Cena de 'Rheingold - O roubo do sucesso'

O rapper Xatar, interpretado no longa pelo ator Emilio Sakraya, se aproximou do diretor Fatih Akin via Instagram e contribuiu com ele na realiza��o do filme

Imovision/Divulga��o

Por vezes, a vida real d� uma rasteira na fic��o. A trajet�ria do rapper Xatar, levada para o cinema pelo cineasta alem�o de ascend�ncia turca Fatih Akin, tem lances t�o incr�veis (por vezes absurdos) que nos leva a perguntar se aquilo realmente aconteceu. 

� tudo verdade, ou quase, o que vemos em “Rheingold – O roubo do sucesso”, que estreia nesta quinta-feira (24/8) no UNA Cine Belas Artes. Mesmo com as licen�as que Akin se permitiu para fazer cinema, a hist�ria de Xatar, rapper, produtor e empres�rio de 41 anos com muito sucesso na Alemanha, � absolutamente fant�stica.

Seu nome de batismo � Giwar Hajabi. Filho de pais curdos (maior popula��o ap�trida do mundo, que vive em territ�rios do Ir�, Iraque, S�ria e Turquia), ele nasceu em 1981, em uma caverna numa regi�o iraniana que estava sendo bombardeada. Seu pai, Edhbal Hajabi, � compositor e professor.

Como nasceu pouco ap�s a Revolu��o Isl�mica (1979) comandada pelo aiatol� Khomeini, seus anos iniciais foram um p�riplo. No come�o da d�cada de 1980, a fam�lia Hajabi fugiu do Ir� para o Iraque. S� que, logo depois, o regime de Saddam Hussein atacou a minoria curda que vivia em territ�rio iraquiano – seus pais foram torturados e presos, e o pr�prio Giwar foi mantido prisioneiro.
 
Cineasta Fatih Akin

Fatih Akin diz que 'Rheingold' � tamb�m um filme sobre a Alemanha nos dias de hoje

Faisal Alshibani/Red Sea Film
 

Tempos depois, a fam�lia conseguiu emigrar para a Alemanha, fixando resid�ncia em Bonn. Cansado do piano que estudava em casa, Giwar envolve-se com jovens imigrantes e logo come�a a praticar pequenos delitos. N�o demorou para se tornar um traficante, com atua��o at� Amsterd�, na Holanda.

Uma enorme d�vida com um chef�o mafioso, vinda de uma malfadada opera��o que envolvia coca�na l�quida, o colocou em um beco sem sa�da. Giwar, j� chamado Xatar (perigo, na l�ngua curda), liderou um assalto a uma transportadora de ouro, roubando o equivalente a US$ 2,2 milh�es (que continuam desaparecidos at� hoje).

Cumprindo pena, Xatar, que j� havia produzido alguma coisa de hip hop, gravou e lan�ou de dentro da pris�o um �lbum de rap que entrou nas paradas alem�s. Sua autobiografia, “Tudo ou nada” (2015), virou bestseller tamb�m naquele pa�s.

Akin, filho de imigrantes turcos nascido em Hamburgo, se destaca na produ��o alem� contempor�nea por uma obra com tra�os pol�ticos – a sobreviv�ncia das tradi��es turcas move “Contra a parede” (2004); a globaliza��o � o tema de “Do outro lado” (2007); o choque cultural demarca “Soul Kitchen” (2009) e o extremismo de direita est� na base de “Em peda�os” (2017). 

Em “Rheingold”, ele em parte estiliza uma hist�ria real, colocando tra�os ora dram�ticos, ora bem-humorados, em uma narrativa de muita a��o. “N�o deixa de ser ir�nico falar de imigra��o na Alemanha por meio de um mito alem�o”, diz Akin, em entrevista ao Estado de Minas. O mito a que ele se refere � Richard Wagner, presente tanto no t�tulo (“Das Rheingold” � uma �pera wagneriana) quanto na trilha sonora. Confira a entrevista a seguir.

Seus filmes, como os anteriores “O bar Luva Dourada” (2019) e “Em peda�os” (2017), partiram de hist�rias reais. Mas “Rheingold” � uma cinebiografia de um personagem que est� vivo e ativo. De que maneira isto interferiu no filme?
Uma grande vantagem � que voc� tem a fonte ao seu lado, e ela pode te inspirar muito, dar sugest�es e apontar erros. Por este lado foi muito bom, fiquei amigo do Xatar. Os problemas vieram de todas as pessoas que tamb�m estavam envolvidas na hist�ria dele: a m�e e, em especial, os amigos. Estes realmente me causaram dificuldades, pois tive que faz�-los entender que eu precisava de liberdade e de traduzir os acontecimentos do mundo real para um filme. Ou seja, tive que ser muito diplom�tico para convenc�-los.

Como voc� chegou a Xatar?
Primeiramente por meio da m�sica, pois ele se tornou um fen�meno na Alemanha e todo mundo que se interessa por cultura popular o conhecia. N�s nos aproximamos da maneira mais comum nos dias de hoje, pelo Instagram. Ele come�ou a me seguir, eu comecei a segui-lo e logo passamos a trocar mensagens. Quando comprei a biografia dele, vi que tinha em m�os uma hist�ria que poderia se tornar um filme louco e �pico. Seria um projeto que me daria a oportunidade de misturar g�neros. Al�m do mais, � tamb�m uma hist�ria sobre imigra��o, sobre a Alemanha dos dias de hoje, o que tornaria o filme atrativo para aqueles que n�o conhecem a trajet�ria de Xatar.
 
 

Xatar teve participa��o ativa no filme?
Pedi que ele produzisse a m�sica. De um lado, voc� tem m�sica cl�ssica, pois, al�m de Wagner, todas as outras composi��es s�o do pai dele, que foram rearranjadas para o filme. Al�m disso, ele produziu can��es para o filme. Aquela que o personagem fez na pris�o foi feita por Xatar para o filme, e foi um grande sucesso na Alemanha, foi lan�ada assim que o longa chegou aos cinemas. E ele tamb�m foi uma esp�cie de consultor, j� que os personagens falam um tipo de linguagem que eu n�o domino. Ainda teve a quest�o das drogas. A �nica coisa que sei sobre drogas foi a que conheci em filmes. Ele me explicou como as coisas foram, como foi a hist�ria da coca�na l�quida, que realmente aconteceu. Tampouco tinha a menor ideia sobre os rel�gios que os traficantes usam, quantos diamantes um Rolex que eles usam t�m que ter. Consegui contar a hist�ria da maneira que ela saiu porque ele estava ao meu lado. Mas Xatar n�o interferiu em nada, isto fez parte do nosso acordo.
 

'Fiquei muito feliz por conseguir filmar, j� que a hist�ria foi muito complicada, rodei durante a pandemia, estourei o or�amento, e n�o pude ensaiar muito. Teve muito improviso neste filme. Para mim, ele � como o jazz'

Fatih Akin, cineasta

 

Como voc� bem disse, “Rheingold” � um filme que mistura g�neros. Qu�o dif�cil foi para voc� encontrar o tom para a produ��o?
Tomei essa decis�o logo no in�cio do projeto. Eu tinha duas op��es: poderia fazer um filme realista, quase como um document�rio, no estilo “Gomorra” (2008), do Matteo Garrone, ou poderia fazer algo mais estilizado. E sempre quis fazer um filme mais glamouroso. Decidi por este caminho, pois achei que seria tamb�m uma maneira de a hist�ria se tornar mais amistosa para um p�blico maior. Tamb�m foi uma forma de eu ter a dist�ncia necess�ria sobre ela. Ao colocar o filtro do glamour, todo o resto veio quase que automaticamente, inclusive o humor. O filme utiliza muito da ironia, e isto vem da minha perspectiva sobre este mundo. Uni o glamour de Hollywood com m�sica tradicional curda.

E voc� ainda incluiu sereias na parte final do filme.
Sabia que esta foi a primeira imagem que me veio sobre o filme? Quando pensei na hist�ria me vieram as sereias no rio. Ent�o fiquei muito feliz por conseguir filmar, j� que a hist�ria foi muito complicada, rodei durante a pandemia, estourei o or�amento, e n�o pude ensaiar muito. Teve muito improviso neste filme. Para mim, ele � como o jazz.
 
A hist�ria de Xatar � surreal, tanto a trajet�ria familiar dele quanto o roubo do ouro. O que � fic��o neste filme?
Nada � fic��o, a n�o ser as sereias, claro. Ele realmente nasceu em uma caverna durante um bombardeio, a m�e dele me contou essa hist�ria assim que nos conhecemos. Para mim, isto � exemplo dos elementos mitol�gicos que fazem parte da trajet�ria dele. O ataque � �pera em Teer� n�o aconteceu como est� no filme, mas durante a Revolu��o Isl�mica aconteceram fatos semelhantes, m�sicos foram atacados, Khomeini declarou um fatwa aos curdos. Eu combinei os fatos, e tamb�m o tempo em que eles ocorreram, em prol da hist�ria. Tudo no filme tem um qu� de verdade. 
 
• Ou�a o rapper Xatar:
 
 
 
Voc� conta a hist�ria de um artista do hip hop colocando um �cone alem�o, Richard Wagner, j� no t�tulo. Como chegou a esta rela��o?
A biografia de Xatar se chama “Tudo ou nada”. O t�tulo em alem�o de “Em peda�os” (2017) � “Do nada”. Eu n�o queria que dois filmes meus, realizados na mesma �poca, tivessem nada, algo t�o niilista, no t�tulo. Isto poderia confundir as pessoas. Pois um dia estava fazendo pesquisa de campo com o Xatar e est�vamos cruzando uma regi�o de Bonn pr�xima � escola onde ele tinha estudado. Ele me disse que a narrativa de “Siegfried” (uma das quatro �peras de Wagner que comp�em o ciclo “O anel de Nibelungo”, iniciado por “Das Rheingold”, que em portugu�s se chama “O ouro do Reno”) aconteceu naquela �rea. No momento em que ele disse isso, eu decidi pelo t�tulo “Rheingold”. O centro da popularidade de Xatar est� no ouro roubado, e ouro � tamb�m uma quest�o presente na �pera de Wagner. N�o deixa de ser ir�nico falar de imigra��o na Alemanha por meio de um mito alem�o. 

“RHEINGOLD – O ROUBO DO SUCESSO”

(Alemanha, 2023, 138min., de Fatih Akin, com Emilio Sakraya, Mona Pirzad e Julia Goldberg) – Estreia nesta quinta (24/8), no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 16h, 20h30).