
Em alguns momentos, o futuro parecia nem existir. O que mais importava, na corrida obstinada pela sobreviv�ncia, era o presente. Depois de enfrentar muitos percal�os com a pandemia, Luiz Filipe Souza, chef do Evvai, em S�o Paulo, come�a a sentir o doce sabor da vit�ria. Vit�ria por conseguir manter as portas abertas e, principalmente, a equipe que levou anos para montar. No momento em que o restaurante se volta totalmente para o menu degusta��o, a palavra em mente � reconstru��o.
Luiz Filipe admite que o seu maior medo era ter que se desfazer da equipe para manter o restaurante aberto. Para um chef, uma das maiores dificuldades, e tamb�m o seu grande m�rito, � conseguir montar um time talentoso, alinhado e eficiente. E o Evvai, perto de completar tr�s anos, tinha chegado l�. “� muito dif�cil construir um time, principalmente com um trabalho t�o detalhista e �nico. Mas o medo de perder tudo isso me deu mais for�a para me reinventar e sobreviver”, aponta.
O chef mergulhou no delivery e conseguiu, como poucos, levar pratos igualmente sofisticados e surpreendentes at� a casa dos clientes. Como exemplo, o radiatori ao pesto com ricota de b�fala e pistache, receita que ele compartilha nesta reportagem. O servi�o de entrega, que manteve a equipe ativa no per�odo de portas fechadas, se firmou e ganhou cozinha pr�pria.
J� o projeto do Blue Cookie foi pensado, especificamente, para ajudar os funcion�rios. Luiz Filipe desenvolveu duas receitas de cookies, uma com cacau, especiarias, mel de Bor�, chocolate branco e nibs de cacau, e outra com especiarias, tr�s chocolates e macad�mia, para vender no delivery. Todo o lucro � destinado para a equipe, que ficou sem gorjetas por um bom tempo. O novo neg�cio vai virar, em breve, um caf� anexo ao Evvai, com a mesma proposta de complementar a renda dos colaboradores.

A pandemia tamb�m provocou uma revolu��o dentro do restaurante (que tem uma estrela “Michelin” e est� na lista dos 50 melhores da Am�rica Latina), impulsionada pela vontade do chef de enxergar aprendizado e evolu��o em um momento dif�cil. “Muitas vezes nos prendemos a um tanto de regras do mundo do fine dining, como ter toalha na mesa. A pandemia derrubou todas essas regras e a �nica agora � nos mantermos ativos e vivos. Podemos ser mais livres e leves”, analisa.
Planos antecipados
Desde a reabertura, h� dois meses, o Evvai passou a servir apenas menu degusta��o. Era um caminho esperado por Luiz Filipe, mas que ele imaginava que seguiria daqui a uns cinco anos. “Quando todo mundo estava querendo democratizar a cozinha, eu era o cara que pensava o contr�rio. Sempre gostei de menu degusta��o, apesar de entender que ele acaba restringindo o p�blico.” O menu � la carte ser� transferido para o Evv.ita, aberto na pandemia como pizzaria.
O atendimento nas mesas tamb�m teve que ser adaptado. “Quando a proximidade f�sica passou a representar um perigo, comecei a redesenhar toda a experi�ncia no restaurante para encurtar dist�ncias e cheguei � ideia de fazer uma caixa com bilhetinhos para contar, com as minhas pr�prias palavras, o que est� por tr�s dos pratos.” O chef escreveu e ilustrou os encartes, que d�o detalhes sobre o processo criativo e contam hist�rias e curiosidades sobre as receitas.

Al�m de resolver a quest�o do distanciamento, os bilhetes deixaram o servi�o como Luiz Filipe gosta: din�mico e invis�vel, a ponto de o cliente nem perceber. “Sempre me incomodou aquela situa��o de estar com algu�m na mesa, batendo papo e se divertindo, e toda hora vem algu�m para explicar um prato. Tem hora em que voc� n�o est� a fim de ouvir e para a gente isso � muito complicado, porque voc� n�o sabe se interrompe ou se n�o fala nada”, comenta.
Os encartes ficam na mesa para o cliente consultar quando (e se) quiser. Inesperadamente, eles tamb�m viraram um meio de troca de mensagens entre os clientes e o chef, que se diverte com as conversas por correspond�ncia. Muitas est�o afixadas em um mural no sal�o.
Cozinha oriundi
Na cozinha, o prop�sito continua o mesmo: criar pratos que conectam It�lia e Brasil. � o que Luiz Filipe chama de cozinha oriundi. A palavra, que d� nome ao menu degusta��o, se refere a quem tem origem italiana, mas nasceu em outro pa�s.
O desejo de fazer essa mistura veio depois da participa��o no Bocuse d'Or, o mais importante concurso de gastronomia do mundo (ele representou o Brasil na final de 2019, em Lyon, na Fran�a). At� ent�o, o chef nunca havia trabalhado com cozinha brasileira e, por exig�ncia da competi��o, teve que explorar ingredientes locais. “Comecei a ter uma sensa��o de autenticidade e pertencimento e quis muito trazer isso para o universo da minha cozinha, que nunca deixou de ser de autor.”

Assistindo a um document�rio que mostra a comida italiana em Nova York e Buenos Aires, muito diferente da original, ele percebeu que no Brasil aconteceu o mesmo. Criou-se uma cozinha que n�o � italiana nem brasileira. Fil� � parmegiana, por exemplo, s� existe no Brasil, mas tem muito da melanzane alla parmigiana. “Quando os italianos chegaram ao Brasil, vendo a abund�ncia de carne, naturalmente substitu�ram a berinjela por fil�”, destaca.
O trabalho de Luiz Filipe se encaixa exatamente nesse ponto. Comer o menu degusta��o do Evvai � embarcar na ideia de que esse fen�meno de surgimento de uma nova cozinha, entre a italiana e a brasileira, que come�ou no per�odo da imigra��o, continua evoluindo por meio de novas influ�ncias. E o chef vai sendo levado por estudos e muita criatividade.
Tudo come�a no bar
O novo menu Oriundi � cheio de surpresas. Para come�ar, os clientes s�o recebidos no bar e acompanham a finaliza��o de um drinque para comer. “O bar sempre funcionou muito mais para atender � espera e, como isso n�o existe mais na pandemia e acho essa uma parte superlegal do restaurante, encaixei no menu uma experi�ncia no balc�o.”
Nesta primeira etapa, os sabores s�o de um cl�ssico da coquetelaria italiana, o Godfather, homenagem ao filme “O poderoso chef�o”. Apoiado em uma lou�a no formato de m�o, o snack combina crocante de milho, bolo de am�ndoas, am�ndoas e gel de laranja. Para completar, o barman prepara na hora uma raspadinha com u�sque, licor de am�ndoas e suco de laranja, os ingredientes do drinque.

Para criar o primeiro prato, Luiz Filipe partiu da receita da salada caprese (mu�arela de b�fala, tomate e manjeric�o), que � mais consumida no Brasil que na It�lia. Mas n�o poderia ser �bvio. “Pesquisando sobre mel e abelhas nativas, um dos produtos mais bacanas que temos como pa�s, descobri algo genial: tomateiros polinizados por abelhas t�m �ndice de produ��o maior e tomates mais carnudos.”
Da� a ideia de servir um tartar de tomate sem pele e semente (que fica com textura de carne), sorbet de am�ndoas (para lembrar a mu�arela de b�fala) e mel de abelha mombuc�o (sem ferr�o).
Um dos pratos chama a aten��o pela cor. � o linguine com ouri�o-do-mar e molho de tomate, ervilha, lim�o e coentro, predominantemente verde. Luiz Filipe tamb�m brinca com a temperatura: a massa � servida fria. “Na It�lia, consome-se bastante massa fria, mas aqui n�o temos esse costume, muito pelo contr�rio. Na cultura popular, se n�o estiver pelando as pessoas t�m dificuldade de entender.”
O nhoque surpreende pelo molho de polenta cremosa e frango. “Servir frango em um restaurante como o Evvai � quase uma ousadia. As pessoas n�o esperam se deparar com uma carne t�o popular e do dia a dia.” As pessoas tamb�m n�o esperam comer um peito de frango cozido de maciez incr�vel e sabor muito agrad�vel, como descreve o chef. Para chegar a esse resultado, usa-se muita t�cnica.

Depois vem o peixe no caldo de sururu. O preparo do Nordeste com influ�ncia africana se aproxima da It�lia com o uso de a�afr�o e vinho branco. A sequ�ncia de pratos � finalizada com uma vers�o do fil� Rossini, receita francesa que homenageia o compositor de �pera italiano Gioacchino Rossini. A picanha, um corte bem brasileiro, substitui o fil� e se junta � mandioca, trufas e aspargos.
Na transi��o entre o salgado e o doce, a acidez e o sabor de inf�ncia do picol� explosivo de pitanga. “Mandamos um saquinho de a��car para o cliente mergulhar o picol�, como se fazia com aqueles pirulitos de antigamente, e todo mundo se diverte.” Por fim, zabaione, a cl�ssica sobremesa italiana de gema e a��car, s� que com um toque local. No lugar do vinho marsala, um vinho fortificado brasileiro.
Radiatori ao pesto, ricota de b�fala e pistache
Ingredientes
130g de manjeric�o genov�s; 130g de salsa lisa; 45g de pinole; 50g de queijo grana padano ralado; 300ml de azeite extravirgem; 8g de sal refinado; ½ dente de alho; quanto baste de gelo; 130g de ricota de b�fala; 20ml de azeite extravirgem; quanto baste de sal refinado e pimenta-do-reino; 40g de pistache sem casca; 480g de radiatori
Modo de fazer
Para o molho pesto, ferva uma panela grande de �gua. Desfolhe o manjeric�o e a salsa. Reserve 12 folhas menores e bem bonitas para a finaliza��o. Prepare um bowl para o banho-maria invertido (com �gua e bastante gelo). Branqueie (o que significa cozinhar rapidamente) as folhas na �gua fervente por aproximadamente 30 segundos e transfira para o bowl com �gua e gelo para interromper o cozimento. Quando as ervas estiverem bem frias, coe e esprema bem, a fim de retirar o excesso de �gua. Em um liquidificador, bata o azeite, sal, alho, grana padano e pinole at� ficar liso. Junte as folhas branqueadas e algumas pedras de gelo e bata bem at� ficar homog�neo. Se a gordura continuar se separando, adicione um pouco mais de gelo. Ajuste o sal e reserve. Para a ricota temperada, amasse a ricota com o garfo em um bowl para deix�-la bem soltinha. Tempere com azeite, sal e pimenta-do-reino. Reserve na geladeira. Para o pistache torrado, preaque�a o forno a 1600C. Coloque os pistaches em uma assadeira e toste-os por 6 minutos, sem deixar queimar. Reserve. Para o radiatore, ferva uma panela grande de �gua com sal. Cozinhe a massa conforme o tempo informado no pacote. Separe uma frigideira e coloque um pouco da �gua do cozimento da massa. Aque�a a frigideira e adicione os radiatores cozidos. Aque�a bastante e, se a �gua secar, adicione mais. Retire a frigideira do fogo e acrescente o molho pesto. Misture bem, a fim de que toda a massa esteja com molho. Disponha a massa em um prato fundo e coloque uma colher de ricota no centro. Decore com os pistaches e as folhas de manjeric�o. Finalize com um pouco de azeite.