
S�o 77 anos de experi�ncia, de viv�ncia, como observadora dos vaiv�ns da hist�ria. Mas um ponto espec�fico ela diz ainda esperar: o reconhecimento do povo negro em todos os seus direitos e m�ritos. “Aboliu, mas n�o acabou com a escravid�o”, comenta dona L�cia Maria dos Santos sobre a Lei �urea, promulgada em 13 de maio de 1888. Assim como ela, negros de todo o pa�s conclamam � den�ncia no lugar da comemora��o dos 130 anos da aboli��o da escravatura. Ato na Pra�a da Liberdade, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, marcou ontem as discuss�es em torno do tema na capital. Neste fim de semana, outros movimentos promovem debates e mobiliza��es.
Na pra�a, o recado foi dado com a distribui��o de um manifesto, bal�es, shows, interven��es art�sticas, poesia de den�ncia e protestos. O objetivo � discutir e refletir sobre uma aboli��o que n�o foi acompanhada de iniciativa pol�tica ou de ordem legal que permitisse a total inclus�o da popula��o negra no projeto de na��o que se iniciou a partir do processo abolicionista e da proclama��o da Rep�blica, que ocorreu no ano seguinte.
Coordenadora do coletivo Nzinga e integrante da Rede de Mulheres Negras de Minas, Benilda Brito, lembra aspectos da �poca que reverberam at� hoje. “O europeu invadiu o continente africano e trouxe o negro escravizado. O Brasil foi o �ltimo pa�s do continente a abolir a escravid�o. A menor jurisprud�ncia que temos � a Lei �urea, que tem duas linhas. No artigo primeiro, est� escrito que a escravid�o � extinta; o segundo revoga disposi��es em contr�rio, sem dizer o que fazer com aquele povo todo”, relata.
“Os imigrantes s�o incentivados a vir, inclusive com terras, enquanto o povo negro � jogado � pr�pria sorte. Dizemos que o 14 de maio foi o dia mais longo da hist�ria, porque ningu�m sabia o que fazer. A primeira Constitui��o Federal proibiu o voto, legitimando a exclus�o da popula��o negra.”
Benilda lembra que as mesmas den�ncias foram feitas h� 30 anos, no centen�rio da aboli��o. “A pauta de reivindica��o � congelada. � uma popula��o que ocupa as favelas e n�o tem acesso � sa�de e educa��o, que n�o consegue entrar no instrumento econ�mico brasileiro”, diz.
“H� 30 anos, comemor�vamos a institui��o democr�tica e o fato de o crime de racismo passar a ser inafian��vel. Mas, hoje, n�o se consegue prender pessoas que o cometem. Terras quilombolas tamb�m foram asseguradas pela Constitui��o. N�o h� nem cinco quil�metros de terra tituladas pelo governo federal. Nem quando conseguimos entrar na quest�o legal, avan�amos”, critica.
Resist�ncia
A militante afirma que a sobreviv�ncia dessa popula��o dependeu da pr�pria sorte. Se h� uma cultura e religiosidade, tamb�m foi por m�rito pr�prio, ante um racismo encarado diariamente e a um enfrentamento cotidiano. Na opini�o da coordenadora do Nzinga, o passo fundamental para a mudan�a num pa�s miscigenado � uma educa��o de respeito �s diferen�as e � diversidade. “Vale, no Brasil, o homem, branco, cat�lico e heterossexual. Um modelo que a sociedade e a escola legitimam e que s� exclui. Uma educa��o mais inclusiva coincide com todo tipo de gente, sem nega��o e sem exclus�o. � uma batalha longa. E ainda lidamos com um sil�ncio do poder p�blico.”
Longa batalha � o que tamb�m acha que h� pela frente dona L�cia. Matriarca da Casa do Divino Esp�rito Santo das Almas, no Bairro S�o Geraldo, na Regi�o Leste de BH, � com afinco que ela mant�m as tradi��es, a religiosidade e a cultura afro-brasileiras por meio da umbanda, com a obriga��o de jamais ceder. Para ela, s�o situa��es cotidianas, por vezes sutis, que revelam a verdadeira face do problema. Como a vez em que estava numa loja sendo atendida por uma conhecida, quando testemunhou um homem negro entrar e ser ignorado por outra balconista. Ou estar num restaurante com amigos e ver todos os clientes que chegaram depois tendo seus pedidos � mesa e precisar recorrer ao gerente para lembrar que tamb�m estavam l�.
“Tudo para o negro � uma dificuldade, seja no dia a dia, no estudo ou no trabalho. Em uma vaga de emprego, o candidato pode ter todas as qualidades que, se chega um branco, perde o lugar. Sempre fica em segundo, mesmo tendo seu valor. E se n�o tiver estudo, pior ainda”, diz. “Eu me imponho. N�o me humilho de jeito algum. Estamos na batalha. E vamos vencer.”
O povo fala
Tempo de festa ou mobiliza��o?

Makota Kidoial�, de 48 anos, secret�ria-executiva
“� um momento de den�ncia. A aboli��o n�o nos libertou. Ela nos jogou na sarjeta e disse: ‘Se vira a�, porque agora a gente n�o pode mais explorar sua m�o de obra’”

Davidson Negon, de 32, gestor de projetos socioambientais
“Pode ser uma comemora��o e pode ser uma den�ncia, desde que fique bem claro que a aboli��o n�o nos foi dada. Ela aconteceu em um momento em que a economia estava fraca e os negros estavam fazendo revolu��o”

Marisa Nzinga, de 50, soci�loga e professora
“Comemorar o qu�? Se eu fosse liberta, de fato, eu poderia deixar meus filhos irem aonde quisessem sem medo de que fossem presos pela cor da pele. Considero uma luta que vai se perpetuar por muitos anos nesse pa�s com v�rios preconceitos”

Camilo Gan, de 38, m�sico e ativista cultural
“Tenho certeza de que � uma data de falsa liberta��o. At� hoje, n�s, negros, n�o fomos libertos cois�ssima nenhuma. Estamos aprisionados no preconceito e em v�rios estigmas em que a sociedade nos colocou desde o s�culo 16. � um momento de conscientizar”
Palavra de especialista
Aline Neves R. Alves
Professora-pesquisadora do Programa A��es Afirmativas na UFMG
‘A aboli��o � um processo inacabado’
“Fomos o �ltimo pa�s a abolir a escraviza��o no continente americano. Sob press�o interna de diferentes grupos, mas sobretudo por for�a do capital internacional. Afinal, o interesse maior estava em forjar m�o de obra assalariada para o mercado consumidor. Contudo, a popula��o negra � subtra�da dos novos postos de trabalho marcados pelo crescimento de ind�strias, com�rcio, aumento e constru��o de cidades. Sa�mos do trabalho escravo para o informal, e mal remunerado, em detrimento de investimentos para migra��o de grupos europeus e asi�ticos no in�cio do s�culo 20. E o s�culo 20 tardiamente ampliou a universaliza��o da educa��o b�sica, afinal � sabido que ex-escravizados foram proibidos de estar em salas de aulas, impedidos na pr�tica e simbolicamente, por for�a do racismo, de contrair divisas e estar em postos de chefia ou de representatividade na pol�tica. E isso ocorre at� os dias atuais, avan�amos muito pouco. A popula��o negra � a marca da resist�ncia nesse pa�s, especialmente as mulheres negras, pois em tempos de crise foram elas, muitas vezes, que conseguiram prover seus lares a partir do seu trabalho como empregadas dom�sticas. Mas vivemos ainda as marcas da escraviza��o e lamentamos constatar que a mulher negra hoje � a que mais sofre com a viol�ncia dom�stica, com os mais baixos sal�rios, viol�ncia obst�trica e baixa escolaridade. O que temos visto de melhoria est� nas �reas de educa��o, com pol�ticas tempor�rias – afirmativas. Por outro lado, h� o risco de esses avan�os se estagnarem, por exemplo com o congelamento dos investimentos em educa��o por longos 20 anos. N�o se pune apenas uma classe popular, mas especialmente a popula��o negra que n�o p�de ainda viver de fato uma cidadania plena. A luta continua e o 13 de maio n�o ser� de comemora��o plena, mas de apelo aos governantes e, consequentemente, ao enfrentamento do racismo institucional.”
Territ�rio reconhecido
O Di�rio Oficial Minas Gerais de hoje traz o decreto assinado pelo governador Fernando Pimentel (PT) que cria a Superintend�ncia de Territ�rios Coletivos, vinculada � Secretaria de Desenvolvimento Agr�rio. O an�ncio foi feito ontem, durante a assinatura de decreto que destina 1.119 hectares de terras para cerca de 50 fam�lias quilombolas em Minas Novas, no Alto Jequitinhonha. A titula��o ser� em nome da Associa��o Quilombo de Quilombo, com car�ter gratuito, inalien�vel, coletivo e por prazo indeterminado. Em discurso, Fernando Pimentel alegou que a medida demonstra um reconhecimento e inclus�o dessas comunidades com a dignidade, tamanho e import�ncia que elas t�m.
Eventos do fim de semana
- S�BADO - 12/05
Pra�a 13 de maio
Festa dos Pretos Velhos
Centros de Umbanda de Belo Horizonte lembram hoje, a partir das 18h, os 130 anos do fim da escravid�o no Brasil. A Festa dos Pretos Velhos ocorre na Pra�a 13 de maio, no Bairro da Gra�a, Nordeste de Belo Horizonte. Al�m de lembrar a liberta��o dos escravos, a festa � uma homenagem aos guias espirituais e uma oportunidade de alertar para as agress�es que as religi�es de matriz africana v�m sofrendo com a intoler�ncia. A iniciativa � do centro de umbanda Casa de Caridade Pai Jac� do Oriente, um dos mais antigos e tradicionais de Belo Horizonte, hoje com 51 anos. O evento acontece h� 39 anos.
Festival Canjer�
Comunidades quilombolas de v�rias regi�es do estado se re�nem, na Pra�a da Liberdade, neste fim de semana em mais uma edi��o do Festival Canjer�. A programa��o � gratuita e contar� com feira de artesanato, cortejo, apresenta��es culturais, oficinas e rodas de conversas. Mais de 600 quilombolas de diversas comunidades do estado v�o se reunir na capital mineira com o objetivo de dar visibilidade � cultura tradicional e chamar a aten��o para a luta dos quilombolas pelo direito � terra e � vida digna. O projeto vem ao encontro das pol�ticas de salvaguarda do patrim�nio imaterial e promo��o do desenvolvimento agr�rio em Minas Gerais. Cortejos de congado, reinado e batuque tamb�m integram a programa��o do festival, que ocorre 10h �s 22h.
- DOMINGO - 13/05
Sabor e tradi��o
O grupo Kizomba promove, no domingo, a Festa do Ora-pro-n�bis, na Rua Andiroba, Bairro S�o Paulo, Nordeste de Belo Horizonte. A planta com propriedades medicinais era consumida por escravos que rogavam a Deus por sobreviv�ncia. Da�, o ora-pro-n�bis ganhou o significado de “rogai por n�s”. Durante a festa ser�o servidas por��es do vegetal com su� e angu. Uma roda de samba vai dar o tom da comemora��o que ocorre das 15h �s 23h.
Hist�rias da �frica
O Espa�o do Conhecimento UFMG recebe hoje o Hist�rias da �frica, a atividade que busca, por meio da conta��o de hist�rias, promover conhecimento cultural e social sobre o continente africano. A atividade ser� realizada por grupos que estudam rela��es de ancestralidade e religiosidade. A entrada � franca e o Espa�o do Conhecimento da UFMG est� no entorno da Pra�a da Liberdade, 70, no Bairro Funcion�rios, Centro-Sul de Belo Horizonte. As atra��es come�am �s 15h.