

O impacto provocado pelo livro se estende ao mon�logo. A atriz afirma que Portella conseguiu transcender a obra de Harari. Instigado pela capacidade das artes c�nicas de inventar mundos e narrativas, ele criou jogo teatral em que, a todo momento, o espectador � lembrado sobre a fic��o ali encenada.

Para Vera, o texto de Portella humaniza e individualiza as quest�es levantadas pelo livro. “Ele faz um recorte sobre nossa capacidade de criar realidades imaginadas, os nomes de todas as coisas, os pa�ses, as leis, o dinheiro, as religi�es, as hist�rias que o ser humano inventa para sustentar uma soberania”, observa.

A atriz classifica o trabalho do diretor e dramaturgo como extraordin�rio. “N�o existe uma dramaturgia, ou, ali�s, � uma dramaturgia fissurada, com capilaridade”, aponta. Puppi destaca que as proposi��es do texto n�o se d�o na dramaturgia em si, mas por meio de perguntas.

“At� que ponto o espectador est� disposto a se colocar em discuss�o a partir do que a pe�a prop�e? Esta � a quest�o”, provoca. “A quarta parede n�o existe, ou s� existe nos primeiros momentos do espet�culo. Como o assunto � o Homo sapiens, a plateia � assunto do espet�culo, o coletivo plateia faz parte”, observa.

A atriz concorda. “A pe�a passa por uma reflex�o individual sobre o seu sistema de cren�as e sobre como voc� pode mexer nesse sistema de cren�as”, diz. “Harari abre uma discuss�o sociol�gica, e o Rodrigo sustenta essa discuss�o, s� que na esfera individual”, completa Puppi.

O m�sico revela que � comum as pessoas irem para casa com muitas perguntas e poucas respostas, com o pensamento ocupado pelo mon�logo. “�s vezes, as pessoas mandam recado uma semana depois, dizendo que ainda est�o com a pe�a na cabe�a”, acrescenta Vera.
 

O p�blico de “Fic��es” � diversificado. As rea��es variam. “Tem gente que leu o livro e chega falando de como o Rodrigo conseguiu transpor a obra t�o bem, com a quest�o da humaniza��o do tema”, diz Vera. J� quem est� habituado com teatro fica tocado pelas palavras, pela reflex�o que a pe�a prop�e.

“J� tivemos gente que nunca foi ao teatro, que debutou com esta pe�a. A� � outro retorno, tem a ver com a descoberta da linguagem teatral, da conversa da m�sica com a palavra. A gente fala de coopera��o e ela � praticada em cena, est� todo mundo muito alinhado”, ressalta.

“Fic��es” marca o retorno de Vera Holtz aos palcos desde a chegada da pandemia – sua �ltima pe�a foi “Intimidade indecente”, com Marcos Caruso, apresentada em 2019, em Portugal. A aus�ncia relativamente longa da cena imp�s alguns desafios a ela.

“No in�cio da temporada, tem a parte do ensaio, a rapidez com que estreamos, com apenas seis semanas de prepara��o. Uma quest�o que vem depois s�o as limita��es do f�sico. Tenho 70 anos, ent�o � preciso conduzir este corpo c�nico de uma outra forma, mas nada � impeditivo”, aponta. Ela ressalta que as del�cias do of�cio s�o maiores do que as dores.
 
Escritor Yuval Harari olha para a câmera

Yuval Harari conquistou f�s em todo o mundo com o livro 'Sapiens: uma breve hist�ria da humanidade'

Youtube/reprodu��o
 

M�sica tem dupla miss�o

Com exce��o de um tema de Bach, toda a trilha sonora foi composta por Federico Puppi, que se reveza entre violoncelo, teclado e harpa. “Tem as m�sicas que toco e tem a trilha gravada, que faz parte do desenho de som do espet�culo. ‘Fic��es’ tem rela��o forte com o som, o que vai al�m da trilha”, pontua.

A m�sica cumpre duplo papel. “Por um lado, costura as cenas, os assuntos. Por outro lado, � uma segunda linguagem, que anda em paralelo com a linguagem verbal. A m�sica vai acompanhando e dan�ando o espet�culo todo. �s vezes, ela vem para aliviar a densidade; h� momentos de suspens�o, para abstrair um pouco dos assuntos, que �s vezes s�o profundos e muito complexos”, explica.

Vera refor�a o car�ter denso da obra de Harari, intrigada com a maneira singular como o Homo sapiens evoluiu. “N�o � um processo evolutivo normal, como o do le�o ou das hienas. Ele deu um salto para o topo da cadeia alimentar e, a partir da�, virou m�quina de matar. Desenvolveu todas as ferramentas, que s�o a extens�o dele, e quer controlar tudo”, observa a atriz.

Pr�mio Shell

Vera Holtz considera o Pr�mio Shell 2022 importante n�o s� para ela, mas para toda a classe art�stica. “Foi uma noite muito potente a de entrega desse 33º Pr�mio Shell, uma noite de diversidade” , afirma.
 
Pela primeira vez, uma artista transexual foi laureada. O J�ri S�o Paulo premiou Ver�nica Valenttino pela atua��o em “Brenda Lee e o Pal�cio das Princesas”, musical sobre a travesti que lutou pelos direitos LGBTQIA+. Vera foi escolhida melhor atriz pelo J�ri Rio de Janeiro, por seu trabalho em “Fic��es”.

“FIC��ES”

Teatro 1 do CCBB-BH (Pra�a da Liberdade, 450, Funcion�rios). Sess�es de sexta a segunda-feira, �s 20h. Em cartaz at� 8 de maio. R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada). Ingressos � venda no site bb.com.br/cultura e na bilheteria do espa�o cultural. Informa��es: (31) 3431-9400.