
N�o basta ter sabor. Em tempos de valoriza��o das experi�ncias, as pessoas se interessam mesmo � por pratos que carregam tradi��o, contam hist�ria, apresentam uma cultura diferente. A cozinha judaica tem muito a mostrar. Receitas t�picas, algumas raras de se encontrar na cidade, despertam a curiosidade dos belo-horizontinos pelas m�os de judeus que querem preservar h�bitos milenares.
Simone Wajnman cresceu em uma fam�lia judaica que n�o era religiosa, mas muito ligada � tradi��o. Seus quatro av�s vieram do Leste Europeu, tr�s da Pol�nia e um da Rom�nia. Em casa, todos falavam i�diche, a l�ngua dos judeus na Europa, e comiam pratos t�picos. “Sempre vivi mergulhada nesta cultura, mas n�o sabia nada al�m da hist�ria dos meus av�s.”
A professora sempre cozinhou em casa. Mantinha os tr�s filhos unidos em volta da mesa. Nos �ltimos tempos, estava envolvida com p�es de fermenta��o natural e, depois da viagem, come�ou a recriar nas receitas o que comia em fam�lia. O que seria para consumo pr�prio ou, no m�ximo, presentear os amigos, rapidamente atraiu curiosos em conhecer a hist�ria dos p�es.
Os testes come�aram pelo p�o de cebola. Simone explica: “O prato de que nunca me esque�o, que me d� conforto emocional e espiritual, � o varenike. � como se fosse um ravi�li recheado de cebola e coberto com muita cebola frita”. Imagina a felicidade dela ao reencontrar esse sabor na Pol�nia. Durante a viagem, comia todos os dias (literalmente), no almo�o e no jantar.

A sua receita leva farinhas branca e integral, sementes de papoula (ingrediente muito popular na cozinha judaica, usado em bolos, p�es e biscoitos) e cebola. “Na minha inf�ncia, chamavam de cebola frita, hoje falam caramelizada. Nada mais � do que a cebola dourada na manteiga com um pouco de sal e a��car. Dou tamb�m um toque de miss�.” Simone sugere com�-lo com lox (nome que os judeus d�o ao gravlax, que � o salm�o curado) e creme de alho-por�.
Em datas festivas
Outro p�o que est� no card�pio � a tradicional challah ou hallah, presente em todas as datas festivas, como o Yom Kipur, dia dedicado ao jejum. “Cresci comendo hallahs horr�veis, duras e secas. Descobri pessoalmente na Pol�nia que elas n�o precisam ser assim. Podem ser lindas e deliciosas.”
A viagem instigou Simone a aprimorar a receita. Na vers�o dela, a massa � lev�ssima, de fermenta��o natural. Originalmente para acompanhar a comida, a hallah tem apenas farinha, mel e azeite. “As hallahs s�o totalmente neutras, n�o se parecem com a rosca mineira, que leva leite condensado e a��car, a n�o ser pelo visual”, pontua a professora, que n�o se limita � tradi��o e incentiva o consumo em v�rios momentos do dia. As coberturas mais comuns s�o semente de papoula e gergelim.

Como a massa � bem simples, as invencionices se expressam nos formatos. A hallah pode ser redonda, comprida, quadrada, em forma de cora��o etc. Simone diz que o c�u � o limite. “Gosto da hallah por isso, as tramas v�o se tecendo e criando desenhos bonitos. A nossa vida � assim.” A massa j� assada ganha um banho de �gua com a��car ou azeite para ficar com a cor dourada e o brilho caracter�sticos.
Uma op��o doce � o babka, com massa amanteigada e muito recheio. Simone n�o tem sabores fixos, se inspira no que encontra no mercado. J� usou chocolate, frutas vermelhas, pera e cereja. “A palavra bakba � vov� em polon�s e de fato o p�o lembra um abra�o gostoso e aconchegante de v�.”
Simone se sente extremamente feliz e realizada com o trabalho como padeira. No momento, est� testando receitas de beigale e bagel. “Perdi muito cedo m�e, pai e irm�o, fora a hist�ria familiar de perdas inerentes � cultura judaica, e isso est� me dando prop�sito de resgate de afetividade familiar. Como a hallah, vou tecendo diversos fios da minha vida e formando um conjunto harmonioso.”
Iguaria de �guas geladas
No juda�smo, como explica o f�sico e professor Aba Cohen, mem�ria e tradi��o s�o fundamentais. Uma das tradi��es da fam�lia dele, que veio da P�rsia, � reunir dezenas de pessoas ao redor da mesa em pelo menos duas grandes festas anuais: Rosh Hashan�, o ano-novo judaico, e Pessach, a P�scoa. “Comida � extremamente importante, � o nosso elo”, comenta.
Aba sempre gostou de cozinhar. Diz que tem uma lista com meia d�zia de pratos que sabe fazer, como o salm�o inteiro assado em papel-alum�nio com manteiga, alcaparra e bastante lim�o. Uma receita, em especial, que n�o � tradi��o persa, mas dos judeus da Europa, desperta h� anos sua curiosidade: o peixe hering (aqui chamado de arenque) marinado, iguaria que recentemente trouxe para a cidade com a marca Cohen&Daughters, em refer�ncia �s tr�s filhas.

H� 50 anos, o f�sico conta que era poss�vel comer hering no Tip Top, bar fundado por judeus em Belo Horizonte. Depois nunca mais o encontrou na cidade. Muito comum no Bar Mitzv�, cerim�nia que insere o jovem na comunidade judaica, o peixe tinha que vir de S�o Paulo. Era sin�nimo de comida salgada, por causa da salmoura.
Aba passou anos pesquisando e provando receitas no mundo inteiro, em especial Israel (hoje, uma das suas filhas mora em Telavive). Conta que j� comeu hering em Arad, cidade no meio do deserto, onde vivem judeus russos, que seguem essa tradi��o. At� que chegou � sua receita. “Sentia muita falta desse peixe, que gosto de comer todo dia de manh�, e comecei a fazer para o meu consumo.”
O hering � um peixe de carne rosada e muito rico em �mega 3, que vive em �guas geladas. Vem da Noruega e chega para Aba congelado na pr�pria �gua do mar. Para n�o correr o risco de salgar demais, como o do Bar Mitzv�, ele usa uma balan�a para medir a quantidade de sal da marinada, que tamb�m tem especiarias e lim�o. Depois o peixe � banhado no azeite.
No in�cio, Aba comprava 80kg de hering, que durava quatro meses. Ele consumia a maior parte e o pouco que sobrava vendia para os amigos. Agora, os 120kg acabam em um m�s e a maior parte � vendida. Muitos dos clientes j� comeram o peixe fora do Brasil e sabem do valor da iguaria. A sugest�o � com�-lo com um p�o mais pesado, cream cheese ou requeij�o e cebola, que � “imprescind�vel”.
Fus�o de culturas
A tradi��o judaica tamb�m se espalha atrav�s de n�o judeus. Dono de restaurante �rabe em Brumadinho, Ant�nio Abrah�o, de fam�lia s�ria, teve contato com uma receita judaica muito antes de sonhar em trabalhar com cozinha. H� quase 40 anos, ele fez em casa gefilte fish, os bolinhos de peixe.
Muito tempo depois, em pesquisas sobre a sua origem, ele conheceu a hist�ria de Alepo, cidade na S�ria que recebeu judeus por s�culos. Quando a comunidade judaica saiu de l�, j� havia assimilado muito da cozinha �rabe e a espalhou pelo mundo.
Abrah�o serve no restaurante uma entrada de origem �rabe com pegada judaica. � o kibbeh neye w'khidrawat, quibe cru que n�o leva carne, tem piment�es amarelo, verde e vermelho, salsa, triguilho, lentilhas, cominho, sal, mela�o de tamarindo e cebola crua. Vira quase uma salada e pode ser servido com p�o ou acompanhar uma carne.

A divis�o entre �rabes e judeus n�o existe no restaurante de Abrah�o. “Sou de origem s�ria, mas nasci no Brasil e n�o fujo a essa mistura. Acho que, na cozinha, diferentes culturas se encontram e atrav�s dela temos que preservar valores de fraternidade, paz e comunh�o”, defende.
“Amo a culin�ria judaica”, diz a cozinheira Nanci de Deus, que se especializou em receitas t�picas dos judeus. Aprendeu com a tia, que trabalhou na casa de uma fam�lia judia. Desde ent�o, atende por encomenda pedidos, geralmente, da comunidade judaica.
De entrada, ela costuma preparar o gefilte fish com uma salada de beterraba (misturada com raiz forte) ou mousse de f�gado de pato, que os judeus comem com o p�o hallah. Na sequ�ncia, � comum servir varenike, a massa com cebola, e uma carne.
Para finalizar, o strudel (os judeus mais antigos chamam de fluden), que � a especialidade de Nanci. “As pessoas fazem com massa folhada pronta, mas a minha � 100% artesanal. Vejo que fica mais leve”, explica. Com recheio de nozes, a sobremesa � enrolada igual rocambole. Normalmente, � servida em ocasi�es especiais, como Bar Mitzv� e casamentos.
Kibbeh neye w'khidrawat (Ant�nio Abrah�o)
Ingredientes
1 ma�o de salsa; 4 ou 5 cebolinhas; 1 piment�o vermelho; 1 piment�o verde; 1 piment�o amarelo; 2 tomates; 3 cebolas; 1 x�cara de lentilhas cozidas; 2 x�caras de triguilho lavado; 1 x�cara de massa de tomate; 1 colher de sopa de cominho; 1/2 de colher de ch� de chili em flocos; sal kosher a gosto; 1/2 x�cara de concentrado de tamarindo; 1 x�cara de azeite
Modo de fazer
Corte os piment�es, tomates e cebolas em quadradinhos. Pique a salsinha e a cebolinha. Cozinhe a lentilha. Misture tudo com o triguilho. Tempere com sal, chili, cominho, massa de tomate, azeite e tamarindo. Acerte o gosto se precisar. Deixe na geladeira, coberto, por cerca de 30 minutos. Depois, forme pequenos torpedos. Sirva � temperatura ambiente com mela�o de tamarindo, se desejar.
Servi�o
Hallah
(31) 99981-4554
Cohen&Daughters
(31) 99622-7090
No ateli� do Abrah�o
(31) 99205-5139
Nanci de Deus
(31) 99801-5680