Jo�o Silv�rio Trevisan encara a dor da morte no livro "Meu irm�o, eu mesmo"
Segundo volume da trilogia biogr�fica do escritor, que chega nesta semana �s livrarias, aborda o c�ncer que matou o irm�o de quem ele era mais pr�ximo, aos 48
Em "Meu irm�o, eu mesmo", o escritor descreve sua rela��o com Cl�udio Jos� desde a inf�ncia dos dois at� a not�cia da morte do editor, em 1996, aos 48 anos
Renato Parada/Divulga��o
O escritor, dramaturgo e ativista LGBTQIA+ Jo�o Silv�rio Trevisan tinha 48 anos quando foi identificado como HIV positivo, em 1992. Embora o pico da epidemia j� tivesse ficado para tr�s – o per�odo de maior contamina��o do v�rus foi entre 1983 e 1985 –, a inexist�ncia de cura e a escassez de tratamentos faziam com que o resultado positivo de contamina��o soasse como uma senten�a de morte.
O diagn�stico foi um baque para o escritor. “O resultado acusava a presen�a avan�ada do v�rus no meu organismo, sinal de que eu j� come�ava a rolar o barranco at� o fundo do abismo”, lembra ele. Pouco depois, Cl�udio Jos�, seu irm�o mais novo, foi diagnosticado com c�ncer linf�tico no abd�men. Essa descoberta foi outro choque. “Basicamente quem estava ali para morrer era eu, n�o ele”, conta.
Passados quase 30 anos, Trevisan resolveu transformar aquela ang�stia de ver a si mesmo e ao irm�o � beira da morte em tema de “Meu irm�o, eu mesmo”, livro que ser� lan�ado na pr�xima sexta-feira (5/5), pela editora Alfaguara, do grupo Companhia das Letras.
O romance autobiogr�fico � o segundo volume da trilogia que teve in�cio com “Pai, pai” (2017). Entre mem�rias, causos, notas de di�rios e �ntegras de cartas, o livro conta a hist�ria de Cl�udio e a rela��o entre os dois irm�os.
Borrachas
Cl�udio n�o era o tipo de crian�a popular no col�gio. Tinha h�bitos incomuns para um garoto, como colecionar borrachas e mania excessiva de limpeza. Aos 14 anos, por�m, o garotinho “chor�o e fechado” come�ou a dar lugar a um rapaz de uma beleza singular, um “misto de charme e sedu��o”, nas palavras do irm�o.
Entre seus tr�s irm�os (al�m de Cl�udio, havia Toninho, o mais velho, e Lurdinha, a ca�ula), foi com Cl�udio que Trevisan teve uma rela��o mais �ntima. Em alguns momentos, at� se comportou como se fosse pai do garoto. Quando, por exemplo, Cl�udio precisou operar de fimose.
Trevisan se encarregou de cuidar do irm�o, trocando os curativos diariamente. “Acho que foi o momento em que estive mais pr�ximo de encarnar para voc� o papel do pai — o provedor, o que protege”, escreveu.
J� na fase adulta, Cl�udio, ent�o funcion�rio da editora Brasiliense, retribuiu, ajudando o irm�o financeiramente, quando o escritor passava por momentos delicados na carreira.
O carinho e o afeto entre os dois eram demonstrados de diversas formas, desde a voz risonha e de express�o intensa de Cl�udio ao telefone quando ligava para o irm�o, dizendo: “Jo����o... Oooi”. At� na forma como os dois se cumprimentavam: com um selinho na boca. O beijo, inclusive, era dado em p�blico, sem que Cl�udio ficasse constrangido ou com receio de ser ridicularizado por estar beijando um homem na boca.
Cl�udio frequentava c�rculos comunistas mais ortodoxos. O irm�o mais novo de Trevisan fazia quest�o, depois de ter largado o emprego na editora para abrir uma livraria, de dividir os lucros com seus funcion�rios.
A partir de determinado momento, no entanto, as hist�rias se cruzam e tomam rumo inesperado. O ponto de virada s�o os diagn�sticos de HIV e c�ncer em Jo�o e Cl�udio, respectivamente.
O irm�o mais novo, que tinha estimados 80% de chance de sobreviver, acabou n�o resistindo. Morreu em junho de 1996, aos 48 anos, deixando a esposa e duas filhas. O livro de Trevisan n�o se limita ao relato desse percurso. Com rigor liter�rio, o autor parte desses destinos cruzados para mostrar que a morte e o sofrimento s�o intr�nsecos � vida.
Trilogia
"N�s vivemos como se f�ssemos eternos. E evitamos falar do fim. Ent�o meu livro � basicamente uma exposi��o de como a dor � parte das nossas vidas. Ela precisa ser abra�ada porque significa uma parte daquilo que somos", afirma o escritor.
Ainda que Trevisan sempre insira aspectos da pr�pria biografia em sua literatura, foi com a trilogia iniciada com “Pai, pai” que ele se exp�s sem nenhum disfarce pela primeira vez. Quem narra � o pr�prio autor, com todos os seus fantasmas, medos e ang�stias.
O escritor afirma, contudo, que n�o houve nenhuma guinada nessa dire��o, lembrando que seus cr�ticos sempre o acusaram de “excesso de exposi��o”. Expondo a si mesmo de maneira excessiva, ou n�o, fato � que, em outras obras, o autor se valia de personagens para falar de seus sentimentos e dilemas.
“Cheguei � conclus�o de que eu n�o tenho mais nada a provar para ningu�m. O que eu tenho a fazer � contar a minha vida. E a� eu acho muito dif�cil algu�m contestar a hist�ria da minha vida, porque a hist�ria da minha vida quem viveu fui eu”, afirma.
Trevisan diz isso n�o sem certo tom de m�goa. “Eu fui extremamente boicotado na minha literatura e na minha vida, inclusive com censura expl�cita”, comenta, citando seu filme "Orgia ou o homem que deu cria" (1971) e um conto que publicou na revista “Status”. Ambos foram barrados pela censura durante o regime militar.
Muitos dos boicotes se deram por Trevisan abordar a tem�tica sexual homoafetiva em suas obras. Tais tem�ticas eram consideradas pela ditadura uma afronta aos bons costumes e incita��o � pornografia.
“Devassos no para�so”, por exemplo, talvez o livro de maior impacto do autor, mostra como l�deres pol�ticos e religiosos desenvolveram conceitos de pecado e desvio de conduta em rela��o � homossexualidade com inten��es repressivas.
J� no livro “Em nome do desejo”, ele narra a hist�ria de amor entre dois seminaristas. O j� citado “Orgia ou o homem que deu cria” mistura fetiches sexuais com nudismo, escatologia, cr�tica pol�tica e tropicalismo, tudo embalado por poemas de Oswald de Andrade.
Considerado exageradamente imoral pelos censores, Trevisan n�o mudou seu estilo. Parafraseando o poeta e amigo pessoal Roberto Piva (1937-2010), diz que a “poesia � aquilo que sobra da orgia”. Agora, busca a fus�o entre a vida e a literatura.
"Neste momento, para mim, � important�ssimo chegar a uma culmin�ncia em que eu junto a minha literatura com a minha vida e exponho essa minha inten��o em obras, onde me exponho como parte da minha literatura”, explica.
TRECHOS
“Velho como estou agora, cheio de remendos f�sicos e ps�quicos, devo reconhecer que, se n�o por mais, eu fui semeando para mim mesmo sementes de salva��o como boias onde me agarrar nos momentos cr�ticos. Olho para o passado e resgato aquele meu poema que li na noite de Natal de 1994. Nele elaborei uma pista para minhas contradi��es, que hoje funciona como atadura da alma. E se trata disto: viver � uma recorrente procura do amor. Como escrevi l�, o c�ncer do Cl�udio n�o foi s� dele, mas de todos que o am�vamos.
Por mais ressentimentos e diferen�as entre quatro irm�os, esse c�ncer familiar nos ensinou o segredo para colar os cacos, resgatar la�os e amar o amor. N�o que invent�ssemos uma fantasia. Ao contr�rio, esse era um sentimento que sempre estivera l�. Nosso afeto existia e se mantinha �ntegro, como brasa dormida, mesmo no seio de uma fam�lia disfuncional. Se sofri rejei��es familiares por ser a ovelha negra, devo reconhecer que tamb�m eu deixei meu rastro de disc�rdia fraternal, mesmo que inadvertidamente. Dos quatro irm�os, fui aquele que veio trazer o abalo, com implos�o de certezas. Como observou certa vez minha irm� Lurdinha, era dif�cil imaginar que t�nhamos nascido da mesma m�e. Afinal, eu colocava em desequil�brio suas convic��es quando me pareciam conservadoras. Fato que ela verbalizou com clareza: “Voc� � uma pedra no nosso sapato”. Os dois rimos.”
“Da� retorno ao poema do Natal de 1994, quando mencionei nosso c�ncer — respons�vel por nos roubar precocemente um irm�o — que revelou tamb�m a exist�ncia poderosa do nosso amor. Em resumo, uma grande dor nos levou a experimentar uma descoberta amorosa �nica em nossas vidas. Sempre que pensamos nessa dor, nela fica impl�cita a solidez do nosso amor.
Veneno e ant�doto juntos, comprovando como a vida se resume a um territ�rio de experimenta��es inesgot�veis em sua capacidade de revelar nossa incompletude e imperfei��o, que acabam se completando em pequenas perfei��es, como joias. Assim, agradecer a um c�ncer linf�tico ou ao v�rus hiv pelas descobertas que nos proporcionaram devia ser t�o natural quanto agradecer � vida por nos dar a dor e o amor em doses indissoci�veis. Se h� diferentes vers�es desse drama, o amor permanece subjacente. Porque � maior do que a morte.”
Capa do livro Meu irm�o, eu mesmo traz dois bot�es de rosa em foto preto e branco sobre fundo laranja
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