Obra de Tarsila do Amaral est� entre as mais valorizadas do Brasil. Mas este valor depende de autentica��o registrada em cat�logo raisonn� ou dada por herdeiros
O tradutor Al�pio Neto entrou na Justi�a contra duas das maiores pesquisadoras da obra de Tarsila do Amaral, Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, e a Base 7, produtora do cat�logo raisonn�, livro que re�ne todos os trabalhos da modernista.
A a��o argumenta que a venda dependeria do aval das especialistas, j� que com o selo de autenticidade os trabalhos poderiam ser inclu�dos numa eventual reedi��o do raisonn�, a publica��o mais importante sobre a obra de Tarsila, considerada refer�ncia para o mercado e aquilo que atesta a legitimidade de suas obras.
Sem validade no mercado
Como as obras n�o constam no raisonn� e n�o foram certificadas pelas especialistas nem pela herdeira de Tarsila, elas n�o t�m validade alguma para o mercado.
Procurada, Amaral n�o respondeu aos pedidos de entrevista, e seu advogado afirmou que ela s� vai se manifestar no processo, devido � sua idade, 93 anos, e prefer�ncia pessoal.
Regina Teixeira de Barros afirma n�o poder opinar sobre a autoria dos desenhos. Isso porque h� um combinado, entre os membros da comiss�o que selecionou os trabalhos para o raisonn�, pelo qual eles s� se manifestam em grupo. Ela e Aracy Amaral fizeram parte do colegiado respons�vel pelo cat�logo.
“N�o quer dizer que n�o eram Tarsilas. Teve gente que achou que era e gente que achou que n�o era. N�o foi un�nime a decis�o”, afirma Teixeira de Barros, sobre as ilustra��es que s�o alvo do processo.
Resposta semelhante deu a Base 7. Arnaldo Spindel, diretor da produtora, diz que a empresa “n�o possui legitimidade nem autonomia para conferir a autenticidade das obras” e que publicou no livro apenas as que obtiveram consenso da comiss�o.
Nenhum dos acusados usou a palavra “falsa” para se referir �s ilustra��es, seja nas centenas de documentos do processo, seja nas conversas com a reportagem.
Tarsilinha, herdeira da pintora, n�o deixou claro se desenhos de Al�pio Neto s�o mesmo obras de sua tia-av�
Tarsilinha em sil�ncio
O propriet�rio das obras relata ainda ter procurado, por telefone, a detentora dos direitos autorais de Tarsila, sua sobrinha-neta, conhecida como Tarsilinha. Ela teria dito que avaliaria as ilustra��es e, se ficasse em sil�ncio, isso significaria que as obras s�o verdadeiras.
De acordo com o processo, Tarsilinha ficou em sil�ncio. Mas a situa��o n�o se resolveu porque o sil�ncio n�o pode ser usado como comprova��o de autenticidade das obras, afirma Mario Solimene Filho, o advogado da acusa��o.
“Se voc� tiver um papel de p�o assinado pela Aracy ou por alguma dessas pessoas dizendo 'essa obra � verdadeira', ou uma mensagem que seja, ele usa isso no mercado e vende como verdadeira”, afirma o advogado.
Procurada pela reportagem, Tarsilinha n�o quis se pronunciar.
O advogado de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, Fernando Lamenza, argumenta que quem determina a autoria de uma obra s�o apenas os herdeiros de um artista. “Os outros pesquisadores n�o t�m autoridade sobre a propriedade intelectual. Eles s�o meras pessoas que estudaram a obra de Tarsila”, diz ele.
Segundo o processo, os desenhos foram feitos por Tarsila para ilustrar um livro com as confer�ncias que o poeta modernista Guilherme de Almeida deu em capitais do Brasil nos anos 1920.
Eles mostram elementos da paisagem litor�nea, como barquinhos, coqueiros, casinhas, as ondas do mar, e tamb�m marcos da costa brasileira, como o morro do P�o de A��car, no Rio de Janeiro, e um cen�rio industrial em Porto Alegre, com o logotipo do frigor�fico Swift numa f�brica e um ga�cho a cavalo.
No verso de uma das imagens, a legenda diz “viagem pela costa do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Cear�, 1925”. Segundo os documentos, a frase foi escrita por Belkiss de Almeida, a mulher de Guilherme de Almeida, na d�cada de 1940 ou 1950. Contudo, o livro com as confer�ncias do poeta n�o foi publicado, de forma que as ilustra��es nunca vieram � tona.
Tradutor premiado tr�s vezes com o Jabuti, Neto relata ter encontrado os desenhos ao mexer no arquivo de Guilherme de Almeida, que ele herdou do bi�grafo do poeta, Frederico Ozanam.
O quadro 'A Lua', de Tarsila do Amaral, foi adquirido por R$ 75 milh�es pelo museu MoMa, em Nova York
Valida��o via USP
Para requerer a certifica��o da autoria, a acusa��o elenca uma s�rie de evid�ncias. Uma das mais contundentes seria a suposta valida��o das obras pela Universidade de S�o Paulo. A historiadora Michele Petry, que fez p�s-doutorado sobre as ilustra��es de Tarsila, deu um curso na USP que continha uma aula sobre os desenhos em quest�o.
Procurada, Petry n�o quis falar com a reportagem.
Outra evid�ncia da acusa��o � uma carta de Ana Magalh�es, � �poca vice-diretora do Museu de Arte Contempor�nea da Universidade de S�o Paulo, o MAC-USP, e supervisora do doutorado de Petry. No texto, ela se refere �s ilustra��es como “15 desenhos in�ditos de Tarsila do Amaral”, num pedido para que Neto conceda acesso �s obras para a doutoranda.
“N�o � uma carta de autentica��o, de jeito nenhum. O fato de eu usar o termo 'in�dito' n�o significa que estou autenticando as obras. Nem posso fazer isso”, diz Magalh�es. “Eu absolutamente n�o contesto o trabalho que foi feito pelo cat�logo raisonn� da Tarsila. � aquela comiss�o que efetivamente pode ou n�o autenticar esses desenhos.”
Magalh�es afirma que a carta foi escrita num contexto em que se buscava compreender se as ilustra��es eram de Tarsila ou n�o. A pesquisa incluiu exames no Instituto de F�sica da Universidade de S�o Paulo, que constatou que os desenhos foram esbo�ados a l�pis para depois receberem o nanquim.
Houve ainda uma avalia��o do Instituto Interface, �rg�o especializado na an�lise de obras de arte e que tamb�m pertence � USP. A institui��o afirma que as ilustra��es foram feitas entre as d�cadas de 1920 e 1950.
Os desenhos em posse de Neto n�o foram os �nicos a n�o entrarem no cat�logo, n�o s� por quest�o de data – Neto diz ter descoberto as ilustra��es em 2011, tr�s anos depois da publica��o do livro –, mas porque houve ao menos outras 200 obras que seriam de Tarsila, mas n�o passaram pelo crivo da comiss�o.
Esses trabalhos foram inclu�dos numa listagem de obras sobre as quais h� d�vidas de autoria, anexada no final do cat�logo. Os desenhos de Neto foram avaliados pela comiss�o e aprovados para entrar em uma listagem semelhante caso haja uma reedi��o do raisonn�, o que n�o h� previs�o para acontecer.
Intermedia��o de venda
A defesa de Neto tamb�m acusa Teixeira de Barros de ter atuado como intermedi�ria na venda dos desenhos. Ela teria se valido de sua posi��o influente como integrante do colegiado para tentar achar interessados em comprar as ilustra��es, trabalho pelo qual ganharia comiss�o de 15%. Outros 15% iriam para Petry, que encabe�ava as tentativas de venda, segundo a a��o judicial. O restante ficaria com o dono.
“Nunca vendi obra. Se tivesse que vender, n�o seriam esses desenhos que a comiss�o n�o tinha aprovado”, diz Teixeira de Barros. “Se fosse fazer isso, voc� imagina quantas oportunidades na minha vida eu teria tido. Por que logo com as Tarsilas dele eu ia inventar uma coisa dessas, me queimar por ele, por esses desenhos? N�o faz o menor sentido.”
A reportagem procurou dois agentes de peso do mercado, mas, sem a comprova��o da autoria, eles n�o quiseram estimar quanto as ilustra��es valeriam. H� tr�s anos, o colecionador Marcos Amaro afirmou que desenhos menos representativos de Tarsila valem entre R$ 40 mil e R$ 50 mil.
� �poca, Amaro inaugurava no museu Fama, em Itu, no interior paulista, uma mostra com 200 desenhos de Tarsila que durante d�cadas ficaram guardados com o empres�rio Oscar Fakhoury, sem serem vistos pelo p�blico ou por pesquisadores. As ilustra��es haviam sido catalogadas na d�cada de 1960 por Aracy Amaral, na casa da artista, em S�o Paulo.
Enquanto um desenho de Tarsila pode chegar a valer R$ 1 milh�o, de acordo com marchands, suas pinturas s�o muito mais caras.
A tela “A lua” foi comprada pelo MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, em 2019, por uma cifra em torno de R$ 75 milh�es, de acordo com Tarsilinha. J� “A caipirinha” bateu recorde e saiu por R$ 57,5 milh�es, num leil�o da Bolsa de Arte, em 2020.
Danos morais
Neto pede ainda indeniza��o de R$ 100 mil por danos morais. A defesa das acusadas contestou, mas a Justi�a negou o pedido para que a compensa��o financeira fosse invalidada.
Em outro despacho recente, a Justi�a afirmou que s� um perito pode avaliar quais pesquisas s�o necess�rias para que se determine a autoria das ilustra��es. J� o Minist�rio P�blico diz que est� acompanhando o caso em raz�o do valor hist�rico e cultural de obras que potencialmente comp�em o acervo de Tarsila.
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