Aderbal Freire-Filho na pe�a "Depois do filme", que ele apresentou na edi��o de 2012 do FIT-BH; em 2020, o diretor sofreu um AVC e sua sa�de se deteriorou depois disso
Nil Canine/Divulga��o
Eduardo Moreira*
Especial para o Estado de Minas
Aderbal descansou e n�s continuamos por aqui, um tanto mais �rf�os, tentando recolher os cacos com a perda dessa figura extraordin�ria, pura generosidade e talento, que deixa um v�cuo imenso no nosso teatro e em nossas vidas.
Companheiro fiel de todas as horas, Aderbal sempre estava na nossa lista de sonhos para ser nosso parceiro diretor e criarmos finalmente a nossa “epifania teatral” (a express�o jocosa, carregada de uma certa ironia, era dele).
O Galp�o conseguiu virar e se entender como Galp�o, um grupo que pensa o teatro como lugar de integra��o coletiva e de aprendizado obsessivo, porque cruzou em seu caminho com um mestre como Aderbal.
Oper�rio incans�vel dessa constru��o permanente e inesgot�vel que � o teatro, ele estava sempre ali, por perto, observando, aconselhando, se irmanando nessa loucura inquietante do aqui e do agora que sempre nos surpreende e que faz do ato teatral esse lugar �nico e insubstitu�vel.
Aderbal era o pr�prio teatro, encarnado de forma radical e sem nenhum tipo de concess�o. Um teatro constru�do com absoluta amorosidade, companheirismo, alegria e, acima de tudo, uma enorme lucidez e uma infinita paix�o.
A primeira e arrebatadora impress�o que ganhamos desse seu talento foram dois espet�culos que tive a felicidade de assistir. O primeiro, ainda na d�cada de 1970, foi “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde, com Mar�lia P�ra. Era um grito de imagina��o e de provoca��o teatral.
J� no in�cio dos anos 1980, foi a vez de “M�o na luva”,de Oduvaldo Vianna Filho, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha. Outro jogo de pura teatralidade.
Oper�rio incans�vel dessa constru��o permanente e inesgot�vel que � o teatro, ele estava sempre ali, por perto, observando, aconselhando, se irmanando nessa loucura inquietante do aqui e do agora que sempre nos surpreende e que faz do ato teatral esse lugar �nico e insubstitu�vel
Farol
As duas montagens eram arrebatadoras e representavam uma lufada de esperan�a em meio � atmosfera sufocante de falta de liberdade e de opress�o da medonha ditadura militar. Um farol que deixava claro como o teatro pode ser um lugar de encontro radical que nos reconecta com a vida.
Sempre inquieto, Aderbal levou o teatro para a rua, montando, com o apoio da Prefeitura do Rio, in�meras pe�as que eram adapta��es de grandes autores da literatura brasileira. Nascia ali o projeto Cenas Cariocas, que era uma investiga��o n�o s� sobre a ocupa��o do espa�o das ruas, mas tamb�m sobre o pr�prio Brasil.
Ali�s, Aderbal era um incans�vel perseguidor de um Brasil relegado ao esquecimento, revelando-nos autores e obras extraordin�rios do pa�s, como “A mulher carioca aos 22 anos”, de Jo�o de Minas, “O p�caro b�lgaro”, de Campos de Carvalho, e “O que diz Molero”, de Diniz Machado, al�m de outros autores, como Fl�vio Marcio, Aldomar Conrado.
Pesquisador sem limites, Aderbal perscrutava novos lugares, promovia a inquieta��o de um teatro que se revelava em diferentes formas e inusitados espa�os.
Duas experi�ncias extraordin�rias foram exemplos disso. A primeira foi a montagem do espet�culo “O tiro que mudou a hist�ria”, escrito por ele e que conduzia o p�blico pelo espa�o do pr�dio do Pal�cio do Catete/Museu da Rep�blica, contando de maneira viva e inusitada os momentos finais da vida do presidente Get�lio Vargas.
Outra experi�ncia arrebatadora foi a montagem de “A morte de Danton”, de Buchner, encenada na cratera aberta para a constru��o da esta��o do metr� do Largo da Carioca. A montagem era uma met�fora do sufocamento do desejo de mudan�a num pa�s destro�ado pela viol�ncia de d�cadas de ditadura.
A convite do diretor cearense radicado no Rio, o Galp�o fez temporada de "�lbum de fam�lia" na capital fluminense, em 1991
Guto Muniz/Divulga��o
Aderbal era um incans�vel perseguidor de um Brasil relegado ao esquecimento, revelando-nos autores e obras extraordin�rios do pa�s, como "A mulher carioca aos 22 anos", de Jo�o de Minas, "O p�caro b�lgaro", de Campos de Carvalho, e "O que diz Molero", de Diniz Machado
Movimento
Aglutinador por natureza, Aderbal criou um extraordin�rio movimento de ocupa��o dos teatros p�blicos tamb�m no Rio, que gerou o grupo/movimento Centro de Demoli��o e Constru��o do Espet�culo, que, ocupando primeiro o teatro Gl�ucio Gil, em Copacabana, e, em seguida, o Carlos Gomes, no Centro da cidade, foi o respons�vel pelo maior movimento de renova��o da hist�ria do teatro carioca e brasileiro, com a forma��o de uma gera��o de formid�veis e talentosos atores e diretores.
Ali ele deixava sua assinatura definitiva, mostrando-nos como o teatro n�o tem limites, precisando a todo momento ser constru�do e desconstru�do, numa permanente renova��o e reinven��o.
Foi o convite feito por Aderbal que permitiu ao Galp�o compartilhar desse projeto, levando nossos espet�culos de rua �s pra�as da cidade, e a temporada do espet�culo “�lbum de fam�lia”, de Nelson Rodrigues, em 1991, no teatro Gl�ucio Gil. Ali aprendemos como o teatro precisaria estar sempre junto com o p�blico, presente de forma indel�vel em parceria com a comunidade e renovando permanentemente seu valor social.
Tr�s anos depois, est�vamos mais uma vez juntos, quando Aderbal e seu Centro nos chamaram para apresentar “Romeu e Julieta” no palco do teatro Carlos Gomes, na Pra�a Tiradentes.
Dali para a frente, est�vamos sempre pr�ximos, seja no Rio, em Belo Horizonte, Montevideo, C�diz ou nos in�meros festivais de teatro latino-americano em que estivemos juntos e por onde ele circulava com desenvoltura. Querid�ssimo por onde passava, Aderbal era amado e admirado por todos, cativando gregos e baianos, com sua prosa inteligente e animada.
Est�vamos sempre pr�ximos, seja no Rio, em BH, Montevideo, C�diz ou nos festivais de teatro latino-americano em que estivemos juntos e por onde ele circulava com desenvoltura. Querid�ssimo por onde passava, Aderbal era amado e admirado por todos, cativando gregos e baianos, com sua prosa inteligente e animada
A sucess�o de presentes epif�nicos teatrais a n�s oferecidos por sua genialidade seguiu com uma lista que cont�m p�rolas como os j� citados “O que diz Molero”, “A mulher carioca aos 22 anos”, “O p�caro b�lgaro” e tamb�m “Hamlet”, “Moby Dick”, “As centen�rias”, de Newton Moreno, e “Inc�ndios”, de Wajdi Mouawad, j� a� em parceria com nossa querida e amada Marieta Severo, com quem fundou e administrou, junto com Andr�a Beltr�o, o teatro Poeira, em Botafogo.
Partid�rio do elemento essencialmente coletivo do ato teatral, ele sempre defendia a forma��o e a presen�a do grupo como p�lo irradiador da cria��o, cunhando a jocosa express�o “teatro de morte anunciada” para definir as reuni�es de elencos espor�dicos, reunidos para a montagem de um determinado projeto teatral espec�fico e que n�o tinha continuidade.
Dentre muitos de seus caminhos art�sticos, que sempre irradiavam aud�cia e criatividade, seu processo de cria��o de romance-em-cena, em que mergulhava com radicalidade na for�a da narrativa, unindo de forma intensa teatro e literatura, era de uma coragem e de um despojamento que nos colocavam diante da mais pura teatralidade extra�da da linguagem espinhosa da literatura. Aderbal nos dava certeza de que o teatro era sempre poss�vel e capaz das maiores travessias, fazendo-se um permanente desafio.
No Galp�o, sempre que pens�vamos num novo projeto, seu nome estava na cabe�a da nossa lista de poss�veis diretores convidados. Chegamos a passar quase 10 dias juntos, na nossa sede, em 2014, tentando costurar o que poderia vir a ser uma montagem sobre o universo do futebol.
Infelizmente, nunca conseguimos concretizar nosso sonho de um projeto conjunto. As agendas sempre nos tra�am, e fica a� a li��o de n�o deixar para a frente o que precisa ser feito j�.
Partid�rio do elemento essencialmente coletivo do ato teatral, ele sempre defendia a forma��o e a presen�a do grupo como p�lo irradiador da cria��o, cunhando a jocosa express�o "teatro de morte anunciada" para definir as reuni�es de elencos espor�dicos, reunidos para a montagem de um determinado projeto teatral espec�fico e que n�o tinha continuidade
Nos nossos �ltimos encontros, seu entusiasmo pelo teatro e a vida pareciam um pouco contaminados por um temor e apreens�o, gerados por receios por sua sa�de e pela amargura de presenciar a trag�dia que se abateu sobre o pa�s, sobretudo a partir da deposi��o de Dilma Rousseff e do assalto e estupro da cultura do pa�s, causados pela tomada do poder pela extrema direita. Parecia que ele pressentia que algo de tr�gico aconteceria.
Sem Aderbal ficamos tristes, �rf�os, desolados de forma irremedi�vel. Sobra um enorme vazio. Um vazio que s� nos resta tentar preencher, reafirmando, a cada dia e sempre, atrav�s da pr�tica do nosso of�cio do teatro, este ato de amor e generosidade radical que ele nos transmitiu e ensinou.
O resto � sil�ncio.
*Eduardo Moreira � ator, diretor e um dos fundadores do Grupo Galp�o.
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