Homem tocando piano

Michael Trotter aprendeu a tocar piano no Iraque

Cortesia Michael Trotter

Michael Trotter estava na terceira s�rie do ensino fundamental quando teve a oportunidade de aprender a tocar piano. Mas ele n�o aproveitou essa chance.


"Minha m�e me inscreveu, mas s� fiz uma aula e desisti. A professora era uma senhora muito r�gida e eu tinha outros interesses. Sinceramente, pensei naquela �poca que viraria rapper", disse Trotter � BBC News Mundo, servi�o em espanhol da BBC.


A segunda oportunidade veio mais de uma d�cada depois, mas desta vez ele foi autodidata. Aprendeu a tocar em um pal�cio em Bagd�, em um piano que pertencera ao ex-presidente iraquiano Saddam Hussein.


O ano era 2003 e Trotter fazia parte das tropas americanas que ocuparam o Iraque.


Essa experi�ncia transformou sua vida em muitos aspectos - deixando cicatrizes f�sicas, mentais e emocionais - e acabou sendo o in�cio de uma carreira musical que agora segue em trajet�ria ascendente.


Trotter faz parte, juntamente com sua esposa, Tanya Trotter, de The War and Treaty, uma dupla que j� lan�ou tr�s �lbuns e que vem conquistando seu lugar no cen�rio musical americano.


Em 2019 e 2020, eles venceram na categoria artista do ano nas premia��es Americana Music Honors & Awards e no Folk Alliance International, respectivamente.


Ainda em 2020 apresentaram-se no Grammy, prestigiosa cerim�nia de premia��o da ind�stria musical dos EUA, e neste ano foram indicados a dupla do ano no Academy of Country Music Awards.


E tudo isso come�ou em um pal�cio de Saddam, com um piano.

 

 


O elo mais fraco

A primeira vez que Trotter teve contato com o piano Hussein foi gra�as a Robert Scheetz, um dos capit�es de sua unidade.


"Ele percebeu o medo que eu tinha quando cheguei no Iraque. N�o � como ir � Disney. Voc� vai para a guerra e desde o momento que voc� chega sente o ambiente. Voc� ouve os tiros, as explos�es e sente at� o cheiro da perda de vidas", diz Trotter.


"Scheetz me identificou como o elo mais fraco, como a pessoa que poderia morrer. Ele precisava me tirar do meu medo, e leu no meu perfil que a m�sica era o que me libertava de tudo. Como ele sabia que no pal�cio onde estabelecemos nossa base havia um piano pertencente a Saddam Hussein, ele me levou para o por�o onde estava o instrumento", conta.


Era um piano vertical preto "magn�fico", segundo Trotter. Hoje ele confessa - anos depois, quando conseguiu tocar outro piano - ter descoberto que aquele instrumento estava desafinado.


N�o foi f�cil chegar �quele por�o - era preciso passar por escombros, tijolos e ru�nas. Mais uma lembran�a da guerra.


Foto de Trotter com uniforme de militar

Trotter tinha 20 anos quando foi para o Iraque

Cortesia Michael Trotter


"Quando voc� pensa em um pal�cio, imagina algo bonito, mas este era um pal�cio bombardeado. Algumas das paredes haviam sido derrubadas, parte do telhado ainda estava ca�do. Muitas partes foram destru�das. �s vezes eu tinha que escalar escombros s� para chegar ao piano", relata.


Seguindo o conselho de Scheetz, que o convidou a usar o piano "sempre que quisesse encontrar o caminho de volta para casa", Trotter desceu ao por�o todos os dias durante 15 meses, tentando aprender a toc�-lo.

 

 


Procurando harmonias

O amor pela m�sica � de fam�lia. Sua av� materna toca piano e todas as suas tias cantam m�sica gospel. Tamb�m � o caso de sua m�e, que ele descreve como uma crist� devota e cujo fervor religioso acabou marcando seu amor pela m�sica.


"Eu cresci em Cleveland, Ohio, onde havia uma infinidade de esta��es de r�dio oferecendo todos os tipos de coisas boas e muito ruins. E minha m�e, para garantir que eu n�o sucumbisse �s ruins, mexeu aparelho de r�dio de casa pra que ele sintonizasse uma esta��o AM que durante o dia s� falava da B�blia, mas que � noite tocava umas m�sicas velhas e boas. Foi isso que acabou definindo meu gosto musical", diz.


Foi assim que ele conheceu a obra de Nat King Cole, Willie Nelson, Patsy Cline, Nina Simone, Harry Belafonte e os Everly Brothers.


"Eles n�o focavam em um g�nero espec�fico. Se a m�sica fosse boa, tocavam. Tudo era muito emocionante", lembra.


Assim, quando teve a oportunidade de sentar-se ao piano de Saddam Hussein, embora n�o soubesse toc�-lo, Trotter j� era apaixonado por m�sica.


Soldado tocando piano em meio a escombros

Saddam tinha diversos pianos em seus pal�cios

Getty Images

"Sempre consegui ouvir as notas e harmonizar. Ent�o, descia l� e tentava tocar com um s� dedo. Minha estrat�gia era encontrar tr�s notas no piano. Harmonia. N�o sabia que se chamavam acordes. Eu n�o conhecia nenhum termo. E uma das m�sicas com a qual comecei foi Lean On Me, porque � muito f�cil de tocar no piano", diz Trotter, que come�a a cantarolar esta cl�ssica can��o de Bill Withers.

 

 

 


"Ent�o, de repente, eu dizia: 'Uau'. Essas notas soam muito bem juntas. E pensava que se tentasse a mesma coisa com a m�o esquerda, talvez pudesse encontrar uma maneira de tocar. E, de repente, estava desenvolvendo meu pr�prio estilo neste magn�fico instrumento."


Soldado lendo

Trotter foi militar entre 2003 e 2007

Cortesia Michael Trotter

Can��es para funerais

Trotter gostava de sentar ao piano todos os dias, tentando aprender a tocar e compor, mas foi somente com a morte do capit�o Scheetz durante uma miss�o que sua rela��o com aquele instrumento ganhou sua verdadeira dimens�o.


"Eu tocava, e havia momentos em que sentia que tinha algo bom. Mas me faltava uma liga��o emocional com o instrumento, at� que ele foi morto. Dali em diante, eu tinha um novo prop�sito, um novo motivo para aprender a tocar. Eu queria homenagear a ele e a meus colegas. Eu queria me conectar com eles e ter uma sensa��o de cura. Acho que a sua morte me desbloqueou e me permitiu conectar com o instrumento e mergulhar na composi��o", diz.


Trotter escreveu sua primeira m�sica em homenagem a Scheetz e cantou para seus companheiros no funeral, um gesto que acabaria transformando sua vida.


"Normalmente, durante os funerais militares, os soldados s�o muito estoicos. Eles se mant�m muito controlados, mas n�o foi o que aconteceu durante essa m�sica. N�s desabamos, choramos juntos e nos abra�amos. E isso mudaria meu trabalho."


"Meu comandante viu aquele momento. E ele queria saber se eu havia escrito aquela m�sica e quanto tempo havia demorado. Eu respondi e ele me disse: 'Bom, agora esse vai ser o seu trabalho. Voc� vai escrever m�sicas sobre os soldados e vai cant�-las em funerais. Porque isso est� ajudando a curar nossos rapazes e, de uma forma estranha, est� levantando o moral da minha unidade'."


Soldados andando em meio a escombros

Militares americanos estabeleceram bases em pal�cios de Saddam

Getty Images

M�sica e cura

Esta nova fun��o daria um novo significado � sua estada no Iraque.


Quando Trotter decidiu se alistar para ir para a guerra, ele estava tentando colocar sua vida em ordem. Tinha 20 anos e sua namorada na �poca acabara de engravidar.


"Eu estava determinado a parar de tomar decis�es horr�veis. Eu faria algo para garantir que minha filha tivesse uma chance na vida e que eu pudesse cuidar dela. Entrei para o ex�rcito porque isso significava ter acesso a um plano de sa�de e n�o precisar mais me preocupar com aluguel nem com nada al�m de comida e conta de celular", comenta.


Mas, como descobriu quando voltou do Iraque, atrav�s da m�sica ele encontrou mais do que estabilidade financeira.


"Na segunda vez que me alistei para ir ao Iraque, eu fiz por escolha. Quando voltei para casa me senti muito vazio. Senti que ningu�m mais entendia quem eu era e que estava desorientado, sem rumo. Senti que meu trabalho l� n�o havia terminado e ent�o voltei e fiquei l� at� fevereiro de 2007."


Nessa segunda passagem pelo Iraque, Trotter se dedicou principalmente a fazer m�sica. Ao voltar para os Estados Unidos, contudo, se sentiu novamente desorientado.


Homem tocando piano e cantando

Trotter usa a m�sica como forma de falar sobre seus traumas

Getty Images


"Mentalmente, no Iraque, passei por muita coisa, estava perdendo amigos, irm�os e irm�s. N�o estava lidando com minha pr�pria cura. Estava muito focado em cantar e fazer as pessoas felizes, e n�o em ser feliz eu pr�rio."


Ele voltou com les�es f�sicas e mentais, sofrendo de transtorno de estresse p�s-traum�tico cr�nico (TEPT), ansiedade cr�nica, depress�o cr�nica e les�es nas pernas.


Assim, ficou vagando sem um objetivo claro, tentando dar sentido � sua vida at� que, em 2010 conheceu a atriz e cantora Tanya Blount (hoje Trotter), sua atual esposa.


Juntos formaram um duo musical em 2014, que em 2017 rebatizaram para The War and Treaty, um nome que remete a sua experi�ncia de vida e � ideia da m�sica como ferramenta de cura.


"O amor e a m�sica me deram esperan�a. E acredito que todos merecem sentir essa alegria que eu sinto. Por isso, n�o inclu�mos em nossos discos ou em nossos shows nenhuma m�sica que n�o nos comova."


Com um estilo que Trotter identifica como americana - por conter elementos de blues, country, jazz, rock and roll, soul, R&B e gospel em suas formas cl�ssicas - a dupla entrou para a lista de artistas emergentes da Billboard neste ano.


Homem toca piano e mulher canta

Trotter e sua esposa hoje cantam juntos

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No entanto, o caminho at� aqui n�o tem sido f�cil - incluindo uma grave crise em setembro de 2017, quando Trotter esteve prestes a tirar a pr�pria vida.


"Eu havia parado de tomar rem�dios. Estava em um momento da minha vida em que sentia que nada estava funcionando. Fui demitido do trabalho. T�nhamos um aviso de despejo na porta de casa. Eles levaram meu carro por falta de pagamento. Senti que tinha atingido o fundo do po�o em termos de fracasso. Minha depress�o e meu estresse p�s-traum�tico estavam em alta e eu decidi que eu era o problema, ent�o eu iria sair de cena", relata o artista.


"Eu estava pronto, mas minha esposa identificou a depress�o em mim naquele dia e, antes que eu percebesse, a pol�cia e os param�dicos estavam na minha porta. Ela se sentou ao meu lado e disse: 'Sei que voc� est� planejando tirar sua vida hoje, mas eu s� preciso que voc� espere mais cinco minutos. Me d� cinco minutos para te amar e fazer tudo fazer sentido.' N�s dois choramos e eu disse 'ok'.".


"E ainda estou vivendo esses cinco minutos."