
Ela n�o tem av� do interior nem m�e quituteira. Juliana Duarte, chef do Cozinha Santo Ant�nio, brinca que vem de uma fam�lia de gulosos, que sempre prezaram pelos encontros em torno da mesa. Sua cozinha � muito urbana, mas nem por isso menos marcante. Carrega muitas hist�rias, de inf�ncia, livros, viv�ncias na cidade e pesquisas como historiadora. “Aqui hist�ria e gastronomia andam juntas o tempo inteiro”, destaca, comemorando um ano do restaurante.
Ju, como � conhecida, se sente em casa e quer que os clientes sintam o mesmo. “Falo que primeiro quis ter uma cozinha, depois um restaurante, pelo desejo de juntar pessoas em volta da mesa. A forma que eu sei de cuidar e fazer carinho � oferecer comida, sem pieguismo nenhum. Acho que � bem do mineiro.” O balc�o � parte essencial do projeto, pois conecta e a cozinha e o sal�o sem paredes e sem formalidades.
O card�pio tamb�m segue o ritmo de casa. Durante a semana, ela n�o foge muito do arroz com feij�o (literalmente ou no modo de se referir a uma comida do dia a dia), mas capricha nos detalhes, como sempre. Um tempero diferente ou simplesmente uma flor para enfeitar. J� no fim de semana, os pratos s�o um pouco mais elaborados. Aqueles que deixamos para saborear, com calma, no almo�o de domingo.

N�o por acaso, Ju diz que faz comida da casa da gente, “com os p�s em Minas Gerais e as antenas no mundo”. Ela nunca pensou em fazer alta gastronomia, deseja entender como � cozinhar em Belo Horizonte, com os produtos daqui e absorvendo t�cnicas de fora. “Gosto desta troca e acho que BH tem tradi��o de di�logo do que � nosso com o mundo, n�o s� na gastronomia, mas em todas as �reas. Historicamente, o modernismo teve aqui uma express�o fort�ssima.”
Apostando nestas misturas, a chef pede licen�a para servir bacalhau. Apesar de n�o ser um ingrediente mineiro, ele faz parte dos nossos h�bitos alimentares. Seu lado historiadora conta que h� registros do consumo do peixe salgado desde o s�culo 18 em Minas. Um documento que descreve a alimenta��o de um inconfidente fala em bacalhau com ovos.
Hon�rio Br�s � um prato inspirado no bacalhau � Br�s, receita tradicional�ssima de Portugal, com batata palha. No lugar da batata inglesa, de origem estrangeira, coloca-se ao lado do peixe apenas ingredientes brasileiros: batata-doce, palmito pupunha e couve.
O bacalhau tamb�m surpreende no prato Minha vida de menina, nome do livro que Ju leu v�rias vezes na inf�ncia. Nele, Helena Morley, pseud�nimo de Alice Caldeira Brant, escritora que viveu em Diamantina no s�culo 19, cita uma receita da Semana Santa de bacalhau com ab�bora, feij�o e angu. A vers�o da chef tem, al�m do peixe, uma rodela de ab�bora grelhada, angu de milho criolo e um “traguinho” na caneca de feij�o-preto. “As pessoas estranham, mas quem experimenta gosta muito, vira o prato preferido. A hist�ria dele ajuda, prepara o territ�rio para a experi�ncia.”
Pat� de campagne, sua especialidade
O encantamento de Ju pela Fran�a se transporta para a cozinha. Muitas das suas refer�ncias s�o francesas. Logo vem � cabe�a o pat� de campagne, sua especialidade, que a fez ficar conhecida na Feira Fresca, muito antes do restaurante. Come�ou a fazer por curiosidade e foi tomando gosto. Estudava e ia aprimorando a receita. No curso de gastronomia, que terminou em 2019, aprendeu a t�cnica de verdade, mas entende que o processo n�o � completo sem tato e olhar.

S� ela que faz o pat� no restaurante. “Tenho ci�mes. N�o que seja segredo, mas gosto de fazer, � a hora que paro, respiro, ent�o fica dif�cil desapegar”, explica-se. A receita leva carnes de boi (ac�m mo�do), porco (pernil e barriga) e galinha (f�gado). De vez em quando, d� para fazer com f�gado de pato. Ju j� incluiu tamb�m na receita focinho e rabo de porco, o que deixa a massa mais peda�uda. O cliente tem a op��o de encomendar o pat� en crute, com crosta de massa.
A ent�o historiadora n�o era muito de fazer comida mineira. S� come�ou a se interessar pelas nossas ra�zes quando se envolveu com pesquisas de campo no interior de Minas. Hoje ela se permite brincar com a tradi��o. O Mineirice vem da ideia de fazer frango com a t�cnica pinga e frita, mas com uma “gracinha”. O molho tem cerveja artesanal brown ale. Para acompanhar, ora-pro-n�bis e milho criolo, que entrega sabor e hist�ria. Ele vira angu e pipoca, elemento curioso e divertido.
Na pandemia, a chef lan�ou um card�pio de comidinhas para matar a fome de noite em casa, quando bate aquela pregui�a, que deu muito certo. O largarto a escabeche � chamado de Saudades de Guarapari porque a m�e fazia esta receita para as viagens de f�rias na praia. Outro destaque s�o os falsos boquerones, inspirados na conserva de anchova branca que ela comeu em Barcelona. “Fa�o com manjubinha e fica uma conserva bem parecida, com azeite e cebola roxa bem fininha.”
Agora ou nunca
Juliana � movida a paix�es. Trocou hist�ria por publicidade depois que se encantou pela internet, quando a rede era uma grande novidade. Mais tarde, o sonho de ter um restaurante falou mais alto. “Estava apaixonada pela gastronomia e queria viver outras coisas. A idade me fez pensar: � agora ou nunca”, relembra a historiadora, que desde a adolesc�ncia gosta de cozinhar em casa.

Logo que viu um im�vel vago, numa esquina do Bairro Santo Ant�nio, enxergou a oportunidade de materializar ideias reunidas por mais de 10 anos. Ju seguiu o que estava no papel, numa lista do que era essencial ter no restaurante. Em resumo, proporcionar uma experi�ncia de alegria com o comer. “� um lugar que n�o precisa arrumar para vir, n�o � sofisticado, mas a comida � muito boa. O meu compromisso com a qualidade � muito forte.”
Dando sequ�ncia � lista, era importante construir uma rela��o forte com a comunidade (a pandemia dificultou, mas o plano � desenvolver a��es sociais) e com os fornecedores. Cerca de 80% dos produtos usados na cozinha s�o org�nicos, comprados de pequenos produtores. De Jaboticatubas, vem, por exemplo, o arroz vermelho, que esteve pr�ximo da extin��o, e o a��car purgado, produzido atrav�s de um antigo m�todo, que o deixa mais saboroso e arom�tico.
Contar hist�rias tamb�m era um desejo. A da empadinha de queijo, �cone do Cozinha Santo Ant�nio, vem de fam�lia. Na casa da Ju n�o era lanche, a m�e servia como acompanhamento no almo�o com rosbife ou lagarto. “Antes de abrir o restaurante, pedi para a minha m�e fazer as empadinhas e fui resgatando a receita. Voc� n�o pode sovar, tem que amassar com carinho, s� com as pontas dos dedos.” O gestual, que ela acha t�o bonito, est� registrado do mesmo jeito no caderno de receitas da av� Marocas.
H� pouco tempo, a chef soube do relato de uma tia-av�, que morou em uma pens�o no Rio de Janeiro, onde a comida era muito ruim. “Antes de ir para a pens�o, ela passava na lanchonete e comprava empadinha para melhorar a comida.” De vez em quando, ela faz uma carne de panela bem gostosa e serve as empadinhas como acompanhamento. O segredo da receita, al�m da delicadeza de lidar com a massa, s�o o queijo canastra e ovos caipira. Quando vira entrada, a por��o vai � mesa com geleia.

Muitas receitas s�o inspiradas em livros e documentos, como o do viajante ingl�s Richard Burton, que passou pelo Brasil no s�culo 19. Ele descreve um jantar em Lagoa Dourada, onde lhe serviram um prato chamado de mexeriboca, com carne de porco, carne seca, galinha, farinha, feij�o e muita pimenta. A partir desta descri��o, Ju criou sua vers�o do mexeriboca. “N�o � um mexido, fa�o um processo igual ao da paella. Uso l�ngua defumada, lingui�a e frango, duas qualidades de feij�o e arroz vermelho.”
A vontade de unir hist�ria e gastronomia levou a chef a iniciar, no ano passado, um mestrado sobre o livro Feij�o, angu e couve, do escritor mineiro Eduardo Frieiro. Como ela descreve, � um tratado sobre a comida mineira. “Encontrei um ex-professor na rua e soube da compra do acervo de Freiro pela Academia Mineira de Letras. Fiquei superemocionada”, conta Ju, que j� manuseou o exemplar original. Ela n�o descarta a possibilidade de escrever um livro.
Empadinhas da Vov� Marocas
Ingredientes
600g de farinha de trigo peneirada; 200g de manteiga; 150g de banha; 4 gemas; 1 colher de ch� de sal; 400g de queijo da Canastra ralado; 80g de manteiga amolecida; 300ml de leite; 4 ovos inteiros; noz-moscada e sal a gosto
Modo de fazer
Coloque a farinha em uma bacia e abra um buraco no meio. Adicione a manteiga, a banha, as gemas e o sal. A banha e a manteiga devem estar bem geladas. Amasse somente com as pontas dos dedos. Deixe descansar na geladeira por uma hora. Para o recheio, bata o queijo, a manteiga amolecida, o leite, os ovos, noz-moscada e sal no liquidificador por 4 minutos, em velocidade m�dia. Na hora de montar, abra a massa nas forminhas e preencha com o recheio. Aque�a o forno a 180 graus e asse as empadinhas por 20 a 25 minutos. Deixe esfriar um pouquinho antes de morder.