Carré em palestra na embaixada da Alemanha, em Londres

Carr� em palestra na embaixada da Alemanha, em Londres

German Embassy London/Wikimedia Commons
"N�o consigo definir para voc� onde a realidade atravessa a porta secreta para a fic��o", diz o escritor David Cornwell. "Prefiro ter a no��o de que eu vivo nesta bolha."

Talvez o nome seja estranho para voc�, ainda que estejamos falando de um dos autores mais conhecidos do Reino Unido. Para facilitar, passemos a nos referir a ele por seu nome ficcional: John le Carr�.

Mas a fala surge num filme que est� muito mais interessado na vida de Cornwell que na obra de Le Carr�. Ou melhor, quer entender como se construiu essa realidade em que ambos convivem.

"� solit�rio, voc� n�o divide seus pensamentos com ningu�m", afirma o autor recluso, morto em 2020 aos 89 anos, oferecendo um raro quadro de seu processo criativo. "Voc� comp�e em segredo com os elementos que v� em torno de si, a fic��o � como uma entidade racional que transforma caos em ordem."

As declara��es s�o extra�das de um trecho central de "O T�nel de Pombos", document�rio dirigido pelo americano Errol Morris que, n�o por coincid�ncia, tem o mesmo t�tulo da autobiografia lan�ada pelo brit�nico no desfecho de sua vida.

Esta produ��o, que passa na Mostra Internacional de Cinema de S�o Paulo nesta quinta e entra no streaming da Apple TV+ no dia seguinte, foi gestada ainda mais perto do fim.

O escritor deu as entrevistas para o filme cerca de um ano antes de sua morte —por iniciativa dele, ali�s, que convidou Morris a film�-lo depois de se impressionar com "Sob a N�voa da Guerra", o retrato paradigm�tico que o documentarista fez de Robert McNamara, secret�rio de Defesa de John Kennedy e Lyndon Johnson cuja hist�ria se mistura � da intelig�ncia americana.

D� para ver os paralelos em meio � penumbra. Antes de estourar como autor de alguns dos thrillers mais sofisticados j� feitos sobre o tr�gico baile de m�scaras da Guerra Fria —pense em "O Espi�o que Saiu do Frio" e "O Espi�o que Sabia Demais"—, Cornwell foi, ele mesmo, um espi�o.

E Morris se tornou especialista em ouvir gente que nunca se revela, procurando brechas em meio a carapa�as fechadas e vislumbres de concretude em meio a jogos, trapa�as e anos fumegantes.

Segundo dizem os produtores-executivos do filme, Simon e Stephen Cornwell, filhos do protagonista, nenhum dos dois teria o menor interesse em fazer o filme se houvesse qualquer regra pr�-estabelecida quanto ao que aconteceria entre aquelas paredes.

"Meu pai gostava de controlar narrativas, aplicando estrutura a um mundo ca�tico. Errol tem interesse no oposto, em se mover na confus�o da vida e encontrar ali alguma hist�ria", aponta Stephen.

"Quando meu pai percebe que Errol estava ali para ter uma conversa que poderia ir para qualquer lado, � ali que relaxa e fala de coisas que nunca comunicou direito."

Sob a trilha de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan, o diretor de "A T�nue Linha da Morte" filma Le Carr� em uma biblioteca de estantes tornadas infinitas por truques de espelhos; flagra o homem subindo uma escada em espiral de baixo para cima, num registro t�pico de thriller psicol�gico; e, numa decis�o inspirada, sempre alonga os sil�ncios, com a c�mera segura no rosto do autor, deixando que suas falas firmes se dissolvam em risadas naturais.

Quem espera algum embate de tit�s talvez se surpreenda ao testemunhar, no lugar, um di�logo da mais inusitada franqueza. Morris n�o precisa p�r Le Carr� na parede: ele pr�prio se prostra ali, de m�os ao alto.

"Errol, eu me sinto bem confort�vel", diz o homem idoso, na �nica vez em que se refere ao seu interlocutor pelo nome. "Gosto muito de falar de coisas de que nunca falei. Na minha idade avan�ada, vejo como algo definitivo. Sabia que n�o ia mentir, fabricar. N�o estou nem interessado em autodefesa, porque n�o sei qual � a acusa��o."

Assim, ouvimos confiss�es brutais sobre sua rela��o com o pai, trambiqueiro que passou temporadas na pris�o e tentou dar um golpe no pr�prio filho, e com a m�e, que o abandonou crian�a e fez o pequeno David, ainda antes de ser John, fabular as raz�es que a teriam afastado dele.

O outro filho do autor, Simon, diz que o filme mostra como temas de sua inf�ncia se traduziram na sensibilidade que ele teve para retratar a Guerra Fria.

Tamb�m ouvimos as opini�es de Le Carr� sobre um agente duplo sovi�tico que fez o servi�o secreto brit�nico de palha�o, material farto para que depois elaborasse, na fic��o, o que leva algu�m a virar um traidor compulsivo —n�o preocupado exatamente com a �tica, mas com a escolha por uma vida arriscada e solit�ria.

Essas pessoas, com frequ�ncia, s�o respons�veis por mover o tabuleiro da hist�ria. "A hist�ria � caos", como conclui Morris a certa altura do filme, ao que Le Carr� concorda.

"Imaginar, como eu devo ter feito na minha inoc�ncia perp�tua, que houvesse algum grande segredo para a natureza do comportamento humano…", suspira o escritor. "N�o h�."

 

O T�nel de Pombos

- Quando Na Mostra de SP: qui. (19), �s 19h20, no Cinesesc; na Apple TV+ a partir de sex. (20)

- Classifica��o 12 anos

- Produ��o EUA, 2023

- Dire��o Errol Morris