
“Meu primeiro desfile em Londres, na Fashion Week. Para falar sobre isso, preciso respirar bem fundo mesmo, porque foram muitas mem�rias at� pisar na passarela”. Este � o desabafo da modelo, influenciadora digital e ativista Duda Almeida em uma postagem no Instagram ap�s desfilar na �ltima quarta-feira (16/2) pela marca brit�nica Pretty Little Thing. Cria da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Duda celebra sua primeira participa��o em um dos eventos de moda mais importantes do mundo com um texto que relembra suas ra�zes.
“Lembrei de cada palavra da minha ‘v�’, mulher preta, m�e de santo”, escreveu a modelo. “Mas ontem, em especial, foi sobre minha tia Fernanda. Linda, talentosa, uma artista preta, favelada. Nos anos 80/90, tendo a ousadia de querer sonhar, ela foi finalista de um concurso importante de moda no Rio, mas, para o j�ri de preconceituosos, ela tinha corpo, boca demais para ser modelo. Quando disse que era da Cidade de Deus, foi o fim. Sempre me perguntava como fizeram isso com voc�, e mais tarde eu entendi o porqu�”, completa.
Al�m de falar sobre a fam�lia, Duda, que � ativista premiada pela prefeitura do Rio e pelo Instituto Zumbi dos Palmares como influenciadora social pela sua luta contra o racismo, n�o p�de deixar de falar de onde veio e sobre as pessoas que convivem diariamente com ela. “Esse sonho n�o � s� meu. Sei que tamb�m � o sonho de todos, ou da grande maioria de jovens pretos e favelados que me seguem aqui e que me veem passando o dia a dia na Cidade de Deus”, diz a modelo. “Acho que a minha hist�ria � isso [refer�ncia, afago, al�vio, um pingo de esperan�a] para as pessoas que t�m a mesma hist�ria que a minha, e que s� querem uma oportunidade. S� uma”, reflete Duda.
Trajet�ria
Em entrevista ao portal "Not�cia Preta", Duda Almeida conta que, apesar das press�es que sofria para agregar caracter�sticas que se distanciam da negritude, como o cabelo liso, p�de conquistar seu pr�prio espa�o sendo ela mesma. “As meninas e mulheres negras encontram muita dificuldade para terem o seu devido reconhecimento. Muitas ag�ncias, no come�o, queriam alisar o meu cabelo para me encaixar em um padr�o”, conta ela.
Para al�m de seu trabalho como modelo, Duda ainda transmite seus valores aos seus seguidores, enfatizando que o povo negro � singular e que o respeito �s ra�zes � o que a faz trilhar caminhos de sucesso. “Precisamos olhar com carinho para as nossas caracter�sticas, jeitos, somos �nicos, acredite! E precisamos usar isso ao nosso favor”, conclui a influenciadora.
Duda ainda acredita que seu crescimento tamb�m � ponto de partida para que haja ainda mais descobertas dentro das favelas. “Para mim, ser reconhecida dentro e fora da minha comunidade, e por ser artista, � uma conquista. Eu sou uma exce��o, mas acho que minha maior conquista ainda ser� transformar os jovens da minha comunidade realizando o sonho deles. Meu sonho � ter uma ag�ncia e um projeto social, pois sou fruto de um [CUFA - Central �nica das Favelas]”, diz ela em entrevista � Glamour.
Sua relev�ncia n�o existe � toa e traz consigo inspira��o para outras pessoas que sonham em trilhar o mesmo caminho. “A minha maior mensagem como influenciadora � mostrar o poder da favela. � um lugar que n�o � s� sobre viol�ncia. A favela � pot�ncia e poder ter, sim, uma modelo internacional. Desejo que, cada vez mais, as mulheres negras e perif�ricas acreditem que � poss�vel realizar seus objetivos”, fala Duda.
A Cidade de Deus

O bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro j� foi um sub-bairro pertencente ao bairro de Jacarepagu�, desmembrada por um decreto municipal em 1966, e abriga uma das maiores favelas do estado carioca, que tamb�m se chama Cidade de Deus.
Ao longo de sua primeira d�cada, a regi�o, que contou com novos conjuntos habitacionais, recebeu pessoas removidas de outras favelas da cidade pelo ent�o governador Carlos Lacerda. A a��o fez parte de uma pol�tica de remo��o das favelas de outras �reas da cidade com o intuito de valoriza��o desses ambientes e foi orientada pelos interesses das elites, promovida �s custas de invas�es de domic�lio, despejo dos moradores e at� inc�ndios criminosos.
Realocadas em regi�es de dif�cil acesso aos centros urbanos onde h� emprego, esses conjuntos habitacionais tamb�m n�o contavam com infraestrutura de servi�os p�blicos essenciais ou sistema de transporte p�blico eficiente.
“Por conta da precariedade de direitos fundamentais, como sa�de, educa��o, seguran�a e moradia, teoricamente assegurados pela Constitui��o, cria-se espa�os sociais conflituosos, focos de atividades violentas”, conta a advogada Caroline Silveira. O crime na Cidade de Deus �, em grande parte, decorrente da falta de direitos b�sicos que s�o, diariamente, negados pelo Estado e pela sociedade.
Apesar de estar situado pr�ximo a bairros nobres da cidade, como Barra da Tijuca e Freguesia, est� entre os bairros com indicadores sociais mais cr�ticos da cidade. Segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), o �ndice de Desenvolvimento Social da comunidade � 0,559, o que a deixa em 127º lugar numa lista de 161 bairros cariocas que compara as qualidades de vida das respectivas regi�es.
A Cidade de Deus � conhecida pelo tr�fico de drogas e ficou nacionalmente conhecida em 2002, ap�s o lan�amento do filme de mesmo nome dirigido por Fernando Meirelles, sendo indicado a quatro categorias do Oscar. Com a cobertura midi�tica intensa sobre a regi�o, a vis�o que se tinha da comunidade como lugar violento e perigoso foi ainda mais refor�ada, favorecendo uma onda de preconceito e discrimina��o com seus moradores. Em 2020, segundo a plataforma Fogo Cruzado, a Cidade de Deus foi o segundo bairro que mais registrou trocas de tiros: 123, atr�s apenas da Vila Kennedy, que registrou 319 trocas de tiros.