A sede da Cinemateca Brasileira, em São Paulo

Fortemente atingida pela crise que afetou o setor cultural na gest�o Bolsonaro, a Cinemateca Brasileira permaneceu fechada por mais de um ano; reabertura foi em 2022

Cinemateca Brasileira/Divulga��o


S�o Paulo – A cultura, de maneira geral, vira manchete com not�cias ruins, mortes e trag�dias,  na maioria das vezes. E a Cinemateca Brasileira, na �ltima d�cada, foi not�cia de primeira p�gina por v�rias raz�es: interven��o federal (2013), inc�ndios (2016 e 2021), moeda de troca pol�tica (2020). O �pice da crise deu-se quando, sem funcion�rios e nenhuma gest�o, ela ficou por quase um ano e meio fechada – reabriu somente em 2022.
 
Com o rec�m-lan�ado projeto Viva Cinemateca, a institui��o pretende voltar a ser manchete. Mas pelas raz�es corretas. Por meio de uma s�rie de investimentos, p�blicos e privados, foram colocados em curso projetos que preveem a revitaliza��o de seu acervo e a moderniza��o de sua sede, no mesmo local que abrigou o �ltimo matadouro da cidade, na Vila Mariana, Zona Sul de S�o Paulo.

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“Tamb�m estamos trabalhando em conjunto para dar visibilidade para a Cinemateca. Aqui n�o � s� lugar de guarda de filme velho”, afirma Dora Mour�o, professora em�rita da Escola de Comunica��es e Artes (ECA-USP), que assumiu a dire��o da institui��o desde a reabertura, logo ap�s se aposentar da doc�ncia. Dora integra h� mais de 20 anos a Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC) que, a partir de 2022, se tornou a gestora da entidade. 
 
sala climatizada da Cinemateca Brasileira

Tendo tido parte de seu acervo destru�do por inc�ndios, a Cinemateca se preocupa em refor�ar as medidas de seguran�a nessa nova fase

Cinemateca Brasileira/Divulga��o
 
 
O or�amento anual destinado ao contrato de gest�o � de R$ 14 milh�es – 40% desse valor tem que vir por meio de capta��o da pr�pria Cinemateca. No in�cio de 2023, com a entrada do novo governo, a Secretaria do Audiovisual destinou mais R$ 10 milh�es para este ano, valor que Dora espera assegurar para o pr�ximo. 
 
Para al�m de sua fun��o primeira – guarda e preserva��o do acervo audiovisual, o maior de filmes da Am�rica do Sul, com 40 mil t�tulos e mais de 1 milh�o de documentos – a Cinemateca, nesta nova gest�o, quer tamb�m mostrar que � de todo o pa�s. E que pensa o passado olhando para o futuro.

“Ela sempre foi criticada por alguns, que a consideram que � de S�o Paulo. E n�o, � do Brasil”, diz Dora. Tanto por isto ser� realizada, at� dezembro, em 12 cidades de diferentes regi�es, a mostra “A Cinemateca � brasileira”. Em Belo Horizonte, a programa��o come�a em 18 de agosto, no Memorial Minas Gerais Vale.
 
Outros espa�os da capital mineira poder�o receber a programa��o que abrange 17 filmes, de “S�o Paulo: A sinfonia da metr�pole” (1929), de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, a “Bacurau” (2019), de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles. Uma exposi��o tamb�m est� nos planos.


sala de cinema da Cinemateca Brasileira

Com duas salas de cinema equipadas para proje��o em pel�cula, entidade quer atrair cada vez mais p�blico

Cinemateca Brasileira/Divulga��o
“S�o mais de 70 anos de vida, ent�o ela precisa ser conhecida no pa�s. Vamos exibir n�o s� filmes da Cinemateca, mas tamb�m produ��es contempor�neas, pois a ideia � incentivar uma discuss�o sobre o cinema brasileiro, qualquer que seja ele. Se as produ��es continuam existindo � porque elas est�o sendo preservadas na Cinemateca. Queremos que o p�blico entenda o que significa preservar um filme”, afirma Dora.
 
N�o s� o que significa, mas como � feito o trabalho, cheio de min�cias e especificidades t�cnicas. H� tr�s projetos em andamento na Cinemateca. Um deles � o de nitratos, com a cataloga��o, digitaliza��o e conserva��o da cole��o mais antiga do cinema brasileiro. 
 
Nitrato de celulose � o primeiro pl�stico a ser descoberto – e o material utilizado para fazer filmes at� a d�cada de 1950. S� que ele � altamente inflam�vel – o inc�ndio de 2016, que destruiu mil rolos de filme, foi em uma das c�maras que guardavam as matrizes. O atual acervo da Cinemateca conta com 3 mil t�tulos de nitratos, guardados em quatro c�maras separadas.
 
Os rolos est�o armazenados em c�maras sem eletricidade, com um v�o entre as paredes e o teto. A arquitetura foi projetada para que os gases do material sejam liberados para fora – h� paredes vazadas com cobog�. Ao entrar numa das c�maras, o cheiro � forte – “um pouco como banana madura”, explica o t�cnico em preserva��o Marcelo Bueno. 

“Dependendo das condi��es de press�o e temperatura, ele pode entrar em combust�o espont�nea. Como o produto desta combust�o � o oxig�nio, o inc�ndio n�o pode ser debelado. Ou seja, voc� tem que esperar ele se autoconsumir”, explica Bueno, lembrando que em 2016 foram necess�rios apenas 15 minutos para que tudo pegasse fogo. Para evitar acidentes, � preciso haver uma revis�o peri�dica da cole��o, anualmente, de prefer�ncia, para que os rolos deem uma “respirada”, acrescenta. 
 
Do atual acervo de nitratos, 1,8 mil n�o est�o catalogados. Agora reequipando seu corpo de funcion�rios – os 90 atuais devem chegar a 100 at� o fim de 2023 – e com equipes contratadas para projetos pontuais, todo o material que ficou parado por um ano e meio est� sendo revisto.
O t�tulo mais antigo da Cinemateca foi descoberto h� pouco. Rodado em 1909 e lan�ado no ano seguinte por Eduardo Hirtz, � um filme silencioso que documenta uma festa na igreja de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. 
 
Tamb�m fruto deste renascimento foi a descoberta de um cinejornal, de 1945, rodado em Minas Gerais. Em plena campanha presidencial, o brigadeiro Eduardo Gomes veio a Belo Horizonte, onde reuniu milhares de pessoas (o locutor anuncia 80 mil da Pra�a da Esta��o, n�mero um tanto superestimado, se lembrarmos que a popula��o da capital girava em torno de 200 mil habitantes na �poca).
 
“Se voc� tem uma c�pia do seu filme em pel�cula, ele n�o est� preservado”, explica Gabriela Queiroz, diretora t�cnica da Cinemateca. “Um material �nico ganha valores museol�gicos, e tem que ser duplicado imediatamente. Para a gente dizer que uma obra est� realmente preservada, precisamos das matrizes, desde os negativos e dos materiais intermedi�rios. A partir disso fazemos as c�pias de difus�o em digital (que s�o as que s�o exibidas).”
 
Para que as matrizes saiam das c�maras onde s�o guardadas, elas t�m que respeitar as pr�prias exig�ncias do material. A Cinemateca conta com quatro dep�sitos iguais para guardar pel�culas – as em preto e branco ficam separadas das coloridas. 

Ao contr�rio das matrizes em nitrato, as pel�culas exigem muita refrigera��o. De 13 a 15 graus para os coloridos e de 9 a 12 para as P&B. Mas, para que saiam do espa�o e se aclimatem, t�m que ficar entre 24 e 48 horas em uma antec�mara a uma temperatura intermedi�ria. “Se bem conservadas, podem durar at� 200 anos”, observa Bueno.
 
Os dep�sitos de filmes e os laborat�rios ficam no fundo da grande �rea que forma a Cinemateca. O p�blico tem acesso aos pr�dios principais, que abrigam as duas salas de cinema – Oscarito e Grande Otelo -, al�m da �rea externa de exibi��o, em que um grande tel�o pode ser visto por at� 800 espectadores, o Centro de Documenta��o e Pesquisa Paulo Emilio Sales Gomes, que homenageia o historiador e cr�tico que fundou a institui��o, e o jardim.
 
Setenta mil pessoas frequentaram a Cinemateca de maio (quando foi reaberta ao p�blico) a dezembro de 2022. Neste ano, esse n�mero foi alcan�ado entre janeiro e maio. Para que as exibi��es gratuitas – � uma das rar�ssimas salas brasileiras a exibir filmes em pel�cula – voltassem a ocorrer, as telas foram trocadas. A aquisi��o de novos projetores est� nos planos.
 
As consequ�ncias do abandono de um ano e meio da institui��o n�o s�o vistas a olho nu. Mas existem. “Alguns equipamentos est�o parados at� hoje. Um dos mais importantes � um scanner (da marca Arri, para digitaliza��o de filmes). O exemplo dele � muito simb�lico. � um equipamento que tem duas portas (grosso modo, como uma geladeira com porta dupla) bem fechadas. Quando voltamos, tinha uma aranha morando l� dentro. Como entrou, ningu�m sabe”, comenta Dora.

*A rep�rter viajou a convite da Cinemateca Brasileira