Zelito Vianna

Zelito Vianna na 14� Mostra de Cinema de Tiradentes, em MG

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Personalidade que circulou entre tipos ilustres da cultura como Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Arnaldo Jabor, Augusto Boal, Rog�rio Sganzerla e Ant�nio C�ndido, o diretor e produtor de cinema Zelito Vianna, aos 85 anos, h� mais de seis d�cadas � guardi�o empenhado num “embate permanente a favor do cinema brasileiro”.

 

“Passamos d�cadas lutando no mercado com produtos similares (filmes) estrangeiros. A gente concorre de uma maneira totalmente desleal do ponto de vista capitalista. Os filmes internacionais v�m pagos, desde a circula��o no seu com�rcio interno. A luta � constante, durante todos esses anos, tento diminuir essa desigualdade imensa em que se atinge 90% de consumo de um produto s� (estrangeiro), num monop�lio”, observa.

 

Mesmo que moment�nea, Zelito ainda hoje celebra a lei do curta-metragem nacional, vigente por press�es encampadas entre outros por Zelito, fundamental em vit�rias como a da consolida��o do Canal Brasil. “Foi um �xito essa possibilidade de ver uma plataforma mostrar o produto brasileiro ajustado � lei que impunha canais de programa��o 100% brasileira na rede de tev� a cabo”, relembra.

 

 

Reavivar a mem�ria tem sido um exerc�cio proveitoso para o cineasta, que assume ter atravessado “relativamente bem” a pandemia. Sem rascunho ou backup de um projeto de livro iniciado h� 10 anos, e levado em assalto (no RJ), Zelito se disp�s a escrever tudo de novo, num apanhado “filme a filme”.

 

Em meio a pesquisas, encontrou uma entrevista concedida por Darcy Ribeiro, em 1977. “Estava transcrita no computador; ent�o botei (meu filho) Marcos Palmeira a ler tudo e fiz um filme chamado Da terra dos �ndios aos �ndios sem terra.” Ele lan�ou, ainda, recentemente, a autobiografia Os filmes e eu.

 

Produtividade intensa

No dia a dia, debates nacionais que envolvam viol�ncia contra �ndios e dissemina��o de fake news, por exemplo, encurtam a paci�ncia do calmo taurino nascido em Fortaleza (CE). “Nunca presenciei nada parecido. � impressionante: assisti a esse document�rio da Globo, Extremistas.br. � uma coisa completamente doida: o Brasil nunca viveu isso. No auge, a invas�o do Supremo Tribunal Federal, gente cagando no Congresso e virando a cadeira de representantes. Acampamentos; essas pessoas...”, espanta-se.

 

Antenado e atuante, Zelito Viana, que vive de presente, j� tem um longa (Sedu��o) com pr�-produ��o em curso, aguarda a solu��o de “um problema de agenda” de Egberto Gismonti, objeto de document�rio, al�m de revelar: “Neste ano farei um document�rio sobre a Mar�lia P�ra para a televis�o. Ter� roteiro do Nelsinho Motta (produtor, escritor e ex-marido da atriz) e as filhas da Mar�lia v�o trabalhar no filme. Vai ser legal”.

 

 

Entrevista Zelito Viana

Sedu��o, seu pr�ximo filme (com algo de experi�ncia vivida), trata do encontro de irm�os desconhecidos. O que mais pode ser adiantado?

 

Este ser� o in�cio do filme, a premissa. O filme � sobre essa coisa que est� acontecendo no Brasil, do garimpo ilegal, da explora��o da madeira, da grilagem de terra. O pai do ator, na hist�ria, morre, e ele morava l� no meio da Amaz�nia — ent�o vem um cara urbano, da televis�o, e entra em conflito com uma coisa que ele n�o tem nenhuma viv�ncia: neste conflito � que est� o filme. Marcos Palmeira vai ser o protagonista e tamb�m o codiretor, serei um diretor, supervisionado.

 

Depois de filmes como Terra dos �ndios (1979) e Avaet� (1985), da conviv�ncia com M�rio Juruna (morto em 2002) e da m�xima do “Se voc� n�o respeita o outro, est� empobrecendo a humanidade” (reproduzida na autobiografia), que perspectiva tem das quest�es ind�genas?

 

Respondo a tudo isso com meu filme Da terra dos �ndios aos �ndios sem terra, document�rio que eu fiz baseado entrevista com Darcy de 1977 em que ele faz um apanhado sobre o que voc� precisa saber sobre ind�gena no Brasil, e ele d� uma aula de Brasil extraordin�ria. Fala coisas incr�veis, por ele ter uma forma de lidar com as palavras que � muito especial. Para poder atualizar o filme, e faz�-lo, em 2022, meu genro, o antrop�logo Aur�lio Viana, me indicou uma lideran�a, o Gersem Baniwa, um catedr�tico de antropologia da UnB, e repito a pergunta e ele me responde o que eu preciso saber sobre ind�genas. O filme est� na programa��o do canal Brasil e no site do Sesc.

 

Escrever o recente livro, despertou saudades? Como percebe o fluxo cultural de hoje?

 

Fa�o o poss�vel para n�o ser saudosista, sendo o mais contempor�neo poss�vel. Mas � dif�cil no Brasil de hoje porque a gente est� com dificuldade n�o s� no humor, mas na m�sica, no teatro e no cinema. O momento n�o � o que eu vivi quando eu tinha 30 anos. Isso � uma coisa normal — s�o fases s�o gera��es, s�o fluxos. Tem muita coisa acontecendo.

 

 

Claro que tem os talentos que est�o a� e houve, sobretudo nos �ltimos cinco anos, uma dificuldade de voc� conseguir expandir esses talentos. Est� dif�cil tudo. No humor, acho que a coisa “vai que cola” ganhou. O humor mais baixo sempre existiu no Brasil, mas agora ele passou a ser o principal, como acontece com a m�sica, com a sertaneja, a sofr�ncia que passaram a ser a principal do Brasil: se virou a p�gina da MPB.

 

Voc� n�o v� um grande talento da MPB. Tem muitos cantores bons novos, mas estamos em dificuldades. No cinema tamb�m. Participei da escolha do filme brasileiro para o Oscar passado e vi mais de 20 filmes brasileiros: h� filmes de alto n�vel, mas, no geral, esteve dif�cil.

 

E na pol�tica? O senhor assume ampla admira��o pelo filme Cabe�as cortadas (1970), de Glauber Rocha, fluente no trato da corrup��o... A Am�rica Latina mudou?

 

Continua igualzinho. A gente v� a disputa da elei��o pela presid�ncia da C�mara, a��es de senadores e deputados, e est� igualzinha. Voc� v� como se governa no Brasil, quais s�o as regras toleradas na forma��o dos minist�rios, na maneira de criar a governan�a — s�o todas as mesmas da �poca do Imp�rio. Assim no Brasil, na China, na Col�mbia, na Argentina. A gente tem um espa�o largo para poder atingir uma civiliza��o, infelizmente.

 

Como era Glauber Rocha (com quem fez muitos filmes), em a��o?

 

Quanto ao Glauber, ele trabalhava no fio da navalha sempre; ele trabalhava no limite do rid�culo com o genial. Ele gostava de andar no fio da navalha — o que � muito dif�cil de se fazer, s� cabe a gente superdotada como ele. Glauber andava nesse perigo constante, e levava isso �s �ltimas consequ�ncias. Um filme exemplar nisso � o curta sobre Di Cavalcante (com registro de vel�rio e enterro do modernista). Ele vai longe.

 

 

Nas filmagens de C�ncer (1972), o senhor conta do arrependimento de xingar Ant�nio Pitanga em cena. Que del�rio foi esse, e como v� o racismo hoje em dia?

 

Eu vejo como a coisa mais s�ria que a gente tem para enfrentar. Li o livro do Laurentino Gomes, uma obra-prima, que o Brasil inteiro tinha que conhecer. O que fizemos com os escravizados neste pa�s n�o vamos pagar nunca, n�o tem cota que seja suficiente. A gente deve muito aos povos africanos que vieram para c� e aos brasileiros que estavam aqui. Foi produzida uma cat�strofe. � uma quest�o estrutural mesmo, temos o racismo introjetado. N�o adianta voc� n�o ser racista, voc� tem que ser militante de combater o racismo. O racismo � permanente.

 

Lembro do ator Milton Gon�alves dizendo que por v�rias vezes foi proibido de entrar em elevador social. Mandavam ele para o elevador de servi�o; tipo quarto de empregada, essas coisas que o Brasil herda e existe at� hoje. Carregar sacos de cimento de 60 quilos � coisa, h� anos, proibido na Europa, e aqui n�o. Tudo isso, fora a viol�ncia policial. Isso � grave e a coisa � s�ria. Naquele epis�dio da minha vida, de repente, surgiu em mim o tal capit�o do mato.

 

Que rinha � essa, entre os brasileiros de hoje?

Eu acho interessante que a internet veio e levantou uma poeira que existia na sociedade do que h� de pior. Um cara acha que a terra n�o � redonda, e ele descobre que tem mais 200 mil pessoas no mundo que acham que a Terra � chata. Virou um gueto e os caras se comunicam, e de repente, v�o para a rua tentar mostrar que a Terra n�o � redonda.

 

Podem inventar as coisas mais esdr�xulas. Outro dia, um fazendeiro me disse que n�o ia mais trabalhar, n�o investiria, porque o Lula ia proibir a exporta��o de carne. E o cara acredita que ia proibir para que o povo pudesse comer churrasco (risos). Isso tudo virou uma coisa viralizada na sociedade. S�o pequenos que v�o se juntando e termina numa maluquice como foi no neg�cio do Congresso. Tinha muita gente l�, e era um neg�cio perigoso.

 

 

O senhor entrevistou duas vezes o Oscar Niemeyer. Bras�lia tem correspondido ao legado dele?

 

Ele era um artista, um g�nio das artes pl�sticas. Viver no Pal�cio da Alvorada, por�m, era horr�vel. Uma vez, eu visitei o Fernando Henrique Cardoso e ele reclamava de tudo: at� do banheiro — n�o tem nada a ver com a funcionalidade das coisas. Niemeyer era um artista que trouxe uma das coisas mais lindas da humanidade.

 

O Pal�cio do Itamaraty � uma coisa extraordin�ria! Parece que viver no Pal�cio da Alvorada n�o � bom: pessoas caem das escadas, tem problema no corrim�o... Mas Niemeyer n�o estava interessado em corrim�o (risos). Ele era um artista genial que, com dois tra�os, fazia uma obra-prima. Generoso, e morreu acreditando que o comunismo ia voltar. Tinha uma convic��o marxista-leninista fort�ssima; mesmo com queda do muro de Berlim, com Uni�o Sovi�tica virando R�ssia, ele continuava firme nas posi��o de defesa. Isso � admir�vel.

 

Da juventude, guarda a conviv�ncia com Tom Jobim, Dolores Duran e Elizete Cardoso. H� saudosismo?

 

Sendo irm�o do Chico Anysio, e mais novo sete anos, ia para onde ele me levava. Muitas vezes ia na r�dio Marab� — conheci Fernanda Montenegro com o nome de Arlete. Num concurso que o Chico (Anysio) participou, ela ganhou de radioatriz, e o S�lvio Santos, de locutor. Quando eu tinha uns 14 anos, Dolores Duran frequentava minha casa. O Chico compunha para ela tamb�m. Tom (Jobim) eu conheci, tocando piano num botequim de Copacabana. Convivi com uma gera��o um pouco acima da minha. Acompanhei muito pessoas como S�rgio Porto, Ant�nio Maria.

 

Tendo convivido com S�bato Magaldi, Oduvaldo Vianna Filho, Nelson Rodrigues, Domingos Oliveira, Ferreira Gullar e Eduardo Coutinho. Quem mais te impressionou a ponto de trocar por tev� ou r�dio, numa ilha isolada?

 

Ferreira Gullar e Darcy Ribeiro juntos, discutindo (risos). Assisti uma vez uma conversa entre o Darcy Ribeiro e o An�sio Teixeira, que era o mentor do Darcy — era aquele mais admirado efetivamente por ele, para al�m dele mesmo (risos). An�sio chamava Darcy de insciente (ignorante). Um falava uma coisa e o outro, outra. Uma vez vi o An�sio Teixeira teorizando sobre o peso da colherzinha de caf� — que era absurdo ter a cabe�a mais pesada do que o rabo, porque, quando cai, derruba tudo (risos). O fundo musical, na ilha, seria do Tom Jobim, e a conversa seria entre Darcy Ribeiro e Ferreira Gullar.