O escritor escocês Irvine Welsh

O escritor escoc�s conta que n�o teve nenhuma dificuldade para publicar "Trainspotting", seu primeiro livro, lan�ado h� 30 anos e que lhe deu fama mundial

Anthony WALLACE/AFP

A castra��o � a maneira mais humilhante para ferir um homem. Uma violenta (e detalhada) sequ�ncia de emascula��o, logo seguida de morte, d� in�cio a "Longas l�minas" (Rocco), novo romance (o de n�mero 13) do escritor escoc�s Irvine Welsh, de 64 anos. N�o se espere muito da v�tima. Parlamentar conservador da Esc�cia, era depravado, racista e corrupto.

O assassinato cruel abre espa�o para outros crimes do mesmo estilo, sempre com v�timas que j� foram algozes. O detetive Ray Lennox � o respons�vel por investigar o caso. Traumatizado, ca�tico, mas tamb�m nobre, Lennox n�o demora a simpatizar com as atitudes do justiceiro - o pr�prio policial carrega fantasmas de uma inf�ncia de viol�ncia sexual.

A narrativa, intensa e fragmentada, coloca o protagonista se envolvendo com o movimento dos direitos trans. Logo ele, que passa a vida trabalhando ao lado de homens mentalmente desequilibrados e sexistas. N�o demoramos a perceber que o grande vil�o � o establishment. 

Ainda que em ess�ncia seja uma trama detetivesca, "Longas l�minas" foi escrito por Welsh, o autor que 30 anos atr�s colocou um grupo de jovens transitando entre drogas pesadas, relacionamentos sem sentido e viol�ncia no submundo de Edimburgo. 

"Trainspotting" � o primeiro romance do escritor, e tamb�m sua obra mais conhecida. Gra�as � sua adapta��o cinematogr�fica, lan�ada em 1996 por Danny Boyle, a hist�ria de uma gera��o perdida impacta ainda hoje jovens de todo o mundo. Welsh, tr�s d�cadas mais tarde, mant�m seu estilo. � ir�nico, por vezes cruel, com o que est� estabelecido. 

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Embora pessimista quanto ao futuro n�o s� da literatura, mas da cultura em geral, o escritor n�o tem muito do que reclamar. "Longas l�minas" � o segundo livro de uma trilogia protagonizada por Lennox. O livro original, "Crime" (2008), foi adaptado para uma s�rie brit�nica h� dois anos. No m�s que vem, a segunda temporada chega � TV. E o terceiro livro j� est� pronto.

M�sico frustrado que se tornou escritor, Welsh criou h� um ano um selo dedicado � dance music, comp�s 14 can��es para o musical "Trainspotting Live", que est� em cartaz at� o final deste m�s no Festival de Edimburgo, o maior evento de artes do mundo. 

Agora, para ser feliz, ele tem que tomar coragem, como revela em entrevista ao Estado de Minas. "Tenho um grande amigo escritor que nunca teve um celular na vida. Ele � um homem mais feliz. Conhe�o outro, que vive em Chicago, que jogou fora o telefone no ano passado e nunca esteve t�o feliz. Hoje tem sempre uma tela empurrada na nossa cara. Quero me livrar do smartphone, mas � t�o dif�cil. Espero que esses caras me mostrem como fazer."    

"Todo mundo se sente deslocado, ningu�m est� totalmente feliz consigo mesmo, porque as mudan�as aconteceram rapidamente e todos estamos desfavorecidos economicamente para concordar em maior ou menor grau com qualquer coisa. Isto significa que todos somos servos da internet e do capital da nuvem"

Irvine Welsh, escritor escoc�s



Ray Lennox traz caracter�sticas de um detetive cl�ssico: � atormentado, tem uma vida pessoal complicada, abusa do �lcool e das drogas. A partir destes elementos, voc� criou uma hist�ria de detetive absolutamente contempor�nea. Por que decidiu incorporar o debate de g�nero � trama? 

Todo mundo se sente deslocado, ningu�m est� totalmente feliz consigo mesmo, porque as mudan�as aconteceram rapidamente e todos estamos desfavorecidos economicamente para concordar em maior ou menor grau com qualquer coisa. Isto significa que todos somos servos da internet e do capital da nuvem.

Tudo o que fazemos � lutar e tentar vender nossas identidades e descobrir os grupos certos. � algo que n�o conseguimos alcan�ar porque a sociedade est� se movendo e mudando. Seja o homem rico, branco e t�xico, ou o jovem que est� experimentando sua pr�pria sexualidade, ningu�m est� feliz.

N�s estamos constantemente tentando ser compreendidos em um mundo que n�o nos compreende. Chegamos a este bizarro modelo econ�mico neoliberal com o tecnofeudalismo (hip�tese que prega que as big techs recriam as l�gicas pol�tica e econ�mica do sistema feudal). N�o h� nada que possamos fazer para impedir isto.

Como Ray Lennox se coloca neste mundo?

Ele � um cara que se protege no meio em que atua, j� que n�o � exatamente um dos velhos dinossauros. Tamb�m n�o � o novo cara experiente em tecnologia. Ele tem que negociar com o policial que fica em frente ao computador monitorando as imagens que v�m das c�meras e tamb�m com o policial que est� fazendo batidas na rua.

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Ent�o ele est� tentando lutar contra esses dois mundos, j� que os acha bastante desconfort�veis. N�o � um cara que tem bens im�veis, n�o tem realmente um plano. � muito representativo ele ter um chefe, um velho policial, e sua primeira subordinada ser Drummond (uma mulher).

Ele � meio que uma mistura de tudo, mas n�o pertence a mundo algum, porque n�o � realmente um policial. Est� na pol�cia por conta de uma agenda pr�pria, j� que ele pr�prio foi abusado (sexualmente).

A inadequa��o de Lennox � tamb�m sua?

Ao criar personagens, voc� coloca algumas caracter�sticas suas, obviamente. Mas quando est� escrevendo, voc� tamb�m deve se desafiar para que obtenha alguma rea��o de si mesmo. Eu realmente n�o tenho empatia por muitos dos personagens, tampouco simpatizo com algumas de suas vis�es.

"Longas l�minas" � uma sequ�ncia de "Crime", que foi adaptado pela TV brit�nica em 2021, mas ainda n�o chegou ao Brasil. A segunda temporada da s�rie ser� lan�ada em setembro. At� quando voc� vai escrever sobre Ray Lennox?

A segunda temporada est� ainda melhor. � baseada neste livro. Fizemos algumas mudan�as, mas o foco da hist�ria ainda � o mesmo. J� terminei o terceiro livro, "Resolution", que sai no ano que vem. 



V�rios de seus livros foram adaptados para o cinema e a TV. Como voc� lida com as adapta��es?

Escritores tendem a ser muito criteriosos com suas hist�rias (quando adaptadas). Eu quero que elas tenham tantas mudan�as quanto poss�vel. Quero pegar, rasgar e usar peda�os delas para algo que eu possa assistir, mas que n�o reconhe�a bem.

Quero ser surpreendido. N�o quero exatamente a mesma coisa como est� nos livros. Quero que a mesma hist�ria seja contada de uma maneira diferente. Se no palco ou na tela, isto realmente n�o importa. 

"Tenho um grande amigo escritor que nunca teve um celular na vida. Ele � um homem mais feliz. Conhe�o outro, que vive em Chicago, que jogou fora o telefone no ano passado e nunca esteve t�o feliz. Hoje tem sempre uma tela empurrada na nossa cara. Quero me livrar do smartphone, mas � t�o dif�cil. Espero que esses caras me mostrem como fazer"

Irvine Welsh, escritor escoc�s



Aventando a possibilidade de que a terceira aventura de Lennox, "Resolution", possa ser adaptada, te pergunto: quando voc� escreve um romance chega a pensar numa poss�vel adapta��o dele para outro meio?

N�o, porque se voc� n�o pensar naquela hist�ria como um livro, ele n�o funcionar� como tal. O que aconteceu com a s�rie "Crime" � que eu percebi, em certo momento, que entre o primeiro livro ("Crime") e o terceiro ("Resolution"), haveria uma hist�ria no meio.

Ent�o escrevi a s�rie como uma esp�cie de franquia. Nunca dever�amos ter a inten��o de fazer isto, nunca foi o meu tipo de ambi��o, mas o fiz por ter sido algo divertido. Agora estou no meio da televis�o e estou realmente gostando disto.

Obviamente temos que falar sobre "Trainspotting", al�m do mais porque s�o 30 anos desde sua publica��o. Qu�o dif�cil foi para voc�, um escritor totalmente desconhecido, publicar o livro?

Comecei o livro em 1989, terminei em 1990, levei para a editora em 1991 e ele saiu em 1993. Foi f�cil. A primeira editora que o enviei era a maior do Reino Unido e eles o publicaram absolutamente sem esfor�o algum.

N�o � uma hist�ria comum para um escritor que, como m�sico, tentou conseguir de v�rias maneiras algum contrato com uma gravadora. Voc� sabe, eu apenas n�o era bom o suficiente. Foi muita luta pela m�sica, mas nenhuma para escrever.

Voc� pensa muito neste livro? Te pergunto porque ele foi t�o importante para voc� e para tanta gente. 

Para falar a verdade, n�o. N�o penso em nenhum dos meus livros a n�o ser no que estou escrevendo no momento. Escrever um livro � basicamente um ato de desistir, j� que voc� o d� para o mundo pela internet.

Minha principal experi�ncia com "Trainspotting" se deu atrav�s da rea��o das pessoas com ele. Sou satisfeito por terem gostado, mas hoje ele n�o tem muito mais conex�o comigo, assim como os outros livros que j� escrevi.

Estou totalmente conectado com o que estou fazendo agora, mas ningu�m sabe ou se importa com isto. Acho que esta � a maldi��o de qualquer escritor. As pessoas se importam com o que j� foi feito, mas o que te entusiasma no momento n�o pode ser dividido com ningu�m. � uma posi��o realmente estranha. 

No come�o da entrevista voc� falou sobre o caos do mundo atual. Voc� consegue relacionar o mundo de hoje ao mundo da �poca em que escreveu "Trainspotting"?

Acho que o que traz "Trainspotting" para os dias de hoje e o que faz com que ele continue relevante � a nossa tentativa de nos resolver na vida sem trabalho remunerado. Se formos substitu�dos por rob�s ou por alguma intelig�ncia artificial, trabalharemos cada vez menos at� n�o poder realmente sobreviver. Ou seja, faremos parte de um sistema que realmente n�o precisa mais de n�s.

Voc� trabalha em diversas m�dias: literatura, m�sica, cinema, TV. No mundo das multitelas, como a literatura pode sobreviver?

N�o sei. N�o tenho certeza nem se a cultura pode sobreviver. Passamos de um tipo de cultura de rua para uma cultura da internet, na qual apenas reciclamos e remixamos coisas antigas.

N�s nos mudamos para uma sociedade p�s-cultural. Tudo est� se tornando sem sentido, a menos que aconte�a algum tipo de revolu��o massiva que saia da tela. N�o vejo nenhum futuro para a cultura do jeito que a conhecemos. Vamos apenas receber instru��es. 

Por que continua a escrever?

Porque amo. Amo o tipo de liberdade que tenho. O livro � o meio definitivo de liberdade, onde voc� pode realmente expressar todas as suas ideias. Voc� n�o tem nenhum p�blico emocional como a TV e o cinema. E uma editora n�o interfere da mesma forma que uma emissora ou uma produtora de cinema fariam porque voc� n�o tem realmente um p�blico-alvo.

Acho que o que traz %u2018Trainspotting%u2019 para os dias de hoje e o que faz com que ele continue relevante � a nossa tentativa de nos resolvermos na vida sem trabalho remunerado. Se formos substitu�dos por rob�s ou por alguma intelig�ncia artificial, trabalharemos cada vez menos at� n�o podermos realmente sobreviver. Ou seja, faremos parte de um sistema que realmente n�o precisa mais de n�s

Irvine Welsh, escritor escoc�s



Qual livro mudou a sua vida e qual voc� gostaria de ter escrito?

"Trainspotting", porque me tornou famoso. Se voc� quer duas coisas que mudam a vida, elas s�o dinheiro e influ�ncia. Mudar�o a sua vida para melhor ou n�o, tudo tem dois lados.

Agora, sobre escrever, seria algo como "O c�digo Da Vinci", porque eu teria tanto dinheiro que nunca mais teria que escrever nada. Ou escreveria somente o que quisesse. H� tamb�m os livros que admiro muito, como "Ulisses" (de James Joyce) e cl�ssicos como "Crime e castigo" (de Dostoi�vski). S�o obras que realmente amo, mas estou satisfeito com aqueles que eu pr�prio escrevi. 

“LONGAS L�MINAS”
• Irvine Welsh
• Tradu��o: Rog�rio Galindo
• Rocco (384 p�gs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)