Este � um convite para uma viagem no tempo e no espa�o. Deixe a vida real do port�o para fora por algumas horas e embarque em uma experi�ncia milenar na casa de Zoraida Monadjemi, no Bairro Sagrada Fam�lia, Regi�o Leste de Belo Horizonte. Como Sherazade, do conto �rabe “As mil e uma noites”, ela encanta os convidados com muitas hist�rias. A comida e as bebidas, que prepara com tempo e amor, carregam sabores orientais e mineiros.
A anfitri� sempre teve fasc�nio pela cultura milenar. E a vida se encarregou de conectar a sua hist�ria a um passado bem distante. Para come�ar, o nome. Zoraida foi batizada em homenagem � bisav�, espanhola de origem cigana. Sem planejar, seus dois casamentos proporcionaram mergulhos profundos pelo Oriente M�dio. Primeiro ela fez parte de uma fam�lia que veio do L�bano. Hoje � casada com um descendente de iranianos.
“O mundo milenar tem muitos mist�rios, e isso me fascina. Quando falo em cozinha milenar, falo de um mundo de descobertas, da oportunidade de experimentar, de ser curioso, de manter uma mente de principiante, de ter coragem de se arriscar”, aponta a cozinheira, que se inspira na nossa ancestralidade. Ao longo da vida, entendeu que isso leva a uma diversidade de culturas. Ent�o, mistura suas ra�zes mineiras com o que aprendeu com libaneses e iranianos, em viagens e pesquisas pelo mundo.
'O mundo milenar tem muitos mist�rios, e isso me fascina', comenta Zoraida Monadjemi, refletida no espelho que comp�e a parede com fotos de fam�lia (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
A experi�ncia envolve um certo mist�rio. Voc� chega l� sem saber o que vai encontrar nem o que vai comer. Cada jantar � �nico. O menu e a decora��o s�o criados pensando na hist�ria dos convidados e na celebra��o daquele encontro. A intui��o guia Zoraida. Segundo ela, a sensibilidade para se conectar com o outro vem do seu lado cigana, assim como as in�meras mudan�as. De vida, de cidade e de profiss�o.
Vestindo turbante e avental, a anfitri� recebe os convidados na entrada da casa onde cresceu. A cortina esconde um mundo de surpresas. A experi�ncia come�a na garagem transformada em sala de estar, onde se destaca uma bela mesa de entradas. Tudo que ali est� ela “colhe” no jardim, em floriculturas, com produtores de org�nicos, no seu acervo de utilit�rios e objetos decorativos. Zoraida sempre gostou de arrumar mesas e chegou a trabalhar em loja de decora��o.
As boas-vindas s�o com um brinde de “espumante” de uva verde. Nada mais � do que suco de uva verde com borbulhas. “Uva � a fruta mais milenar que temos, o vinho est� em todos os livros sagrados, ent�o considero essa bebida s�mbolo da nossa conex�o milenar. � a continua��o da nossa hist�ria.”
Zoraida leva para a mesa o que teve vontade de cozinhar naquele dia, o que acha que vai combinar com o momento. “Cada dia meu cora��o vira para um lado, como um barco a vela”, compara.
Algumas presen�as s�o inegoci�veis, o que muda � o jeito de servir. Dificilmente, n�o ter� a famosa coalhada. Seguindo a sabedoria milenar dos �rabes, ela coloca o leite no paninho, amarra, deixa pingando na pia e espera. Tal como na vida, o tempo � muito importante na cozinha.
Em rever�ncia aos indianos, o curry tempera a pasta de frango (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
“A coalhada foi o meu melhor ensinamento de vida. Primeiro porque n�o gostava e hoje sou viciada. Ela me deu muito trabalho, testou minha paci�ncia, mas fiz com muito cuidado, fui errando e acertando e virou o item n�mero um do meu card�pio”, conta.
Voc� j� deve estar se perguntando o que a coalhada da Zoraida tem de especial. Explico: uma textura cremosa de mousse, sabor pouco �cido e o toque de zaatar por cima, em refer�ncia ao queijo chancliche.
Cl�ssico tamb�m � o quibe que ela aprendeu pelas m�os do sogro liban�s. Aparece em v�rias vers�es: pode ser servido cru ou assado, em formato de bolinha com tabule de quinoa ou dentro de uma x�cara, recheado com carne e cebola. “Quando chego com a x�cara, as pessoas perguntam: vamos tomar ch� agora? Isso confunde o nosso c�rebro e quebra um paradigma. Por que x�cara � s� para servir ch�?”
Durante o jantar, Zoraida traz outras “pegadinhas”, que nos levam a refletir sobre a vida. Chama de espumante a bebida de uva verde, mesmo sem ter �lcool, e coloca na mesa um buqu� de flores secas de cabe�a para baixo. Um jeito de nos falar que nem tudo precisa ser como imaginamos. O convite para tirar os sapatos, sentar-se em uma mesa de ch�o e comer com as m�os tamb�m sacode as nossas expectativas.
Diversidade � mesa
No dia da nossa visita, comemos pasta de frango ao curry. “Escolhi essa receita em rever�ncia aos indianos e para falar sobre a diversidade milenar. Curry � uma mistura de temperos e cada um tem as m�os de quem o preparou. Voc� nunca vai achar um igual ao outro”, explica.
O menu e a decora��o s�o criados de acordo com a hist�ria dos convidados e o motivo da celebra��o (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Outros itens da mesa eram cebolas caramelizadas, como as que s�o servidas em cima do arroz com lentilhas (se � a parte que todo mundo mais gosta, por que n�o servir s� ela?), conserva de berinjela, carpaccio de beterraba com homus e doce da casca de lim�o capeta, num aceno a Minas Gerais.
A crostata, p�o fininho assado com azeite e gergelim, serve de acompanhamento para todos os preparos. O refresco milenar tamb�m.
Sekanjebin (na tradu��o literal, melado de vinagre) � uma bebida � base de a��car, vinagre de ma�� e �gua, muito comum no ver�o nas montanhas da antiga P�rsia (hoje Ir�). Zoraida aprendeu com a sogra iraniana e anotou tudo no seu caderninho de receitas, “para n�o perder um suspiro”. Depois de diluir em �gua, ela saboriza com pepinos ralados e folhas de hortel�.
Passado o primeiro impacto de entrar no mundo milenar, os olhos come�am a encontrar detalhes da casa, da decora��o e da comida. Nada est� ali por acaso. “Aqui � lugar de reparar”, avisa Zoraida, que fica sempre por perto, absorvida pela curiosidade dos convidados. Entre uma pergunta e outra, conta hist�rias, fazendo lembrar Sherazade. Para ela, n�o h� nada mais enriquecedor do que essa troca, � o seu “oxig�nio”.
A noite avan�a e vamos entrando mais na casa, tornando-nos mais �ntimos da fam�lia. O marido de Zoraida, Walter, passa a fazer parte da noite, depois que chega do trabalho, e segue com o fio da hist�ria. Na sala de jantar, onde o segundo ato da experi�ncia se desenrola, a mesa e o aparador s�o rodeados por fotos e objetos das duas fam�lias. O movimento na cozinha acontece sem nem percebermos.
Receita do sogro liban�s, o quibe � servido em formato de bolinha com tabule de quinoa (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
O jantar segue com um ensopado persa de gr�o-de-bico, feij�o-branco, carne de boi e especiarias, entre elas o lim�o desidratado loomi (conhecido como lim�o negro), que potencializa o sabor da receita.
De prato principal, a anfitri� escolheu o bogholi pollow, que mistura arroz basmati (de origem indiana), favas verdes, dill desidratado e til�pia, finalizado com zaffron persa, tempero que vale ouro na gastronomia. Para acompanhar, iogurte temperado com rom�, nozes e pepino e tahdig, nome que os persas d�o ao fundo de panela feito com batatas.
Zoraida vira a panela na travessa na nossa frente. O resultado tamb�m � surpresa para ela. As batatas formam um bloco e ficam com textura de vidro.
Por fim, vem o bastani (sorvete persa feito de baunilha, pistache, a�afr�o e �gua de rosas) com calda de casca de jabuticaba (Minas de novo est� presente) e pistaches torrados. Depois da sobremesa, o momento do ch�, j� em outra sala da casa, no aconchego do sof�. “Sou de uma fam�lia do cafezinho, mas sempre fui amante dos ch�s.” Doces e frutas desidratadas ado�am o paladar.
No dia seguinte, a sensa��o � de ter acordado de um sonho, que se passou em outro mundo e em outra �poca. Ser� que aquilo tudo foi real? Sim, e n�o est� t�o longe assim.
Muitas vidas em uma
Aos 50 anos, Zoraida sente que j� viveu muitas vidas em uma s�. Sua hist�ria confirma. Nascida em Belo Horizonte, ela tem um passado de forno e fog�o. De crian�a, sua brincadeira favorita era “cozinhar” terra, areia e plantas do jardim de casa, essa mesma onde hoje recebe para a experi�ncia milenar. N�o saem da mem�ria as quitandas da m�e, o ovo frito do av� e o torresmo das tias.
Desde pequena, por influ�ncia da m�e, ela segue a F� Bah�'�, religi�o que surgiu na antiga P�rsia. Mas s� come�ou a conhecer, a fundo, o Oriente quando se casou com um colega de escola de origem libanesa, com quem teve dois filhos. “Era um choque cultural muito grande, mas tamb�m uma imers�o em um mundo que jamais poderia imaginar que existia. Me encantei pelas especiarias”, conta.
Para dar in�cio ao servi�o na sala de jantar, ensopado persa de gr�o-de-bico, feij�o-branco, carne de boi e especiarias (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Com a fam�lia libanesa, Zoraida aprendeu muitas t�cnicas e receitas. Quando morava em Guarapari (ES), onde chegou a abrir uma lanchonete, lembra-se de passar a madrugada com a sogra costurando dobradinha e recheando com gr�o-de-bico e carne de carneiro. O sogro, nascido em Beirute, matava o animal e deixava as v�sceras secando no varal.
De volta a BH, ela teve sal�o de beleza, trabalhou em loja de decora��o e gerenciou franquias de roupas de beb�. A cozinha sempre esteve l�, como um ref�gio. Zoraida conheceu o atual marido em uma festa que a m�e organizou em casa para a comunidade bahai. Depois soube que os pais dele vieram do Ir� para o Brasil para propagar a religi�o. Durante a gravidez da terceira filha, formou-se em administra��o.
Em Itatiba, no interior de S�o Paulo, abriu uma escola de idiomas. Quando veio a crise, foi vender p�o de queijo na feira de domingo e cozinhar para a comunidade persa. “Esse era o meu momento, era quando confirmava a minha identidade”, comenta. As encomendas come�aram a surgir e logo ela deixou de ser executiva, de terninho e salto, para se tornar cozinheira, com turbante e avental.
A morte da sogra iraniana trouxe Zoraida de volta para BH. Dela herdou um acervo de objetos antigos e os cadernos de receitas persas. “Sempre que ela ia fazer comida, ficava do lado. Ela n�o seguia receita coisa nenhuma, seguia lembran�as da m�e, av� e irm�s mais velhas. Anotava o que ela fazia, e n�o o que lia nos livros, ent�o minhas receitas s�o inspiradas nas suas m�ozadas”, diz, acrescentando que a comida persa � “pura poesia”.
Depois que vivemos toda a experi�ncia, temos a sensa��o de que Zoraida faz isso h� “mil�nios”. Mas, acredite, essa hist�ria de receber em casa come�ou h� pouco mais de um ano. Movida pelo esp�rito cigano, ela n�o se v� nesse lugar por toda a eternidade. Alimenta o sonho de morar novamente no interior e de ainda viver muitas vidas em uma.
Khoresht Karafs (ensopado persa de aipo)
Ingredientes
1 molho de aipo; 1 cabe�a de alho; 1 colher de sobremesa de sal; azeite; 1kg de ch� de dentro cozida; 1 colher de caf� de a�afr�o-da-terra; 1 colher de caf� de p�prica doce; 1 colher de caf� de cominho em p�; 1 colher de caf� de canela em p�; 2 cebolas grandes; 1 lim�o desidratado
Modo de fazer
Soque o alho e o sal na hora em que come�ar a cozinhar. Refogue no azeite o alho socado e todas as especiarias junto com a cebola. Coloque a carne e deixe que fique bem dourada. Adicione �gua para cozinhar. Quando estiver cozida, reserve. Em outra panela, refogue o alho, especiarias e acrescente o aipo cortado (talos e folhas). Deixe cozinhar por aproximadamente 30 minutos em fogo baixo, at� que perceba que os talos est�o cozidos. Acrescente a carne. Deixe cozinhar por mais alguns minutos para incorporar o sabor. Acrescente �gua, se necess�rio, para ficar na textura que deseja. Regue com a�afr�o e finalize com lim�o desidratado. Voc� pode deixar um lim�o secar para colocar ele inteiro no molho ou pingar algumas gotas de lim�o taiti. Sirva com arroz branco.