Milton Nascimento foi observado pelo Servi�o Nacional de Informa��es
�ltima reportagem da s�rie sobre o disco hist�rico de Bituca revela como o cantor e compositor era visto pela ditadura militar, em relat�rio confidencial
Parceiros em composi��es como "O cio da terra", Milton Nascimento
e Chico Buarque ficaram sob a mira do SNI durante a ditadura militar
Cl�vis Fotografia
Ao gravar e lan�ar o disco “Milagre dos peixes” em 1973, Milton Nascimento comprou uma briga inc�moda com a ditadura militar. O Brasil vivia os “anos de chumbo” sob a m�o de ferro do general Em�lio Garrastazu M�dici.
Tr�s can��es do �lbum tiveram suas letras vetadas pela censura pr�via, mas Milton e a gravadora Odeon decidiram bancar o projeto. O trabalho, um dos mais experimentais e ousados da carreira do cantor e compositor, veio a p�blico h� 50 anos com vers�es instrumentais das m�sicas censuradas. A tens�o entre o artista e o regime se intensificou a partir daquele momento.
Entretanto, Milton j� era observado pelos militares desde pelo menos 1968, quando participou de um “show de cunho subversivo na PUC”. A informa��o est� destacada em relat�rio da ag�ncia central do Servi�o Nacional de Informa��es (SNI), carimbado como confidencial e datado de 14 de mar�o de 1977. Localizado pelo Estado de Minas no acervo digital do Arquivo Nacional, o documento revela como Milton Nascimento era visto pelo regime de exce��o.
Relat�rio do SNI revela que Bituca era observado pelo regime desde 1968
Sob a alega��o de que o nome do “cantor popular” havia sido cogitado para um show em Bras�lia, contratado pelo departamento de Turismo do DF e pela TV Globo, o SNI apresentou um dossi� sobre Milton ao requerente, n�o especificado, que fizera a solicita��o por telefone.
No relat�rio do SNI, s�o destacadas algumas passagens da carreira de Milton para justificar o parecer. Em uma delas, l�-se que, em setembro de 1971, o cantor e mais 18 compositores recusaram-se a participar do VI Festival Internacional da Can��o a fim de protestar contra o Servi�o Federal de Censura.
relat�rio do SNI sobre Bituca
Reprodu��o/Arquivo Nacional
“Na verdade, pretendiam tais artistas populares, j� classificados como pertencentes � esquerda festiva, a esvaziar o FIC, �s v�speras de sua realiza��o, para obter repercuss�o no �mbito nacional e internacional, jogando os afei�oados da m�sica contra a censura”, diz o documento.
documento confidencial do SNI
Reprodu��o/Arquivo Nacional
Outro ponto indicado pelo SNI � que, em novembro de 1972, Milton havia promovido, ao lado de Chico Buarque “e outros cantores hostis ao governo da Revolu��o de 1964”, apresenta��es para o movimento estudantil. “Oportunidades em que puderam manter os estudantes em permanentes expectativas pol�ticas e sob influ�ncia de um proselitismo pol�tico subliminar e desagregador, por interm�dio de can��es populares de conte�do ideol�gico”, segue o texto.
arquivo nacional cont�m relat�rio do SNI
Reprodu��o/Arquivo Nacional
Milton teria tamb�m, conforme o dossi�, cantado no show “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos” no dia 10 de dezembro de 1973, no Rio de Janeiro, uma can��o de sua autoria sem autoriza��o da censura pr�via. J� nos dias 14 e 26 de outubro de 1974, Milton participou, com “Francisco Buarque de Holanda” e outros artistas, dos “c�rculos art�stico-teatrais-pr�-reelei��o” do ent�o deputado Lys�neas Maciel. Por fim, em janeiro de 1977, seu nome constou entre os “intelectuais” signat�rios de manifesto “protestando contra a a��o da censura federal”.
A can��o “Morro Velho”, que Milton apresentou ao Brasil ao lado de “Travessia e “Maria minha f�” no FIC de 1967, � alvo de uma an�lise dos oficiais. “(A obra) enaltece a luta de classe sob o t�tulo de a ‘Escola da Desigualdade’, isto �, as diferen�as qualitativas das escolas privadas (para o filho do rico), sobre as consideradas p�blicas (para o filho do pobre), a provocar homens como o ‘filho do sinh�’ que se tornou doutor para mandar e do pobre, sem oportunidade na sociedade, que volta a trabalhar com a enxada, ap�s um estudo deficit�rio e de baixa qualidade”, informa o registro.
A conclus�o do �rg�o foi a seguinte: “Observa-se que, n�o obstante os dotes art�sticos de Milton Nascimento, trata-se de cantor engajado no trabalho pol�tico-ideol�gico de descaracteriza��o da m�sica popular brasileira, cujo militante principal identifica-se com a figura de Francisco Buarque de Holanda, fato que n�o aconselha o disp�ndio do dinheiro p�blico com a sua promo��o art�stica”.
Chama a aten��o no relat�rio do SNI o destaque dado � liga��o de Milton Nascimento com Chico Buarque, referido no documento por seu nome completo. Chico era tido como subversivo, vers�o amplamente difundida entre os militares, e foi o artista da m�sica popular brasileira mais censurado e perseguido pela ditadura militar. Ele se autoexilou na It�lia no fim dos 1960 e retornou ao pa�s no come�o da d�cada seguinte.
O compositor carioca � autor de “C�lice”, parceria com Gilberto Gil, cr�tica contundente ao regime que foi vetada pela censura em 1973 e ganhou grava��o definitiva, ao lado de Milton, apenas em 1978. Chico e Milton s�o parceiros em “O cio da terra” e “Primeiro de maio”, lan�adas em um compacto naquele 1977.
O cineasta mo�ambicano Ruy Guerra viu sua “Cad�”, parceria com Milton , ser proibida pela censora Marina de Almeida Brum Duarte e, no mesmo 1973, a pe�a “Calabar: o elogio da trai��o”, dele e Chico Buarque, ir pelo mesmo caminho e ter sua encena��o cancelada pelo regime.
“Os censores liam as propostas e can��es j� com preconceito, e censuravam tudo o que n�o compreendiam”, observa Ruy Guerra em entrevista por telefone ao Estado de Minas. “Milton nunca foi de falar muito, nem de dar declara��es pol�ticas. � um cara de frases curtas, n�o verborr�gico como eu. Mesmo assim, foi censurado”, nota o diretor.
Desde o �ltimo domingo (4/6), o EM relembra a censura pr�via ao disco “Milagre dos peixes”, que teve as letras de tr�s composi��es vetadas pelo regime militar: “Hoje � dia de El-Rey”, de Milton com M�rcio Borges; “Os escravos de J�”, com Fernando Brant; e “Cad�”, com Ruy Guerra. O jornal teve acesso aos documentos em que a censora Marina de Almeida Brum Duarte escreveu, � m�o, o veredito sobre o conte�do das composi��es de Milton e seus parceiros. Eles foram localizados no acervo digital do Arquivo Nacional e s�o pouco conhecidos.
Na vis�o da oficial, “Hoje � dia de El-Rey” apresentava “conte�do nitidamente pol�tico”. “Os escravos de J�” cont�m “s�tira”, “protesto”, “contesta��o pol�tica” e at� “pornografia”. J� a letra de “Cad�”, segundo Brum Duarte, trazia “ironia pol�tica” e “contesta��o”.
Para o historiador Bruno Viveiros Martins, autor do livro “Som Imagin�rio: a reinven��o da cidade nas can��es do Clube da Esquina” (Editora UFMG, 2009), Milton pagou caro por ter lan�ado “Milagre dos peixes”.
“A resposta dada por ele � censura era algo in�dito no Brasil”, analisa o pesquisador. “Milton teve a vida pessoal devassada”. O amigo e parceiro M�rcio Borges concorda: “Bituca sofreu muita persegui��o, tinha que comparecer naqueles locais horrorosos, prestar depoimentos.”
SNI
O Servi�o Nacional de Informa��es (SNI) foi criado em 1964 pelo governo militar para centralizar na Presid�ncia da Rep�blica o controle de informa��es consideradas fundamentais para a seguran�a nacional. Artistas, sindicalistas, l�deres religiosos, pol�ticos, estudantes, professores, cientistas, intelectuais, servidores p�blicos, empres�rios e cidad�os comuns eram vigiados secretamente sob suspeita de envolvimento em atividades contr�rias � ditadura militar e apoio � esquerda. Faziam parte dos m�todos de espionagem do SNI grampos telef�nicos, censura � correspond�ncia, monitoramento e fotografia de cidad�os.
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