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Silviano Santiago: 'O mist�rio do saber se cruza com o mist�rio do viver'

Ao assumir cadeira na Academia Mineira de Letras, escritor relembra viv�ncia "solid�ria e bo�mia" e cita Drummond e Guimar�es Rosa; leia discurso na �ntegra


31/03/2023 04:00 - atualizado 31/03/2023 00:24

Silviano Santiago
"Quero ter Belo Horizonte na velhice para nela desentranhar o perfil do jovem que come�a a sua forma��o educacional h� exatos 66 anos, em 1957, ao tomar o elevador do edif�cio Acaiaca e descer no vig�simo andar, j� inscrito na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais." (foto: Felipe Varanda/Folhapress)

 

Silviano Santiago

 

Ter uma cadeira onde sentar. Ter uma casa onde descansar o corpo. Ter uma cidade que lhe fala da juventude.
De repente, j� na velhice carioca e durante a pandemia, voc� se d� conta de que, na cidade da sua juventude, voc� n�o tem mais a cadeira onde senta e a casa onde descansa. Belo Horizonte amea�a mergulhar definitivamente na lembran�a, de bra�os dados com a cidade de Formiga, onde nasci. “Minas n�o h� mais” – o lamento de Jos�, no poema de Carlos Drummond, ressoa nos meus ouvidos. E agora?


Essa recente sensa��o de desamparo existencial repete outra e semelhante, acontecida h� 55 anos, em 1968. Trabalhava na Am�rica do Norte e o meu pai falecia de ataque card�aco na capital mineira. O desamparo existencial volta a atacar nos �ltimos meses do ano de 2021. Perco, ent�o, uma das minhas tr�s irm�s, a Nilda.


Desde a morte do meu pai em 1968, todas as vezes que viajei a Belo Horizonte eu me hospedava na sua casa e l� desfrutava de curtas e repousantes temporadas.


Silenciosamente, eu me revolto contra a condi��o ancestral de �rf�o. A minha vida sentimental nunca foi de f�cil conviv�ncia. �s vezes, tive a coragem de torcer o seu pesco�o para ir adiante. Ou melhor, para sobreviver. E sobrevivo uma vez mais, agora gra�as a telefonemas recebidos de saudosos e queridos amigos mineiros. N�o estavam a par do luto familiar. Passavam-me uma informa��o e me faziam uma pergunta. H� uma cadeira vaga na Academia Mineira de Letras. Por que voc� n�o se candidata?


No entrecruzar de fortes e contradit�rias sensa��es, eu me pergunto: E agora, Jos�?


Sou de natural pouco afeito � rotina das institui��es culturais. A raz�o � simples. Tive a minha vida profissional excessivamente conformada pela longa, restritiva e exigente carreira universit�ria, no estrangeiro e aqui. Nada contra a universidade. Pelo contr�rio. Tenho de lhe ser fiel e agradecido pela boa acolhida e generosidade. Foi o
cotidiano de p� e falante, ao lado do quadro-negro, que me trouxe o autossustento financeiro que viabilizou a tranquilidade para a produ��o religiosa e libert�ria dos muitos livros que escrevi e publiquei.


E agora? Nas conversas ao telefone, eu, indeciso, titubeio. As pessoas amigas tiveram a perspic�cia de insistir. E insistem. Candidate-se! todos me apoiam. Conspiram e me convencem. Em setembro de 2021, aos 84 anos, decido candidatar-me e escrevo mensagem ao atencioso e receptivo Presidente da Academia Mineira de Letras, Rog�rio de Vasconcelos Faria Tavares, Comunico-lhe o interesse e cordialmente lhe solicito a inscri��o como candidato � vaga aberta com o falecimento do ilustre acad�mico e embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima. Siga o protocolo, informa-me o Senhor Presidente.


Escrevi e assinei as cartas formais em que comunicava �s Senhoras e aos Senhores Acad�micos a minha inscri��o. A querida colega Antonieta Cunha deve lembrar-se. Em resposta � solicita��o de voto, incentiva-me com carinho e gentileza, e acrescenta: “Minha �nica pergunta, que deve ser de muitos: por que s� agora?”.

Perdoe-me, cara colega, se cito a frase que traduz a justa curiosidade dos acad�micos. Cito tamb�m a frase que lhe escrevi em resposta, frase aparentemente enigm�tica, n�o fosse eu admirador de Machado de Assis. No dia 16 de setembro de 2021, deve lembrar-se, eu lhe disse:


“Eu entendo que a oportunidade aberta pelo Acaso seja intrigante e que desperte a curiosidade dos acad�micos”.


O Acaso. Tudo o que realmente acontecia foi dito �s Senhoras e Senhores acad�micos. Ao atender tardiamente a convoca��o impl�cita nos telefonemas dos amigos e de alguns dos futuros companheiros de Casa, estava subjugado pelo desamparo existencial. Publicamente, ilumino hoje as circunst�ncias familiares que, por obra do Acaso, abriram a oportunidade de n�o repetir em tom pessimista o verso do genial poeta mineiro, “Minas n�o h� mais”.


Minas h�. Abro a minha fala de posse com a descri��o do meu inesperado e decisivo impulso, a fim de poder concluir que sento na cadeira de n�mero 13 da Academia Mineira de Letras, ocupada no passado por ilustres e insignes figuras da hist�ria e da cultura mineira, por obra e for�a do intrigante e enigm�tico Acaso, e gra�as ao generoso voto das Senhoras e dos Senhores Acad�micos, a quem dirijo o meu mais sincero e afetuoso agradecimento.


Compete-me agradecer tamb�m a todas e a todos os conspiradores do bem. Menciono tr�s deles, que achei justo me acompanhassem neste ritual de posse, o Wander Melo Miranda, o  ngelo Oswaldo e a Maria Esther Maciel.


Na velhice carioca, tenho a cadeira simb�lica, onde sentar. Tenho a casa, onde descansar o corpo. Tenho tamb�m a cidade que me fala da juventude.


No entanto, � menos por valor da obra pessoal e por merecimento pr�prio que aceito permanecer de p�, e ao lado da cadeira que tem como patrono o historiador Xavier da Veiga e como fundador, o escritor Carmo Gama, autor do fascinante relato Quilombolas de Minas Gerais. E tem como sucessores, o romancista Godofredo Rangel, de minha predile��o e admirado pelo meu mestre Autran Dourado. Ainda o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Antonio Moraes, defensor das ideias revolucion�rias que redundar�o na cria��o da SUDENE pelo economista Celso Furtado. E o professor e jurista Jo�o Franzen de Lima, cujo neto, o not�vel ator de teatro e poeta Paulo Augusto, foi um bom amigo na juventude, e o j� citado Embaixador Flecha de Lima.


Espero n�o contrariar as suas expectativas!


Nos poucos anos que me faltam ou me restam, desejo representar nesta Casa, de p� e em a��es, uma gera��o de jovens escritores, artistas e universit�rios rebeldes, inteligentes e imaginosos, que nos anos 1950, se re�nem por interesse comum e amizade espont�nea em torno da revista Complemento. Nenhum ser humano � uma ilha porque, na qualidade de cidad� ou de cidad�o, pertencemos ao fant�stico arquip�lago que nos soma e afetuosamente nos ata, para constituir a atual Na��o democr�tica brasileira.


Primeiro, citarei os nomes dos habitantes da pequena ilha que represento, para em seguida mostrar onde e como nos associamos a outras ilhas de jovens e nos tornamos o mini arquip�lago das Minas Gerais, respons�vel pelas v�rias e diferentes manifesta��es de arte, de cultura e de saber-universit�rio que aqui se deram na d�cada de 1950 e na seguinte.


Na Academia Mineira de Letras, ao meu lado, est�o presentes na aus�ncia: o Teot�nio dos Santos J�nior, soci�logo, o Maur�cio Gomes Leite, cr�tico de cinema e cineasta, o Ary Xavier, poeta, o Ezequiel Neves, ator e produtor musical, o Pierre Santos, poeta, e o Heitor Martins, cr�tico e professor universit�rio. Vieram coabitar a pequena ilha de Complemento: o Ivan Angelo, escritor e jornalista, o Fl�vio Pinto Vieira, cr�tico de cinema, o Augusto Degois, cen�grafo do Teatro Experimental e tapeceiro, o Frederico Moraes, cr�tico de arte, e a artista pl�stica Wilma Martins, sua esposa.


No p�s-guerra e nas prov�ncias ultramarinas, a arte mundial privilegia o cinema, como no restante do s�culo e ainda hoje privilegiar� a m�sica popular. Na �poca de JK, somos os filhos bastardos do cinema. Somos s� espectadores entusiastas, fieis e cr�ticos. O incans�vel Raimundo Fernandes supervisiona as exibi��es de filmes aos associados do Centro de Estudos Cinematogr�ficos, o CEC. Cedido pela Cinemateca de S. Paulo, o filme cl�ssico ou o atual de valor art�stico viaja em c�pia de 16 mm at� Belo Horizonte e atrai aos jovens e aos mais velhos no amor � S�tima Arte. E tamb�m, sub-repticiamente, motiva a busca de di�logo cr�tico e o exerc�cio da amizade em torno da cestinha de p�es-de-queijo na Camponesa.


No CEC, a ilha Complemento busca chegar � compet�ncia para ficar � altura do mini arquip�lago mineiro. Tornamo-nos companheiros da gente de teatro, liderada pelo Carlos Kroeber, o Carl�o, e pelo nosso confrade, o m�dico e ator Jota Dangelo e sua esposa, Maria Am�lia, e performada pela Magda Lenhard,  pelo Jo�o Marschner, a Neuza Maria, a Let�cia Mallard, o S�lvio Castanheira, e tantas outras e outros. L� tamb�m, nos associamos ao pessoal da moderna dan�a cl�ssica, liderado pelo casal Angel e Klauss Vianna, com performances das queridas Duda Machado e Sigrid Hermany, e de dois bons companheiros, o Ded�, D�cimo, e o Ricardo Teixeira. A amizade intelectual se estendeu aos artistas pl�sticos, muitos deles oriundos da “escola do Guignard”, como diz�amos coloquialmente.


A cada noite de s�bado, t�nhamos os olhos fixos na tela, que podia ser um len�ol branco esticado na parede. Ao se incorporar a outras ilhas cidad�s, o grupo Complemento se ampliava e reganhava autenticidade pr�pria.


Essa viv�ncia solid�ria e bo�mia, expressa pelo trabalho pessoal e pelas v�rias e diferentes manifesta��es art�sticas, agrupava pessoas duma �nica faixa et�ria, a da promissora juventude. N�o havia lugar para a soberba, o ego�smo ou a vaidade; somos, os jovens, os “passarinhos”, como nos apelida carinhosamente o Jos� Nava (irm�o do Pedro). Somos os passarinhos que nos alimentamos do alpiste cultural que nos � atirado pelas palavras dos mais velhos e sabidos.


Permitam-me que afunile a multid�o dos coroas, sabidos e not�veis profissionais dos anos 1950, entre eles os cr�ticos de cinema Fritz Teixeira de Salles, Cyro Siqueira e Jo�o Etienne, e ainda o arquiteto S�lvio de Vasconcellos e o eterno prefeito de Diamantina, S�lvio Fel�cio, tio do querido Alexandre Eul�lio, permitam-me, pois, que afunile para focar simbolicamente os dois mentores que complementam a minha forma��o art�stica e cultural interiorana. Refiro-me ao mais culto e silencioso dos poetas mineiros, Jacques do Prado Brand�o, e ao insigne historiador Francisco Igl�sias, cujo centen�rio de nascimento se comemora neste ano.


O Jacques supre a minha op��o pelo estudo da imagem-em-movimento com o incentivo � leitura da palavra-que-puxa-palavra em p�ginas e mais p�ginas de romance, poesia ou ensaio. Empresta-me livros da sua biblioteca e me introduz ao b�sico e ao melhor que a Literatura e a Filosofia podem municiar-me para o restante da vida profissional. J� o Igl�sias puxa a orelha do rapazinho empolgado e estudioso que analisa o texto e se esquece do contexto. O contexto, ensina-me ele, � o saber que se adquire no estudo das Ci�ncias sociais, em especial da Hist�ria brasileira e universal. N�o serei mais o s� aluno de Letras.


Cinco d�cadas mais tarde, esse saber das Ci�ncias sociais se soma ao da Literatura e me autoriza a formatar a antologia Int�rpretes do Brasil, tr�s volume com perto de cinco mil p�ginas em papel b�blia. L� est�o reunidas e prefaciadas onze obras-primas do pensamento brasileiro, de Joaquim Nabuco ao meu bom colega e amigo, Florestan Fernandes. Nabuco � prefaciado pelo Igl�sias, eis a m�nima homenagem que, pouco antes de ele falecer, lhe presto.


Permitam-me, pois, representar nesta Casa tanto os jovens como os nossos mestres que c� n�o est�o, porque julgo que eu tenha assumido no Brasil e no estrangeiro o sonho da juventude mineira nos anos 1950, para nunca o trair. Quero ter Belo Horizonte na velhice para nela desentranhar o perfil do jovem que come�a a sua forma��o educacional h� exatos 66 anos, em 1957, ao tomar o elevador do edif�cio Acaiaca e descer no vig�simo andar, j� inscrito na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1960, j� diplomado, tomo o �nibus para o Rio de Janeiro, onde me especializo em literatura francesa. E em outubro de 1961, embarco no navio que me leva aos bancos escolares da Sorbonne.


Sinto que minha forma��o educacional tenha sido inconscientemente endossada por versos do eterno Carlos Drummond. Cito-os: “Meus olhos brasileiros sonhando exotismos. / Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. / Os cais bolorentos de livros judeus / e a �gua suja do Sena escorrendo sabedoria” (“Europa, Fran�a e Bahia”).


A espinha dorsal da vida profissional, que desentranho nos anos da juventude, � n�tida e mais e mais me aproxima do chamado p�blico, em virtude de eu associar o ensino � cr�tica liter�ria e cultural, e os dois � cria��o propriamente liter�ria. Professor, cr�tico e romancista. H� que lembrar que a sobreviv�ncia na tumultuada e j� longa vida cotidiana formata um corpo f�sico em contradi��es e experi�ncias de fragmenta��o da personalidade, experi�ncias que desnorteiam, entontecem e enriquecem a estabilidade necess�ria ao bom cumprimento da vida profissional.


Ainda que a mente esteja de posse de boa e ampla forma��o cultural, n�o � f�cil esbo�ar o corpo f�sico correspondente, que se desloca pela geografia do planeta em semelhan�a ao n�made no deserto do Saara. O n�made que vos fala caminhou em busca de algo que talvez seja menos o sucesso na vida que uma esp�cie de sina at�vica, a sinalizar a busca da sobreviv�ncia em luta contra as suas imposi��es. As coisas do saber s�o muito abstratas e salvadoras, enquanto as coisas do viver s�o por demais materiais e autodestrutivas.


O mist�rio do saber se cruza com o mist�rio do viver e ambos explodem o corpo em performances �ntimas e atua��es p�blicas, nas quais se torna intrigante apreender o claro enigma de que � constru�do o conhecimento humano e a pr�tica do social, do pol�tico e do econ�mico, ou esse outro enigma, s� obscuro, o do viver – ou seja, o da conviv�ncia di�ria do saber com o sabor da vida herdado do deus Dion�sio.


N�o h� que ressaltar o eterno aluno nem o professor que j� se aposentou, n�o h� que ressaltar o ensaio cr�tico universit�rio nem a escrita art�stica, n�o h� que ressaltar solid�o humana nem companheirismos com os ind�genas Pueblo, os Black Panthers ou os porto-riquenhos, n�o h� que ressaltar a teoria ou a pr�xis, n�o h� que ressaltar o trabalho absurdo nem o prazer compensador, n�o h� que ressaltar a entrega ao dif�cil nem a submiss�o ao f�cil, n�o h� que ressaltar a conquista nem o desastre. N�o h� que ressaltar dor nem paix�o. A noite � mais profunda do que pensava o dia. Todo saber e todo prazer ambiciona a eternidade, e sempre se frustra ao meio do caminho.


E a ambi��o teria se frustrado precocemente, caso n�o tivesse recebido dois apoios substantivos em diferentes situa��es dif�ceis da carreira profissional e da vida. 


No ano de 1962, quando o futuro miser�vel do bolsista em Paris se anuncia, o Heitor Martins me escreve dizendo que havia um posto livre para o ensino da literatura na Universidade do Novo M�xico, nos Estados Unidos. Candidatei-me. Em 1974, diante da tenure na cadeira de literatura francesa em Buffalo que, na verdade, passa a significar um muro branco � minha frente, o Affonso Romano de Sant’Anna me escreve. A Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio de Janeiro, a PUC, est� contratando professores de literatura brasileira. Candidatei-me.


Muito obrigado aos dois colegas e a todas e a todos os que confiaram no meu trabalho em sala de aula e lhe deram asas.


Ofere�o-lhes, pois, como alimento e como claro enigma obscuro uma vida complexa e autoral, demasiadamente humana, para citar o fil�sofo Nietzsche, ou demasiadamente liter�ria, para citar o mestre Machado de Assis, ou ainda demasiadamente fragmentada, para citar o poeta Fernando Pessoa.

Nada ressalto nada ostento. Em prato encardido pelos tempos turbulentos que nos tocou viver, entrego-lhes vida e obra que se constitu�ram no cruzamento de contradi��es, desencontros, choques e brutalidades, de acertos, equ�vocos e algum remorso, tudo isso que, no extremo, s�o afirma��es de amor � vida na morte nossa de todos os minutos. Tenho uma sensibilidade perme�vel aos pequenos atos de loucura que cometo e que, afinal, enobrecem paradoxalmente a minha t�mida personalidade humana, pol�tica e intelectual.


Na condi��o demasiadamente humana que me define, onde a obra monta a necess�ria cr�tica por terceiros e esta, por sua vez, norteia a autocr�tica, � que, apesar do carinho das pessoas amigas e dos colegas de profiss�o, titubeei em me candidatar a uma cadeira onde pontificam seis ilustres var�es mineiros, respons�veis por vidas onde a firmeza da espinha dorsal n�o se desnorteia nem se entontece pelo sabor do caminhar n�made pelo planeta.


Para n�o alongar essa fala, recorro de novo ao funil simb�lico. Homenageio a todos os meus antecessores nessa cadeira de n�mero 13, discorrendo sobre dois deles. O patrono da cadeira, o historiador Xavier da Veiga, e o acad�mico, a que sucedo, o embaixador Flecha de Lima. Para retomar a diferen�a entre narradores estabelecida por Walter Benjamin, darei primeiro a palavra ao lavrador, o amante da terra, e depois ao marinheiro, o desbravador de oceanos. O arquivista Xavier e o diplomata Paulo Tarso. A terra natal e a viagem pelo mundo significam vidas e obras mineiras, complementares.


Gra�as � li��o de vida, trabalho e obra que, na atual conjuntura social e pol�tica, os acad�micos Xavier da Veiga e Flecha de Lima nos oferecem, exprimo simbolicamente a honra que norteia meu esp�rito nesta noite em que me franqueiam a cadeira, a casa e a cidade que fala da juventude.


Primeiro, o arquivista. Que maravilha poder sentar-me na cadeira ocupada por um not�vel historiador dos pequenos grandes acontecimentos da hist�ria mineira, inspirador de um inesquec�vel conto de Guimar�es Rosa, como tentarei demonstrar-lhes. Como n�o sentir orgulho, como n�o admirar e at� invejar esse intelectual discreto e monumental, j� que dedicou a vida ao trabalho incans�vel – por um lado silencioso e modesto e pelo outro, loquaz e indispens�vel −, o da arquiv�stica, alicerce insubstitu�vel da obra do grande artista e da an�lise do pensador genial. O patrono da cadeira de n�mero 13 � o fundador e o primeiro diretor do Arquivo P�blico Mineiro, situado ali na avenida Jo�o Pinheiro, e respons�vel pelos quatro e fundamentais volumes que comp�em a obra Efem�rides mineiras, 1664-1897.


O arquivo, segundo um colega argentino que organiza neste m�s um col�quio internacional sobre o tema, “� o lugar onde se negociam os significados e a mem�ria comum”. Os fatos hist�ricos existem para ser arquivados com paci�ncia e desarquivados no momento oportuno, se poss�vel com genialidade.


Nesta noite, apresento-lhes evid�ncia da materialidade art�stica proporcionada pelo trabalho meticuloso e requintado do Xavier da Veiga. D�cadas atr�s, eu estava perdido diante de um fascinante conto apocal�ptico de Guimar�es Rosa. “Um mo�o muito branco”, em Primeiras est�rias. O conto se abre por uma data precisa.

Lembre-se, todo o Grande sert�o: veredas se desenrola sem men��o a uma �nica data. Trata-se de uma extraordin�ria alegoria sobre o atraso constru�do pelo pr�prio desenvolvimentismo brasileiro. Estranhei a data precisa a abrir o conto. Cito as suas primeira palavras: “Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se os fatos de pavoroso suceder...”. O pavoroso suceder, descrito no conto, foi um terremoto que performava o fim do mundo com linguagem tomada de empr�stimo ao Velho Testamento.


O 11 de novembro de 1872 tem de significar um acontecimento concreto e prof�tico, matutei. O evento, os protagonistas e a transcend�ncia apocal�ptica do conto n�o s�o gratuitos. E devem ser atuais. N�o s� a data � precisa, tamb�m o local. Como chegar ao �mago da cria��o art�stica de Rosa? Como chegar � g�nese misteriosa do conto e ao sentido da associa��o da trama hist�rica mineira � repercuss�o hoje de amplitude planet�ria? Quem nos informaria sobre o “pavoroso suceder” no Serro e nos garantiria que a hip�tese de leitura de “Um mo�o muito branco” recobre tamb�m os desastres que tornam hoje o meio-ambiente irrespir�vel, desastres que compete � cidad� e ao cidad�o sustar na atualidade?


A resposta � evidente: o Xavier da Veiga. Corro a estante e puxo um dos volumes das Efem�rides mineiras, hoje reeditada pela Funda��o Jo�o Pinheiro e access�vel a qualquer um dos presentes, como deve ser todo livro. Abro o volume e vou diretamente � data. Sou tocado pela experi�ncia da epifania, que agora transmito aos presentes.


Nas p�ginas das Efem�rides est� impecavelmente descrito o “pavoroso suceder” no Serro, que fascina e ilumina a tal ponto a mente de Guimar�es Rosa que ele n�o s� imagina uma narrativa apocal�ptica como reproduz textualmente (a express�o � essa mesmo) palavras e express�es do patrono da cadeira 13. Minha homenagem ao patrono arquivista, ao fundador e aos sucessores dessa cadeira �, pois, simples e concreta. E, no plano humano, � prof�tica. Por isso n�o estarei a trair nem a Xavier nem a Rosa se transcrevo e leio as palavras compartilhadas das Efem�rides para apenas recomendar aos presentes, como acr�scimo, a leitura – ou releitura − do conto na tranquilidade do lar ou da biblioteca.


Abrimos o arquivo: no Serro em 1872 (e em Brumadinho e em Mariana neste s�culo 21), os mineiros e a humanidade sobrevivem em tempos apocal�pticos. Sem mais delongas, quem lhes fala � a voz atemporal e definitiva do patrono da cadeira:


Terremoto e inunda��o do rio do Peixe. – � noite, pelas 11 horas, ouviram-se no Condato, distrito da cidade do Serro, dois grandes estrondos, quase juntos, e a terra estremeceu: passados 10 a 15 minutos rompeu t�o monstruosa enchente como nunca viu-se ali. Houve perda de muitas vidas; al�m da enchente rolou uma grande montanha, que levou a casa de Ant�nio Gon�alves e toda a fam�lia, composta de 4 pessoas, e de um estrangeiro  que ali pernoitara naquela noite. A uma l�gua de dist�ncia, rio abaixo, se ouviam os gritos, sem que se lhes pudesse acudir, porque, al�m das �guas terem-se tornado um mar bravo, os montes corriam uns por cima dos outros, al�m dos grandes troncos e madeiras que eram levadas pela corrente e faziam cercas. Em uma vertente do mesmo rio, no lugar denominado ‘Caldeiras’, correram os morros de um e outro lado, ficando o lugar completamente desconhecido: a� Serafim Ribeiro Caldas e sua fam�lia foram submersos, uns enterrados at� o pesco�o, e outros at� os ombros, e assim passaram toda a noite, sem poderem salvar uma filhinha, que morreu tamb�m enterrada. As terras de cultura, � dist�ncia de uma l�gua, ficaram completamente inutilizadas, e aquele terreno foi reduzido a lapas e rochedos. Outras muitas desgra�as ocorreram nesta tempestuosa noite, cuja descri��o seria longa e quase imposs�vel aqui darmos. No dia seguinte abrigaram-se na fazenda do finado Severiano Metelo mais de 100 pessoas. Da ponte do rio do Peixe a duas l�guas, contaram-se 87 desmoronamentos! As �guas subiram mais de 60 palmos acima do n�vel do rio!”


Consultado o arquivo e lido o conto, descobriremos como o patrono Xavier e o genial Rosa se d�o as m�os na representa��o de Minas no Mundo, ontem e hoje. Um reproduz em min�cias o terremoto em terreno pr�-cambriano onde a crosta apresenta alguma fraqueza, e o outro inventa com a imagina��o moderna, febril e cr�tica os desastres ambientais causados e armados pelo homem. Nenhum autor brasileiro, ou estrangeiro, teria feito descri��o mais fiel para n�s, os humanos, dos desastres que v�m acontecendo nos �ltimos anos nesse Estado. Os desastres e as mortes causados pela f�ria dos elementos, como se dizia ent�o, � hoje a consequ�ncia da ferocidade da Natureza que reage � gan�ncia do extrativismo predador e � destrui��o da harmonia nos reinos mineral, vegetal e animal.


Em determinado momento da sua vida, Sigmund Freud falou das tr�s feridas narc�sicas que marcam a hist�ria do homem ocidental. A primeira foi imposta por Cop�rnico quando retirou a Terra do centro do sistema planet�rio. A segunda foi infligida por Darwin quando disse que o homem descendia do macaco. E a terceira � de responsabilidade do pr�prio Freud. Afirma ele que a consci�ncia repousa no inconsciente.

Xavier e Rosa profetizam: a humanidade vive hoje uma quarta e mortal ferida narc�sica.


Amea�ada de morte prematura, a humanidade est� se preparando para sair do palco em que protagoniza o papel de �nico dominador da natureza. Sai do palco e entrega � Natureza o direito exclusivo de atua��o em cena. A Quarta-feira de Cinzas da hist�ria da humanidade na Terra ser� bem outra, n�o tenhamos ilus�o. S� em cena, moribunda e exaltada, a Natureza, com lances e gestos de grande dama ofendida, se dirige � Humanidade, agora a sua espectadora. No centro do palco, ela lhe diz que abomina o trabalho que a destr�i.

Faz-lhe, no entanto, uma s�plica: que a deixem abdicar da condi��o de objeto privilegiado das boas e m�s inten��es do ser humano. E acrescenta: sua cura − se h� condi��es para a cura da Natureza na atual edi��o do planeta − s� vir� no momento em que o ser humano dela se retirar. Quando? Nunca. Ou amanh�. 


Deixo a Minas profunda e prof�tica do lavrador para abra�ar o diplomata que esteve a servi�o do Estado brasileiro. A Minas do marinheiro. Dou adeus ao arquivista Xavier e sa�do o embaixador Flecha de Lima, um dos mais representativos da sua gera��o.


Talvez o tenha elegido para simbolizar os demais antecessores por inesperada coincid�ncia que me chega, ao refletir sobre a carreira profissional do confrade no contexto das belas hist�rias de acad�micos que tamb�m deixaram Minas, como o Arcebispo de Olinda e Recife. A coincid�ncia permitiu que a sensibilidade art�stica refletisse sobre outra e importante quest�o atual, sempre pendente na pol�tica brasileira. O embaixador Flecha de Lima, homem pragm�tico e negociador das coisas brasileiras no estrangeiro, lembrou-me um artista pl�stico da vanguarda e homem sonhador, o meu grande amigo e um dos mais extraordin�rios representantes das artes no mundo, o carioca H�lio Oiticica.


Permitam-me uma nova compara��o. Como � que, em determinado momento de incontorn�vel atraso no Brasil, causado pela pol�tica ditatorial instalada em 1964, o embaixador e o artista perceberam – no entrecruzar do pragmatismo de um e do vanguardismo do outro − que a sa�da do buraco da viol�ncia governamental estava na expans�o da na��o democr�tica brasileira pelo mundo. O paradigma da forma��o do cidad�o brasileiro, objeto elaborado pelos maiores pensadores oriundos do Modernismo, estava ficando obsoleto e havia a necessidade de ser suplementado por outra experi�ncia, a da inser��o do cidad�o brasileiro no mundo. A reflex�o sobre a nova experi�ncia ajudaria a retirar o Estado nacional da condi��o autorit�ria e persecut�ria, que se desdobrava no exerc�cio da viol�ncia entre irm�s e irm�os.


Teremos de come�ar a pensar e a agir − como recomenda o irreverente H�lio Oiticica no ensaio “Brasil diarreia”, de 1973, − pela “inser��o da linguagem-Brasil em contexto universal”. A na��o, se tornada democr�tica e pacificada, passar� a se significar pelo equil�brio interno e pelo arrojo externo, em suma, pela originalidade da presen�a da linguagem-Brasil fora do Brasil. A na��o democr�tica brasileira est� fadada a ocupar um lugar de destaque no planeta.


H�lio se explica em seguida. Inserir a linguagem-Brasil em contexto universal leva a uma constata��o de ordem pol�tica. Os problemas locais se tornam irrelevantes se situados apenas e somente em rela��o a interesses locais. S� n�o v� quem n�o quer. E ele conclui: “A urg�ncia dessa ‘coloca��o de valores’ num contexto universal � o que deve preocupar realmente �queles que procuram uma ‘sa�da’ para o problema brasileiro”.


A palavra esperan�osa do artista genial se deixa recomendar pela atua��o pragm�tica do embaixador, e vice-versa. A miss�o do Itamaraty se torna indispens�vel se o chanceler apoiar com persist�ncia uma maior abertura e exposi��o no mundo da linguagem-diplom�tica-Brasil, se me permitem a express�o. Flecha de Lima, reconhecido pela capacidade de trabalho e pelo empenho em produzir resultados salientes e mais r�pidos, instiga outros colegas a participar de importantes negocia��es comerciais e pol�ticas nos mais diversos postos em que representam o Brasil.


� sabido de todas e de todos os presentes o nome de quem em 1964 fechou as portas do Brasil e nos isolou do mundo moderno. Tamb�m � sabido de todas e de todos o nome de quem h� cinco anos trancou as portas do Brasil. N�o h� que repetir os nomes, por mais necess�rio que seja. H� que n�o os esquecer, como recomenda o arquivista Xavier da Veiga. Sabemos tamb�m o nome de quem nos anos 1980 reabriu as portas da na��o para as diretas-j�. Sabemos tamb�m o nome de quem nesse janeiro de 2023 as reabriu e quer trilhar o caminho que vir� a inserir, pela linguagem-diplom�tica-Brasil, a nossa pac�fica na��o democr�tica no mundo em guerra na Europa.


Na conflu�ncia de Xavier e de Paulo Tarso, na similitude entre os vanguardistas Rosa e H�lio, homenageio a todos os acad�micos, artistas, professores, profissionais, cidad�s e cidad�os que j� t�m cadeira – ou a merecem – nesta Casa mineira e na hist�ria brasileira.


Aos confrades acad�micos e �s pessoas amigas � essa sensa��o transformadora e saud�vel, esperan�osa tamb�m, de estar entre os bons que pensam, pelo conhecimento aliado � pesquisa e � inquieta��o pol�tica, o enorme potencial da na��o democr�tica brasileira, e atuam de modo a concretiz�-lo na realidade nossa de todos os dias, � essa sensa��o gostosa, repito, que gostaria de lhes transmitir e lhes passar nesta noite.


Muito obrigado a todas e a todos pela presen�a.


 

“Falha da academia est� sanada”

 

A cadeira treze da Academia Mineira de Letras tem como patrono o jornalista Xavier da Veiga, antigo senador estadual, fundador e primeiro presidente, em 1895, do Arquivo P�blico Mineiro, institui��o que salvou do esquecimento e da destrui��o boa parte da documenta��o provincial e da mem�ria do povo e do territ�rio das Minas Gerais. Tamb�m foi Xavier da Veiga quem lan�ou a importante revista do Arquivo. Sob seu patronato, ocuparam a referida cadeira o poeta Carmo Gama; o not�vel romancista Godofredo Rangel; o c�lebre orador sacro Dom Ant�nio Moraes; o jurista e professor Jo�o Franzen de Lima, e, finalmente, o Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, na sucess�o de quem Silviano Santiago se elegeu, em outubro de 2021, com 35 votos. A candidatura de Silviano foi l�gica e natural. A �nica pergunta que n�o conseguimos responder, �quela altura, era porque um dos mais completos intelectuais nascidos no estado ainda n�o fazia parte da Casa de Alphonsus e de Henriqueta. Agora, a falha da Academia est� sanada.

 

Rog�rio Faria Tavares � jornalista, doutor em Literatura e presidente da Academia Mineira de Letras. 

Sobre Silviano Santiago

 

Nascido em Formiga (MG) em 1936, Silviano Santiago tem obra que inclui romances, contos, ensaios liter�rios e culturais. Entre os mais de 30 livros, t�tulos premiados como “Em liberdade”, “Uma literatura nos tr�picos” e, nos �ltimos anos, “Machado”, “Mil rosas roubadas”, as mem�rias em “Menino sem passado: 1936-1948” e os ensaios “Genealogia da ferocidade” e “Fisiologia da composi��o”. Doutor em letras pela Sorbonne e professor em�rito da Universidade Federal Fluminense (UFF), venceu seis vezes o Pr�mio Jabuti. O conjunto de sua produ��o liter�ria recebeu o pr�mio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Foi laureado com o Pr�mio Cam�es em 2022. 


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