Santino agachado à beira de um rio com vegetação em cena do documentário que leva seu nome

A sess�o de "Santino" no festival, cuja edi��o 2023 ser� realizada simultaneamente em S�o Paulo e no Rio de Janeiro, a partir da semana que vem, est� marcada para o pr�ximo dia 19

Divulga��o

O isolamento imposto pela pandemia e o fato de passar parte do seu tempo no Uruguai, onde fixou resid�ncia em 2016, despertaram em Cao Guimar�es saudades de trabalhar no sert�o mineiro – ambiente em que ele realizou os celebrados document�rios “A alma do osso” (2004) e “Andarilho” (2006). Resulta desse sentimento – e de uma dose de acaso –, o novo filme do cineasta e artista pl�stico, “Santino”,  estreia na programa��o do festival � Tudo Verdade.

O longa ter� sua primeira exibi��o no pr�ximo dia 19/4, no Rio de Janeiro, com outras tr�s sess�es inclu�das na mostra competitiva nacional do festival, que tem in�cio na pr�xima quinta-feira (13/4), na capital fluminense e em S�o Paulo. As bases para que o cineasta pudesse matar as saudades de filmar no sert�o come�aram com conversas com o cantor, compositor e escritor Makely Ka.

De bike pelas veredas

Entre julho e setembro de 2012, Makely percorreu, de bicicleta, as veredas do “Grande sert�o” de Guimar�es Rosa, seguindo os passos dos personagens do livro cl�ssico. Essa sua experi�ncia serviu de farol para a reconex�o que o cineasta buscava. Ele conta que chamou o m�sico e tamb�m Damiana Campos, moradora da Norte de Minas, que trabalha no sert�o – e assina como produtora do filme – para que fizessem uma prospec��o de personagens.
 
“N�s nos reunimos sem saber exatamente o que seria, mas orientados por esse meu desejo de abordar um personagem sertanejo, o que eu n�o fazia desde ‘Andarilho’. Makely foi quem comentou sobre Santino Lopes Ara�jo, uma figura muito interessante, veredeiro, morador de uma localidade pr�xima a Bonito de Minas, na bacia do S�o Francisco, quase na divisa com Bahia. Fomos para l� meio sem saber que filme seria esse”, recorda Guimar�es.
 
Ele conta que sua ideia inicial era fazer um document�rio sobre rela��es amorosas separadas por um rio, e que a viagem serviria de investiga��o para esse mote. Ao conhecer e conviver por alguns dias com Santino, no entanto, entendeu que o document�rio que queria fazer estava ali, debaixo de suas barbas, como diz.
 
Protagonista do documentário Santino no cemitério

Santino, zelador de cemit�rio, imagina como adiar a data do fim do mundo

Divulga��o
 

“Santino tem uma complexidade fant�stica. Os planos eram outros, mas falei para a equipe, que era bem reduzida, que �amos continuar ali. O filme foi se fazendo durante o per�odo de mais ou menos 10 dias em que estivemos convivendo com Santino”, diz. Ele destaca que todo o processo foi muito r�pido, tanto as filmagens, durante o inverno do ano passado, quanto a edi��o – um “parto natural”, conforme aponta.

“Foi tudo muito f�cil e muito gostoso, e atendeu a esse meu desejo de voltar para o sert�o, de fazer personagens desse interior profundo, essas figuras quase que em extin��o no Brasil, mas muito expressivas, com uma oralidade forte e uma carga de conhecimento incr�vel vinculada � terra, �s tradi��es locais”, ressalta.
 

Ativista incans�vel

A sinopse do document�rio indica que, “para al�m de ser um ativista incans�vel na defesa deste bioma muito amea�ado pelos predadores do grande capital, Santino consegue unir de forma sugestiva o mundo espiritual e m�stico ao qual est� vinculado, o mundo da natureza e dos animais com os quais confabula e o mundo do ativismo pol�tico e da conscientiza��o das novas gera��es para a import�ncia da preserva��o da natureza”.

Guimar�es diz que a rela��o “impressionante” que Santino tem com o mundo real e com o mundo transcendental – ele conversa com entidades, esp�ritos e animais – � o que faz dele uma presen�a poderosa enquanto personagem. “Ele tem um lado misterioso, oculto, fabuloso, e �, ao mesmo tempo, altamente politizado, vinculado com a realidade das coisas; cuida daquele ambiente, daquele bioma que � muito machucado”, aponta.

Enquanto guia o cineasta pelos caminhos do cerrado, Santino mostra plantas e �rvores, falando dos benef�cios que trazem para o corpo e para a alma, estabelecendo rela��es entre a fauna e a flora, numa din�mica em que crendices e saberes tradicionais andam de m�os dadas. Mesmo para a fam�lia – a esposa e as tr�s filhas –, o universo do veredeiro �, por vezes, dif�cil de penetrar, o que, segundo o cineasta, gera uma dramaticidade interessante para o filme.

'Voc� n�o sabe como a obra de arte 'baixa', como ela vem; a gente � um cavalo de santo, da mesma forma que ele �, sem ter uma religi�o espec�fica. Ele sustenta um di�logo entre dois mundos e aplica isso muito bem, sem ser doutrin�rio. Santino consegue organizar o tempo, a vida e o al�m da vida em que ele acredita de forma muito saud�ve'l

Cao Guimar�es, cineasta e artista pl�stico


Mist�rio em aberto

Guimar�es chama a aten��o para a forma genu�na com que Santino se relaciona com o mundo espiritual, da transcend�ncia. “N�o � uma cren�a comprada, como no caso de algumas igrejas evang�licas, em que os pastores vendem um lugar no c�u. Ele tira aquilo em que acredita de sua rela��o com a terra, das tradi��es do local. S�o vozes que a gente n�o conhece. Eu deixo esse mist�rio em aberto, respeitando o personagem”, aponta.
 
Protagonista do documentário Santino está no escuro, em frente a vela acesa

Santino tem o dom de conversar com entidades, esp�ritos e animais

Divulga��o
 

O diretor v� uma rela��o entre o imagin�rio de Santino e o pr�prio fazer art�stico. “Voc� n�o sabe como a obra de arte ‘baixa’, como ela vem; a gente � um cavalo de santo, da mesma forma que ele �, sem ter uma religi�o espec�fica. Ele sustenta um di�logo entre dois mundos e aplica isso muito bem, sem ser doutrin�rio. Santino consegue organizar o tempo, a vida e o al�m da vida em que ele acredita de forma muito saud�vel”, diz.

O cineasta destaca, tamb�m, a autossufici�ncia do sertanejo, que seu personagem espelha, na medida em que mant�m um dep�sito de tralhas a partir das quais produz gambiarras e inventa m�quinas que auxiliam na lida di�ria. Ele observa que Santino consegue, por exemplo, consertar um trator enquanto filosofa sobre a possibilidade de adiar a data do fim do mundo.

Carneiros hidr�ulicos

“Ele tem essa f� na possibilidade de salvar o mundo muito vinculada a um problema urgente da humanidade, que � nossa rela��o com a natureza”, diz, destacando que, ao mesmo tempo, Santino � de uma praticidade muito efetiva – entre outras manufaturas, ele fabrica bombas d’�gua, os chamados carneiros hidr�ulicos, que atendem a v�rios moradores da regi�o.

O fato de a energia el�trica ter chegado h� pouco tempo na vereda em que o personagem do document�rio mora foi um dos fatores que motivou as escolhas de Guimar�es. Tratava-se, conforme aponta, de uma regi�o mergulhada na oralidade, porque n�o havia televis�o, internet, nada. “Pensar o contraste disso com o ChatGPT � uma loucura. Tem esses extremos radicais, o mundo sem energia el�trica convivendo com o mundo da intelig�ncia artificial”, diz.

O mist�rio � um dos ingredientes que se destaca no document�rio, n�o apenas pelas cren�as de Santino; ele tamb�m est� presente no aspecto formal da obra. A primeira cena mostra o personagem-t�tulo em um cemit�rio, do qual ele � uma esp�cie de zelador. Em v�rias passagens, as veredas “mortas” – mostradas em oposi��o ao vi�o do terreno muito irrigado em que Santino mora – t�m algo de fantasmag�rico.
 
O cineasta Cao Guimarães sorri para a câmera

'A ru�na tem sua beleza, mas ela � ef�mera; muito mais importante � a beleza da vereda viva', afirma o cineasta Cao Guimar�es

Florencia Martinez/divulga��o
 

Tristeza e plasticidade

“A ru�na sempre me fascinou enquanto cineasta e fot�grafo. A vereda morta, com uma luz de fim de tarde, � de uma tristeza e de uma plasticidade enormes. � algo que gera mesmo uma coisa meio espectral, e � proposital, no sentido de mostrar os opostos, mostrar o que a gente ainda pode preservar. A ru�na tem sua beleza, mas ela � ef�mera; muito mais importante � a beleza da vereda viva”, pontua o cineasta.

Ele reitera que “Santino” � quase uma volta aos trabalhos realizados nos anos 2000, “A alma do osso” e “Andarilho” – um tipo de imers�o que considera muito prazerosa. “Voc� viaja e deixa o filme vir at� voc�, isso d� uma liberdade enorme. A estrutura do filme vai aparecendo durante as filmagens, prescinde de um roteiro, que, �s vezes, � uma amarra. No caso do document�rio, � especialmente apropriado, porque a realidade � muito escorregadia”, diz.

Desde aqueles dois filmes dos anos 2000 ambientados no sert�o, Guimar�es produziu duas fic��es – “Ex-Isto” (2010) e “O homem das multid�es” (2013) –, um filme que classifica como muito subjetivo, “Otto” (2012), sobre a gesta��o e o nascimento de seu filho, e uma obra “meio abstrata”, em suas palavras, que � “Espera” (2018).

'Ele (Santino, o protagonista do filme) tem um lado misterioso, oculto, fabuloso, e �, ao mesmo tempo, altamente politizado, vinculado com a realidade das coisas; cuida daquele ambiente, daquele bioma que � muito machucado'

Cao Guimar�es, cineasta e artista pl�stico


Presen�a no festival

Com parte consider�vel de sua filmografia em longa-metragem, que tem in�cio com “O fim do sem fim” (2001), Guimar�es esteve presente em edi��es pregressas do festival � Tudo Verdade. Ele pontua que, com seu longa inaugural, ganhou pr�mio na extinta categoria Renova��o de Linguagem. Em 2004, com “A alma do osso”, foi vencedor nas competi��es nacional e internacional do festival.

Em 2005, o filme “Da janela do meu quarto” ganhou como melhor curta. O cineasta voltou a participar da contenda com “Ex-Isto”, que n�o chegou a ser premiado. “O � Tudo Verdade � dos festivais de que mais participei na vida. Estou presente agora pela quinta vez. Outros filmes que fiz, mandei para outros festivais, porque n�o d� para ficar o tempo inteiro apostando em um s�, mas o � Tudo Verdade � uma janela muito importante”, afirma Guimar�es.

Ele considera que as obras que integram a mostra competitiva do festival t�m, todas, grande potencial para reverberar internacionalmente. “O document�rio brasileiro ficou muito potente ao longo das �ltimas duas d�cadas, desde que Eduardo Coutinho voltou a filmar; � das grandes for�as cinematogr�ficas que se firmaram a partir dos anos 2000. E o � Tudo Verdade � a vitrine mais importante para esse tipo de produ��o”, avalia.

Filmes de Minas

Dos sete filmes inclu�dos na mostra competitiva nacional da edi��o deste ano, tr�s s�o de realizadores mineiros – “Santino” figura nessa lista ao lado de “171”, de Rodrigo Siqueira, e “Amanh�”, de Marcos Pimentel. Guimar�es considera que Minas Gerais desenvolveu, a partir de suas paisagens humanas e geogr�ficas, uma maneira peculiar de fazer cinema.

“� um estado interessante, porque, ao mesmo tempo em que � uma s�ntese do Brasil, tem uma coisa que � muito para dentro, � ‘onde o oculto do mist�rio se escondeu’, como diz Caetano. Tem uma frase de que gosto muito: ‘O mineiro � aquele que pensa duas vezes antes de n�o falar nada’. Para o meu cinema, isso � muito interessante. Gosto do mist�rio do n�o dito”, destaca.

Ele tamb�m atribui a singularidade da produ��o audiovisual mineira ao fato de o estado estar na “periferia” do Sudeste, desconectado do eixo Rio-S�o Paulo. “Come�amos a fazer filmes de uma forma diferente, investindo em linguagens novas. Foi-se criando um ambiente f�rtil para um tipo de produ��o que n�o est� e nem pretende estar na esfera industrial do cinema e, quanto mais artesanal, mais livre voc� est� das amarras do dinheiro”, pontua.