Pessoas dormem perto de linha de trem em Mumbai

Garoto que coleta material recicl�vel "surfa" em trem em D�li; linha ferrovi�ria � elemento central na trama do livro sobre desaparecimento de crian�as

Adnan Abidi/19.fev. 2014/Reuters

Jai tem 9 anos e � uma crian�a inteligente e feliz, que mora com os pais e a irm� mais velha. Apesar de tudo, diga-se. A fam�lia vive em uma moradia com um c�modo s� em um basti, o equivalente a uma favela, nos arredores de uma grande cidade da �ndia. Mas ele n�o reclama – afinal, tem uma televis�o em casa e pode assistir ao seu programa favorito, o “Patrulha policial”.

Quando um de seus colegas de escola desaparece, decide usar as habilidades de resolu��o de crimes que aprendeu na TV para encontr�-lo. Para tal, conta com a ajuda de dois amigos, Pari e Faiz. Desta maneira, Jai cria sua pr�pria patrulha. Mas logo outra crian�a vai desaparecer. E mais outra e outra.

Rec�m-lan�ado no Brasil pela Companhia das Letras, “Os detetives da Linha P�rpura” � o romance de estreia de Deepa Anappara. Rep�rter durante 11 anos na �ndia, conheceu v�rios meninos como Jai e seus amigos. Pela boca dos pr�prios garotos, que viviam em situa��o de extrema pobreza, soube do desaparecimento maci�o de crian�as. Chegou a um n�mero assustador: 180 por dia em toda a �ndia.
� um tema pesado, que passa ao largo da cobertura da imprensa, mas que Deepa soube tratar com seriedade, apuro e respeito em sua estreia na fic��o. Todo o relato � feito pela perspectiva de um narrador infantil. � Jai quem nos guia para a vida no basti – e sua voz, ora ing�nua, ora atrevida, � totalmente convincente. Leva o leitor para lugares sombrios, mas sem sobrecarreg�-lo.

Publicado originalmente em 2020, pouco antes do in�cio da pandemia, “Os detetives da Linha P�rpura” foi eleito um dos livros do ano por “The New York Times”, “The Washington Post” e “Time”. Desde ent�o, j� foi editado em 23 pa�ses – na �ndia, somente em ingl�s, uma das l�nguas oficiais daquele pa�s. 

Da cobertura na imprensa para a publica��o do livro passou-se mais de uma d�cada. Deepa Anappara s� estreou na literatura quando deixou o jornalismo e a �ndia. Radicada h� 14 anos em Londres, ela afirma que a situa��o em seu pa�s n�o mudou em rela��o ao que conheceu em sua trajet�ria como rep�rter. 

“Quando voc� v� pobreza praticamente todos os dias, chega um ponto em que n�o se importa mais. O livro foi uma maneira de lembrar �s pessoas que elas t�m que ter um novo olhar sobre a quest�o”, afirma a escritora, em entrevista ao Estado de Minas. 

 Deepa Anappara, autora de 'Os detetives da Linha Púrpura'

Deepa Anappara, autora de 'Os detetives da Linha P�rpura'

Liz Seabrook/Divulga��o
 

"Como voc� bem sabe no Brasil, se est� falando sobre uma regi�o pobre, existem j� algumas ideias prontas. Como indianos, somos muito cautelosos em rela��o a isto. Queria ser o mais correta poss�vel, n�o iria estereotipar o meu pa�s e o meu povo. Queria a vis�o deles, das pessoas"

Deepa Anappara, escritora



Quando voc� percebeu que o desaparecimento de crian�as seria a hist�ria que queria contar?

Eu trabalhava como jornalista em D�li j� por um bom tempo e havia essas hist�rias sobre crian�as desaparecendo frequentemente. Na �poca, a estimativa � de que 180 crian�as desapareciam por dia em todo o pa�s. As hist�rias n�o chegavam na grande imprensa porque as crian�as eram pobres, ningu�m estava interessado nisso.

Se fossem ricas, faria mais sentido, mas, sendo pobres, ningu�m ligava. Na �poca, entrevistei tanto as crian�as quanto suas fam�lias. Senti que a hist�ria daquelas crian�as, que eram completamente ignoradas, merecia ser conhecida. Na �ndia h� tantos problemas –, discrimina��o, quest�es religiosas –, que aquele n�o parecia importante.

Quando me mudei para Londres, comecei a estudar escrita criativa e pensei que este poderia ser um tema para ser trabalhado na fic��o. Mas levou muito tempo para que eu conseguisse, quase 10 anos. Tamb�m senti que eu tinha que ter o direito de escrever sobre as crian�as, demorei para entender como faria isso de maneira respeitosa.

Qu�o dif�cil foi escrever sob o ponto de vista de um garoto de 9 anos?

Foi complicado, mesmo que eu soubesse que iria escrever sob o ponto de vista das crian�as desde o in�cio. Mas nunca estudei literatura inglesa, trabalhava como jornalista, e voc� sabe que, como jornalista, pode at� ter uma escrita um pouco mais l�rica, mas tem que manter um padr�o, especialmente se escreve em jornais.

Al�m disso, como jornalista, n�o queria dar nenhum dado errado. E para escrever fic��o voc� tem que usar mais a imagina��o. Li v�rios livros, vi filmes sob o ponto de vista das crian�as, escrevi contos, at� que finalmente encontrei em Jai uma voz.

Ele � uma crian�a, � ing�nuo � sua maneira. Mas � tamb�m uma crian�a feliz, e achei que isto era importante, porque existe uma ideia sobre a pobreza de que todas as vidas s�o miser�veis. N�o estou dizendo que seja f�cil, mas as pessoas encontram suas vidas em meio a circunst�ncias dif�ceis. 

Por que voc� escolheu escrever com o estilo de uma narrativa de detetives? 

Os programas de TV s�o muito populares na �ndia. As pessoas adoram assistir a competi��es de dan�a, de canto e t�m um grande apetite por produ��es sobre crimes reais. Al�m disso, na vida real, as crian�as n�o t�m sua pr�pria voz. Jai e seus amigos pretendem ser detetives, como se isto desse a eles algum senso de controle, um meio de sair de uma situa��o dif�cil. 

Qual foi o impacto na �ndia quando o livro foi publicado, tr�s anos atr�s?

Foi bem recebido e, para mim, era importante que os indianos entendessem o livro, j� que a leitura que se faz da pobreza pode muito facilmente cair em clich�s. Como voc� bem sabe no Brasil, se est� falando sobre uma regi�o pobre, existem j� algumas ideias prontas. Como indianos, somos muito cautelosos em rela��o a isto.

Queria ser o mais correta poss�vel, n�o iria estereotipar o meu pa�s e o meu povo. Queria a vis�o deles, das pessoas. Quando voc� v� pobreza praticamente todos os dias, chega um ponto em que n�o se importa mais. O livro foi uma maneira de lembrar �s pessoas que elas t�m que ter um novo olhar sobre a quest�o. 

O dado apresentado no livro, de 180 crian�as desaparecidas por dia, � muito alarmante. Os n�meros no Brasil s�o tamb�m assustadores: 80 mil em 2020, um ter�o delas menores. Houve alguma mudan�a na �ndia? 

Assim que o livro foi publicado, o governo tentou criar algumas pol�ticas (para o combate) ao tr�fico de crian�as. Infelizmente, veio a pandemia e a situa��o dos muito pobres ficou pior. O tr�fico aumentou ainda mais porque os pais n�o t�m condi��es de manter duas crian�as, s� uma. E, se algu�m chega dizendo para uma fam�lia que tem um lugar para seu filho, eles acabam mandando.

Ou seja, nada mudou, tenho medo de que a situa��o tenha piorado. A pol�cia n�o registra muitos casos, ent�o n�o temos uma ideia dos n�meros reais. A economia est� ruim, h� poucos empregos, a popula��o � enorme, ent�o fica muito mais f�cil para que traficantes encontrem crian�as, as sequestrem ou as levem com o consentimento dos pais. 

A trama � ambientada em uma grande cidade, que n�o � nomeada. Por qu�?

O cen�rio � muito inspirado em D�li, leitores indianos poder�o reconhecer coisas da cidade na trama. N�o dei nenhum nome porque quis ter um espa�o para mim. Eu me baseei em casos reais, incidentes como os do livro realmente aconteceram, ent�o quis manter dist�ncia dessas trag�dias, porque acho que n�o tinha o direito de escrever sobre o que os pais estavam passando, o tipo de luto que sentiram. Desta maneira, foi uma forma de dar permiss�o a mim mesma de fazer fic��o.

O romance traz v�rias express�es e palavras em h�ndi. J� foi traduzido para o idioma oficial da �ndia?

Infelizmente, n�o. A situa��o atual est� muito complicada, parecida com a do Brasil na gest�o Bolsonaro. Temos um governo quase fascista, fascista inclusive em v�rios sentidos: discriminat�rio com os mu�ulmanos; jornalistas e escritores s�o escrutinados. N�o vejo esse livro traduzido para o h�ndi em um futuro pr�ximo.

N�o fosse sua atua��o como jornalista o romance “Os detetives da Linha P�rpura” n�o existiria?
Absolutamente. Nunca poderia ter escrito o livro se n�o tivesse trabalhado como jornalista. As experi�ncias que tive foram a chave para escrev�-lo. Se n�o tivesse tido uma experi�ncia pessoal, poderia escrever de forma vaga. E realmente encontrei muitas crian�as, vi como eram, como falavam. E o principal: eles n�o se veem como v�timas. 

“Os detetives da Linha P�rpura” � o seu primeiro romance e j� foi publicado em mais de 20 pa�ses. Qu�o dif�cil foi chegar ao mercado editorial?

Devo dizer que este � meu primeiro romance publicado. Antes dele, escrevi outros tr�s livros que n�o  foram: dois romances e uma colet�nea de contos. E alguns destes textos nunca ser�o lidos por ningu�m. Nunca vou mostr�-los, j� que sei que n�o s�o bons o suficiente. Ou seja, ‘Os detetives da Linha P�rpura’ � o meu quarto livro.

Foi muito dif�cil ser publicado. Al�m do mais, porque escrevo em ingl�s e sobre outro pa�s. E isto � mais complicado, pois o interesse que se tem por estas hist�rias n�o � grande, a menos que voc� estereotipe o seu pa�s. Como tampouco tenho uma forma��o liter�ria, aprendi muito mesmo foi quando estava escrevendo.

capa do livro 'OS DETETIVES DA LINHA PÚRPURA'

capa do livro "OS DETETIVES DA LINHA P�RPURA"


“OS DETETIVES DA LINHA P�RPURA”

• Deepa Anappara
• Tradu��o de Odorico Leal
• Companhia das Letras (376 p�gs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)