Milagre dos peixes: projeto musical de Milton era aguardado com grande expectativa pelos f�s, colegas e cr�tica especializada
Milton Nascimento havia se posicionado no primeiro time da m�sica brasileira em 1972, com o �lbum duplo "Clube da Esquina", dividido com o ent�o estreante L� Borges. O disco, que havia demorado a cair no gosto popular e tocar nas r�dios, decolou e colocou de vez o artista carioca - de alma mineira - no Olimpo dos maiores cantores-compositores brasileiros de todos os tempos.
Depois de tamanho �xito, o projeto musical subsequente de Milton era aguardado com grande expectativa pelos f�s, colegas e cr�tica especializada. Em 1973, tr�s can��es criadas para o �lbum que viria a ser "Milagre dos peixes" tiveram suas letras censuradas pelo regime militar. Milton n�o se intimidou: peitou a ditadura e gravou as m�sicas em vers�es instrumentais, colocando-se na mira dos militares para sempre.
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Durante o regime de exce��o, letras de m�sica e roteiros de pe�as de teatro, filmes e novelas tinham que ser submetidos aos censores para que seu conte�do fosse avaliado e sua veicula��o p�blica, autorizada. Sem essa autoriza��o pr�via, as produ��es n�o poderiam, no caso das can��es, ser gravadas ou cantadas em shows.
A rea��o de Milton Nascimento foi diferente: quando recebeu os documentos da censura com os versos de seus parceiros Fernando Brant, Ruy Guerra e M�rcio Borges rabiscados nas m�sicas "Os escravos de J�", "Cad�" e "Hoje � dia de El-Rey", respectivamente, ele resolveu grav�-las mesmo assim, sem as letras.
No auge da repress�o e da viol�ncia, "Milagre dos peixes" tornou-se um grito pela liberdade de express�o. "Milton Nascimento demonstrou sua revolta utilizando-se de um elaborado experimentalismo instrumental e interpretativo", analisa o historiador belo-horizontino Bruno Viveiros Martins, autor do livro "Som Imagin�rio: A reinven��o da cidade nas can��es do Clube da Esquina"(Editora UFMG, 2009). "O cantor fez uso incisivo de gritos, suspiros, sussurros e outros efeitos de voz para expor, por meio de sons, aquilo que n�o podia ser dito atrav�s de palavras".
NO SINAL DE VELHOS TEMPOS
Para o time de letristas, o compositor recrutou os amigos Brant, Borges e Ronaldo Bastos, os mesmos parceiros que haviam dado vida a "Clube da Esquina" no ano anterior, e ainda o cineasta Ruy Guerra, �quela altura tamb�m amigo e parceiro musical. Milton foi ele pr�prio letrista de "Sacramento", parceria com o m�sico Nelson Angelo, que gravou o disco ao lado de Novelli, Wagner Tiso, Nan� Vasconcellos, Paulinho Braga, Nivaldo Ornelas e Paulo Braga.
Morto em 2015, aos 68 anos, o compositor mineiro Fernando Brant, autor dos versos de "Travessia" e "Maria Maria", coordenou a produ��o art�stica do disco e criou a letra da can��o que deu nome a "Milagre dos peixes": "Eu vejo esses peixes e vou de cora��o/ Eu vejo essas matas e vou de cora��o/ � natureza...".
A m�sica tornou-se uma das mais conhecidas de Milton e � considerada uma das obras-primas de Brant ao lado do amigo. "Ela passou pela censura simplesmente porque n�o conseguiram analisar seu conte�do de acordo com o contexto pol�tico da �poca", opina Bruno Viveiros Martins. "Seus versos abordavam v�rios temas da vida cotidiana associada � pauta pol�tica, social e moral a partir de �ngulos de vis�o existenciais, ut�picos, libert�rios e at� transcendentais", explica o historiador.
Milton e Brant driblaram a censura com "Milagre dos peixes", mas n�o tiveram a mesma sorte com "Os escravos de J�". A faixa que abre o disco teve sua letra integralmente vetada pela censora Marina de Almeida Brum Duarte. Em documento datado de 2 de maio de 1973 e acessado pelo Estado de Minas no acervo do Arquivo Nacional, ela escreveu � m�o, ao lado dos versos de Brant: "Vetada. Contesta��o pol�tica. S�tira e protesto. Conota��o pornogr�fica".
"SE VIVER EU SOU R�U"
"Os escravos de J�": letra original foi praticamente apagada da hist�ria, permanecendo restrita ao documento da censura federal
Com a proibi��o, um novo documento foi enviado para a censura, apenas com o refr�o da m�sica: "Saio do trabalho-ei/ Volto para cas-ei/ N�o lembro de canseira maior/ Em tudo � o mesmo suor", ent�o aprovados por ela em 15 de maio de 1973 com o seguinte coment�rio: "Aprovamos a quadra (verso) em pauta, n�o devendo ser gravada nem veiculada o restante da letra", anotou a oficial � caneta. Em "Milagre dos Peixes", coube � cantora carioca Clementina de Jesus interpretar o que restou da composi��o ap�s a tesoura da censura.
A hist�ria de "Os escravos de J�" � anterior a "Milagre dos Peixes". Com o nome de "O homem da sucursal" e outra letra de Fernando Brant, a can��o foi gravada por Milton em um compacto duplo e posteriormente inclu�da como faixa-b�nus no disco "Milton", de 1970. "Saio do trabalho, ei/ Volto para casa, ei/ Queria ver um filme de amor/ (...) Me lembro de um tempo melhor", diz o refr�o. Ap�s a censura de 1973, a composi��o foi resgatada por Elis Regina e gravada pela cantora como "Caxang�" em 1977, no registro primoroso que abre o disco "Elis". "Luto para viver, vivo para morrer/ Enquanto minha morte n�o vem/ Eu vivo de brigar contra o rei", diz a nova letra de Brant.
Com os vetos pr�vios indicados pela censura, "Milagre dos peixes" tornou-se um disco essencialmente instrumental, � exce��o da faixa-t�tulo e das can��es "Sacramento" e "Pablo". No encarte do disco, "Os escravos de J�", "Hoje � dia de El-Rey"e "Cad�"apareciam sem os versos, mas creditadas aos coautores Fernando Brant, M�rcio Borges e Ruy Guerra. "Foi uma atitude de coragem, rep�dio e den�ncia", acredita Bruno Viveiros Martins.
Na aus�ncia dos versos, a amplifica��o da express�o sem palavras. Com a voz na plena pot�ncia de seus 30 anos, Milton lan�ou seus vocalises e improvisos arrepiantes sobre as melodias das can��es proibidas. "A censura fez uma verdadeira chacina, o neg�cio era gritar do jeito que desse", comenta M�rcio Borges, dando como exemplo a faixa "A chamada", creditada a Milton. "Eu gostava muito mesmo era dessa, aqueles agudos lancinantes do Bituca, sem palavras, apenas sons", detalha. Bituca � como os amigos – sempre – se referem a Milton.
Coube a M�rcio Borges, coautor dos cl�ssicos "Clube da Esquina" e "Clube da Esquina nº 2", a letra de "Hoje � dia de El-Rey". Ele e Bituca adoravam a "Su�te dos pescadores", de Dorival Caymmi, e se inspiraram no universo do compositor baiano para criar a can��o. "A hist�ria deveria ser um di�logo entre pai e filho, sendo o pai o defensor das ideias conservadoras, naquela met�fora de El Rey, e o filho seu contestador, falando de soldados e viol�ncia dos fortes contra os oprimidos", explica M�rcio Borges em depoimento por escrito. "Tudo muito de acordo com a rebeldia e os protestos da juventude da �poca".
O plano da dupla era ter o pr�prio Caymmi cantando os versos que cabiam ao pai, enquanto Milton faria a parte do filho. "Mas a censura vetou a letra de cabo a rabo e tivemos que desistir do Caymmi, com o cora��o em peda�os", lamenta Borges.
No livro de mem�rias "Os sonhos n�o envelhecem - Hist�rias do clube da Esquina", Borges reproduz a letra original na �ntegra, mas o Estado de Minas localizou no Arquivo Nacional o documento de 27 de abril de 1973 em que l�-se "Vetada. Conte�do nitidamente pol�tico". A senten�a em "Hoje � dia de El-Rey", da mesma censora, Marina de Almeida Brum Duarte, passou d�cadas guardada em pasta do Servi�o de Censura �s Divers�es P�blicas, posteriormente incorporada ao acervo do Arquivo Nacional, e teve seu conte�do revelado pelo rep�rter Thiago Herdy em reportagem publicada no jornal "O Globo" em 26 de julho de 2015.
Por conta da proibi��o, a can��o foi gravada em vers�o instrumental por Milton e banda em "Milagre dos peixes". Est�o grifados no documento diversos trechos da letra, como "N�o pode viver em paz com seu amor/ N�o pode o justo sobreviver", "Juntai as muitas mentiras/ Jogai soldados nas ruas", e "Leva daqui tuas armas/ Ent�o cantar poderia/ Mas em teus campos de guerra/ Ontem morreu a poesia".
A can��o com a letra original de Borges nunca foi gravada por Milton e permaneceu como um registro hist�rico de uma obra art�stica mutilada pela ditadura militar. Mas um detalhe da grava��o instrumental da m�sica em "Milagre dos peixes" consolou o letrista. "A frustra��o de termos perdido a colabora��o do Caymmi foi compensada ao ouvirmos os solos de sax do Nivaldo Ornelas: gritos de revolta", elogia Borges.
Outra faixa de "Milagre dos peixes"� a instrumental "A �ltima sess�o de m�sica", tocada ao piano pelo pr�prio Milton. A faixa batizou a mais recente turn� da carreira do artista, que se despediu dos palcos em novembro de 2022. Na �ltima sess�o, o artista que colocou Minas Gerais no mapa da m�sica mundial reuniu p�blico de 60 mil pessoas no Mineir�o, em Belo Horizonte, para sua derradeira apresenta��o.
SEM NOVAS ENTREVISTAS
Milton Nascimento foi procurado pela reportagem para conceder um depoimento a respeito dos 50 anos de “Milagre dos peixes”. Filho e empres�rio do artista, Augusto Kesrouani Nascimento informou que o pai n�o concede mais entrevistas por ter encerrado a carreira em dezembro do ano passado ap�s o show “A �ltima sess�o de m�sica” no Mineir�o.

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