Edi��o de 1969 da B�blia de Jo�o Ferreira de Almeida
Se voc� j� manuseou uma B�blia, s�o grandes as chances de ter se deparado com o nome dele na folha de rosto: Jo�o Ferreira de Almeida. Ou, para usar a vers�o completa: Jo�o Ferreira Annes d’Almeida.
Trata-se de um portugu�s nascido em 1628 que, oriundo de fam�lia cat�lica, tornou-se protestante e, aos 17 anos, conseguiu uma proeza: foi o primeiro a verter para o portugu�s os livros considerados sagrados que formam a B�blia.
"Ele nasceu em Torre de Tavares, ent�o reino de Portugal, viajou por v�rias regi�es que tinham liga��o tanto com Portugal quanto com os [hoje chamados] Pa�ses Baixos, viajou por regi�es onde atualmente ficam a Indon�sia e Mal�sia", conta � BBC News Brasil o historiador e te�logo Vinicius Couto, doutor em ci�ncias da religi�o pela Universidade Metodista de S�o Paulo, presb�tero da Igreja do Nazareno e professor do Semin�rio Teol�gico Nazareno do Brasil e do Semin�rio Batista Livre.
A liga��o de Almeida com a religi�o vem desde a mais tenra inf�ncia. �rf�o, acabou criado por um tio, que possivelmente era sacerdote cat�lico.
"Segundo consta em alguns documentos e relatos de historiadores, esse tio era padre. E ele assumiu a responsabilidade da cria��o e do cuidado do Almeida", afirma � reportagem o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
"O fato � que pouco se sabe a respeito da inf�ncia e da adolesc�ncia desse sujeito, mas ele teria recebido uma excelente educa��o, possivelmente sendo preparados para seguir a carreira religiosa, inclusive."
Aos 14 anos ele j� estava na �sia. Ali, acabou instalando-se na Bat�via, a atual capital da Indon�sia, hoje chamada de Jacarta. Naquela �poca a regi�o era disputada entre portugueses e holandeses.
A cidade era o centro administrativo da Companhia Holandesa das �ndias Orientais e, logo ao lado, Malaca, na atual Mal�sia, havia sido col�nia portuguesa depois conquistada pelos holandeses.
"No ano seguinte, ele deixou a Igreja Cat�lica e se converteu ao protestantismo", prossegue Maerki. Essa guinada foi fundamental na trajet�ria que Almeida teria como tradutor da B�blia.
Por raz�es hist�ricas, vale ressaltar. Afinal, no contexto da chamada reforma protestante, a partir da quest�o trazida por Martinho Lutero (1483-1546) e que abalou os alicerces do catolicismo de ent�o, era importante que o fiel tivesse acesso aos textos b�blicos diretamente e em sua l�ngua. Ora, isso motivou que uma s�rie de tradu��es b�blicas fossem realizadas pelo mundo, sobretudo nos s�culo 16 e 17.
Almeida ingressou na ent�o denominada Igreja Reforma Holandesa sob esse contexto. E logo viu que havia uma lacuna a ser preenchida: at� ent�o, os crentes lus�fonos n�o contavam com uma vers�o no seu idioma.
A convers�o de Almeida ao protestantismo n�o foi acidental, mas sim fruto do contato que ele teve, em Bat�via, com os membros da igreja holandesa. "[A convers�o] foi depois da leitura que ele teve de uma obra que trazia uma perspectiva anticat�lica, questionando pontos que o protestantismo [hist�rico] questiona em rela��o ao catolicismo", pontua Couto.
Trata-se de um manifesto intitulado 'Differen�a d’a Christandade'. E entre os ataques promovidos pelo panfleto � Igreja Cat�lica estava um ponto que serviria de maior est�mulo ao incipiente tradutor: o uso exacerbado do latim durante os of�cios religiosos, em detrimento de l�nguas vernaculares.
"A tradu��o da B�blia para as l�nguas vernaculares � uma conquista da reforma protestante. Uma grande sacada dos protestantes foi justamente isso: traduzir a B�blia para as l�nguas das pessoas, as l�nguas que as pessoas falavam", contextualiza � BBC News Brasil o historiador, fil�sofo e te�logo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
� justamente por isso que Maerki define Almeida como um jovem "com �mpeto e desejo de mostrar o quanto estava de fato permeado pela atmosfera protestante, encantado com a Igreja Reformada".
"Porque nela, um dos elementos principais � justamente a tradu��o da B�blia para o vern�culo", acrescenta.

Reprodu��o da capa da B�blia traduzida por Almeida, em edi��o de 1681
BBCUm processo cheio de dificuldades
A base da tradu��o de Almeida foi a consagrada vers�o em latim elaborada pelo te�logo protestante franc�s Teodoro de Beza (1519-1605). Mas n�o foi a �nica fonte — os registros hist�ricos indicam que ele, como � praxe em trabalhos de tradu��o do tipo, comparou sua vers�o com as op��es realizadas por outros autores.
"O Beza foi um te�logo que trabalhou bastante na arqueologia b�blica, com muitos coment�rios [em sua tradu��o]. Almeida utilizou isso, mas tamb�m usou as vers�es da B�blia em castelhano, franc�s e italiano", ressalta Couto. "Nesse per�odo, j� t�nhamos uma boa quantidade de tradu��es da B�blia para outros idiomas."
Almeida terminou sua primeira vers�o do Novo Testamento em 1645, quando ele tinha, impressionantemente, apenas 17 anos. Ele pretendia que o material fosse publicado e, conforme alguns pesquisadores afirmam, chegou a envi�-lo para um editor em Amsterd�. "Entretanto, essa primeira vers�o do trabalho dele se perdeu", relata Couto.
O tradutor descobriu isso apenas em 1651, quando foi procurado por interessados em publicar a vers�o em portugu�s. Ent�o decidiu recorrer aos seus rascunhos, preservados, para refazer o trabalho.
Dali em diante, houve intensos debates acerca da publica��o ou n�o do seu trabalho, j� que alguns que tiveram acesso aos manuscritos puseram-se a criticar fortemente a qualidade da tradu��o. Em 1656 ele foi ordenado pastor da Igreja Reformada e enviado para Ceil�o, hoje Sri Lanka. Ali, al�m de atuar como sacerdote, dava aulas de portugu�s para outros religiosos e ensinava o catecismo.
Em paralelo � sua atua��o comunit�ria, dedicava-se a revisar a B�blia.
"Seu texto chegou a ser publicado mas, logo em seguida, identificaram problemas de tradu��o. E tudo foi recolhido �s pressas, para que n�o circulasse", afirma Couto. "Ele consegui pregar e fazer uso de alguns desses textos, mas uma equipe passou a se dedicar a revisar tudo."
Algumas dessas vers�es chegaram a circular. O Museu Brit�nico, em Londres, guarda um exemplar cuja impress�o data de 1681. Mas ainda eram tiragens restritas e n�o consensuais entre os crist�os lus�fonos.
Sobre a vida de Almeida, pouco se sabe. A maior parte dos textos biogr�ficos aponta que ele teria se casado, no Ceil�o, com uma mulher chamada Lucr�cia Valcoa de Lamos. Assim como ele, ela tamb�m seria protestante de origem cat�lica. O casal teria tido dois filhos, um menino e uma menina.
Sua vida foi cheia de conflitos, tanto com cat�licos quanto com grupos locais. Por suas prega��es contra a Igreja Cat�lica, enfrentou proibi��es do governo da Bat�via, em 1657. Tamb�m experimentou san��es similares em Colombo, no atual Sri Lanka, entre 1658 e 1661.
Na ent�o possess�o portuguesa de Tuticurim, atualmente parte da �ndia, os problemas foram com as popula��es locais. Ali, anos antes, uma comitiva da Inquisi��o havia promovido uma queima de seu retrato em pra�a p�blica, indicando aos habitantes que ele n�o era bem-visto pela Igreja Cat�lica que tanto criticava.
No per�odo de cerca de um ano em que ele foi pastor ali, sofreu as consequ�ncias. Moradores nativos se recusavam a ouvi-lo, e poucos aceitavam serem batizados ou terem seus casamentos aben�oados pelo religioso.
Almeida morreu na atual Indon�sia em 1691, com 63 anos. N�o havia ainda conclu�do a sua tradu��o definitiva do Antigo Testamento e esse trabalho prosseguiu com um de seus colegas mission�rios, o pastor holand�s Jacobus op den Akker (1647-1731).
Oficialmente, nem Akker nem Almeida viram a obra conclu�da. De acordo com a Sociedade B�blica do Brasil, aquela que � considera a primeira edi��o da B�blia completa em portugu�s foi publicada apenas no ano de 1753, em dois volumes. J� a primeira vers�o consolidada em apenas um volume data de 1819.
Uma curiosidade adicional � vida de Almeida � que muitas impress�es antigas o creditam como "padre". "Na verdade ele nunca foi padre. Ele foi um pastor calvinista", frisa Moraes.

Reprodu��o de tradu��o publicada em 1899
BBCProblemas de tradu��o
At� hoje muitas das vers�es da B�blia em portugu�s trazem o g�nese da vers�o de Almeida. � o caso daquela conhecida como ARA, assim chamada porque � Almeida Revisada e Atualizada. Tamb�m h� a Almeida Corrigida Fiel e a Edi��o Revista e Corrigida, entre outras.
"� uma refer�ncia em l�ngua portuguesa, uma tradu��o muito boa. Mas � l�gico que, com o passar do tempo, vai-se fazendo ajustes e isso tamb�m � importante de salientar", comenta Moraes.
O historiador e te�logo d� um exemplo sobre esses ajustes. Por exemplo, quando no Antigo Testamento s�o mencionados os filhos de No�. "Antes dos anos 1990, eles eram chamados de Sem, C�o e Jaf�. Ent�o come�aram a chamar de Sem, Cam e Jaf�. Para n�o gerar nenhum estranhamento com a palavra 'c�o'", exemplifica Moraes.
Outra passagem bastante conhecida tamb�m foi ajustada mais recentemente. Trata-se do Salmo 23, aquele do "o Senhor � meu pastor, nada me faltar�".
Ali, as vers�es antigas continham a frase "a tua vara e o teu cajado me consolam".
"Os tradutores [contempor�neos] mexeram nessa express�o, porque com 'vara' poderia se gerar uma situa��o jocosa", conta Moraes. A ARA traz "o teu bord�o e o teu cajado me consolam".
O te�logo Couto tamb�m identifica problemas na tradu��o de Almeida. No relato da cria��o do mundo, no livro do G�nesis, por exemplo, o trecho em que Deus cria "o homem � nossa imagem, conforme � nossa semelhan�a", � seguido da frase "e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos c�us, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o r�ptil que se move sobre a terra".
A ideia do ser humano "dominando" a natureza, se n�o incorreta, soa anacr�nica aos tempos atuais, em que o discurso ambiental clama por cuidados ecol�gicos.
"A quest�o � que o verbo dominar vem do hebraico e essa tradu��o feita assim � muito pobre. Dif�cil encontrar uma tradu��o precisa, porque a ideia de dom�nio passa uma imagem de superioridade, sugerindo que o ser humano domina a natureza e esta lhe � inferior", comenta Couto.
"Mas, na verdade, a palavra original trazia uma conota��o diferente, um sentido de mordomia respons�vel, querendo dizer que o ser humano seria quem deve cuidar da cria��o", explica o especialista.
O pesquisador Maerki ressalta outros trechos curiosos, alguns respons�veis, segundo ele, por "distor��es".
"Um dos problemas apontados pelos estudiosos � a tradu��o da palavra �dolo, tanto do hebraico quanto do grego", afirma.
"Almeida traduz como escultura, como imagens em escultura, e n�o como �dolos. E isso acarreta justamente esse debate entre a tradi��o cat�lica e a protestante sobre ter ou n�o imagens [sacras]. Foi um problema de tradu��o que originou um debate teol�gico."
"Outro trecho curioso est� no livro de Isa�as, quando a palavra que originalmente no hebraico significa ‘mo�a jovem’ foi traduzida por ele como 'virgem', mesmo que no hebraico haja outra palavra para 'virgem'", aponta. Trata-se do trecho encarado como prof�tico e utilizado pelo cristianismo, sobretudo cat�lico, para justificar o dogma da virgindade de Maria, m�e de Jesus: “eis que uma virgem conceber�, e dar� � luz a um filho […]."
Probleminhas e problem�es � parte, � un�nime o reconhecimento de que o trabalho realizado por pioneiros como Almeida s�o dignos de respeito pela dificuldade em se traduzir textos t�o complexos em uma �poca antiga. “N�o havia os recursos de hoje e o tradutor sempre t�m de fazer op��es. Estamos falando de textos que originalmente foram escritos em idiomas com estruturas e at� caracteres diferentes, como o hebraico, o grego antigo…”, comenta Moraes.
"O trabalho desses homens que traduziam a B�blia no passado � um trabalho digno dos maiores louvores porque, al�m dos conhecimentos que eles tinham de ter das l�nguas ditas originais: o grego, o hebraico, o pr�prio latim, e de outras vers�es que eles j� usavam para cotejar e decidir as melhores op��es de tradu��o, como o franc�s, o italiano, o ingl�s, essa era uma tem�tica totalmente nova", acrescenta o professor, lembrando que a reforma protestante encabe�ada por Lutero que havia aberto essas possibilidades n�o estava t�o distante daquele tempo.
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