'Abri m�o de carreira no auge para viver minha verdade', diz mulher trans que foi cantora gospel

Jotta A vivia o auge da carreira musical no meio gospel. Acumulava milh�es de visualiza��es em seus v�deos em diversos pa�ses, tinha f�-clubes, j� havia recebido indica��o ao Grammy Latino e era sensa��o em eventos evang�licos.

Um fen�meno que ecoava em r�dios do Brasil e de outros pa�ses latino-americanos, por suas diversas m�sicas gravadas em espanhol. Era a hist�ria de supera��o da crian�a que nasceu no munic�pio de Guajar� Mirim, em Rond�nia, enfrentou dificuldades ao se mudar para S�o Paulo em busca do sonho de viver da m�sica e alcan�ou o sucesso.

Mas isso n�o era sin�nimo de felicidade para ela. Em meio � pandemia de covid-19, com shows adiados e sem perspectiva sobre a retomada da rotina, passou uma fase que define como de "muita solitude", olhou para si e decidiu que n�o queria mais viver daquela forma.

"Precisei ficar a s�s comigo mesma para provar a roupa que eu queria ou poder colocar o vestido que eu queria", diz � BBC News Brasil.

Nesse per�odo, decidiu que precisava se conhecer melhor. O primeiro passo foi abandonar a m�sica gospel, ela conta.

"Tive que abrir m�o de uma estabilidade, de uma carreira constru�da, para viver a minha verdade. Digo abrir m�o porque viver a verdade ainda � um tabu muito grande. Para que eu pudesse buscar o autoconhecimento, tive, de certa forma, que abrir m�o de toda a comodidade que uma carreira brilhante me trouxe", diz.

Dois anos depois, iniciou o processo para alterar os documentos para o g�nero feminino. O nome que no passado era art�stico far� parte de seus registros oficiais: Jotta.

Carreira musical

O passado e o presente de Jotta s�o conectados principalmente pela atividade que ela considera que a mant�m viva: a m�sica.

A carreira musical dela come�ou na igreja evang�lica, quando ainda era muito nova. "A igreja � um local de muita musicalidade, eu ouvia muita m�sica e isso despertou um desejo muito grande. Meus pais viram que talvez eu tivesse talento e me incentivaram muito", relembra.

Na inf�ncia, costumava ouvir e cantar m�sica gospel - e o talento chamava a aten��o. Aos seis anos, gravou o primeiro CD. Quando a fam�lia se mudou para S�o Paulo, Jotta se inscreveu no programa de calouros do apresentador Raul Gil. Ela, que estava no in�cio da adolesc�ncia, venceu a disputa e se tornou conhecida nacionalmente.

"Depois disso, recebi in�meros convites para gravar CD em ingl�s ou em espanhol e nunca mais parei", diz.

Em 2014, o seu segundo �lbum foi indicado ao Grammy Latino na categoria de m�sica crist� em l�ngua portuguesa. Naquele ano, o pr�mio foi vencido pela cantora brasileira Aline Barros.

Ao longo da carreira gospel, Jotta foi respons�vel por in�meras m�sicas de sucesso em portugu�s e espanhol. No YouTube, os v�deos antigos da artista acumulam milh�es de visualiza��es - um deles com mais de 76 milh�es.

"Vivi muitos momentos que posso dizer que foram especiais na minha carreira, momentos de muito status em que cheguei a lugares altos que eu nunca imaginei. Eu sou uma pessoa nortista, de uma fam�lia que n�o tinha uma condi��o financeira boa e conquistei v�rias coisas incr�veis", avalia a artista.

E foi justamente no auge da carreira, com possibilidade de crescer ainda mais, que Jotta A decidiu mudar a pr�pria hist�ria.

"Eu percebi que precisava fazer por mim mesma, n�o fazer pela minha carreira, n�o fazer por todos aqueles pr�mios que eu poderia conquistar pela minha m�sica, mas por mim mesma. Ent�o foi o momento em que entendi que, de fato, precisava me autoconhecer", comenta.

Enquanto o mundo enfrentava a dura batalha contra a covid-19, Jotta A usou o per�odo de isolamento social para viver uma fase de busca por respostas sobre o pr�prio futuro.

"A pandemia foi um momento dif�cil para muitas pessoas e perdi pessoas importantes na minha vida. Mas tamb�m foi um momento em que eu tinha uma agenda lotada, cancelaram tudo e eu n�o sabia o que fazer. Eu precisava me libertar. Foi quando falei: 'puxa, talvez esse seja tamb�m um momento de solitude no qual posso decidir de vez o que fazer'", diz.

A Jotta

Hoje, aos 24 anos, a artista avalia que sempre se enxergou como uma mulher transg�nero. "Com certeza desde crian�a sempre me entendi como uma mulher, mas nunca tive oportunidade de exteriorizar tudo isso", reflete.

Ela desconhecia a realidade de mulheres trans e s� teve o primeiro contato com uma quando tinha cerca de 16 anos. "At� ent�o, tudo o que eu tinha � vista era a experi�ncia cisg�nero (pessoas que se reconhecem com o g�nero que nasceram), ent�o pensava que nunca seria uma mulher porque nunca teria um �tero ou uma vagina. Esse meu primeiro contato com uma mulher trans me fez ver que eu n�o preciso ser uma mulher cisg�nero para ser uma mulher na sociedade. Ent�o, ali me senti representada", conta.

Mas Jotta diz que ainda tinha muitos receios. "Eu nunca pude expressar o meu g�nero. Para mim, sempre foi uma coisa que tive que privar das pessoas porque tinha medo do que poderia acontecer. Infelizmente, o preconceito deixa a gente acanhada para desbravar esse mundo de autoconhecimento."

Quando iniciou a transi��o de g�nero, a cantora decidiu falar sobre o assunto aos poucos por medo da exposi��o. O principal temor era como o p�blico religioso e conservador encararia o fato de ela ser uma mulher trans.

"Primeiro eu falei para as pessoas que eu era uma pessoa n�o-bin�ria (que n�o se identifica no g�nero masculino ou feminino). Foi uma maneira que considero que pode ser mais leve. Foi o primeiro passo. E s� agora, h� alguns dias, estou podendo falar para as pessoas quem eu sou de verdade", diz.

Foi em 11 de abril que Jotta revelou ser uma mulher transg�nero, por meio de uma publica��o no Instagram na qual aparece em uma rua de S�o Paulo com um visual diferente do habitual: tran�as na altura do ombro, roupas femininas, um salto alto e uma bolsa no ombro.

"Essa sou eu indo ao cart�rio para fazer a primeira solicita��o de retifica��o do meu nome de registro", escreveu no in�cio do post.

Na publica��o, explicou que escolheu manter o nome art�stico por "ser uma maneira de estar atrelada sempre" � pr�pria hist�ria. "Recome�ar n�o � f�cil, mas estou feliz, por estar vivendo todo esse processo. Feliz em ter tantas pessoas que me apoiam e acreditam em mim nessa nova etapa", concluiu no texto na rede social.

E ali come�ou publicamente a vida da Jotta, que passou a compartilhar in�meras fotos do seu cotidiano.

"Depois do momento de solitude t�o especial, que come�ou dois anos atr�s, agora estou podendo externar tudo isso e est� sendo incr�vel", diz a cantora � BBC News Brasil.

Nesses �ltimos anos, ela fez terapia, mudou o pr�prio visual algumas vezes e recentemente deu in�cio � terapia hormonal.

O procedimento para mudar os documentos ainda est� em andamento. "Fiz a peti��o no cart�rio de S�o Paulo, mas antes tive que receber minha certid�o (de nascimento) que veio de Rond�nia", explica sobre o processo, que ainda n�o tem prazo para conclus�o.

Os ataques nas redes sociais

As recentes publica��es de Jotta A nas redes sociais geraram uma onda de carinho, mas ela tamb�m foi alvo de incont�veis ofensas e coment�rios preconceituosos. Muitos deles partem de pessoas que afirmam que ela se perdeu de Deus e precisa retornar � religi�o.

"N�s vivemos em um mundo onde as maiores religi�es s�o catequistas. O que isso significa? Uma religi�o catequista que tem um intuito mission�rio, ela tenta te convencer a acreditar em um Deus verdadeiro e normalmente esse Deus verdadeiro � o dela. E eu sempre, lendo a b�blia, vi que Cristo n�o era um ser humano catequista. Ele nunca quis for�ar ningu�m a nada, mas a mensagem dele convencia porque era uma mensagem de amor e atra�a todas as pessoas", diz Jotta.

"O que eu sinto hoje de mais dif�cil � a falta de sensibilidade das pessoas de entenderem que cada um vive o seu mundo. E muitas pessoas que me acompanham desde crian�a �s vezes tentam me for�ar a uma realidade que n�o � a minha. Isso acaba conflitando em muitos assuntos pessoais que todos n�s temos, como, por exemplo, assuntos de f� ou assuntos sociais. Eu acho que vamos viver em uma comunidade com mais empatia quando entendermos que vivemos em uma sociedade e devemos socializar, mas que temos vidas diferentes", acrescenta.

Atualmente, ela n�o tem religi�o, mas diz respeitar todas. "A minha fam�lia toda � da igreja, ent�o de certa forma ainda � o meu conv�vio. A minha av� sempre ora por mim quando a vejo e eu recebo isso com muito apre�o, com muito carinho. Mas eu acho que posso viver a f� hoje sem nenhum v�nculo religioso. Eu posso viver de uma maneira mais natural", afirma.

Entre os familiares, Jotta diz que tem tido paci�ncia para entender que a compreens�o sobre a transexualidade � "um processo que leva tempo", porque "n�o � algo somente pessoal, ela acaba atingindo as pessoas ao seu redor".

"Hoje eu tenho uma afinidade e um carinho, uma empatia muito grande pelos meus pais, apesar de n�o termos concord�ncia em alguns assuntos", pontua. O principal apoio familiar nesse per�odo, diz, � o da irm�. "Os meus sobrinhos me chamam de tia desde o momento em que eu falei para eles. Para mim esses m�nimos detalhes j� s�o um grande salto", conta.

'Um momento libertador'

Jotta, que morava no Rio de Janeiro, recentemente se mudou para S�o Paulo para focar na nova fase da carreira. Agora, ela canta pop e nos pr�ximos dias ir� lan�ar uma nova m�sica.

"Eu acho que esse momento tem sido muito libertador tamb�m artisticamente. Estou podendo escrever o que quero e em um per�odo pr�ximo vou lan�ar um �lbum que vai contar sobre toda essa minha transi��o. Acho que vai ser legal para o p�blico tamb�m entender artisticamente o que estou vivendo", diz.

Em um pa�s em que a viol�ncia afeta duramente a popula��o LGBTQIA+, Jotta A quer ser refer�ncia no cen�rio cultural e mostrar que � poss�vel ser feliz sem precisar se esconder.

"Eu quero que as pessoas, de alguma forma, sejam valorizadas atrav�s das suas pr�prias hist�rias e que elas se identifiquem com a minha verdade", afirma.

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