
O depoimento da sobrevivente � forte: “Nunca senti prazer, nem tive inten��o sexual com meu marido. Fazia sexo por medo, coagida”. Ainda assim a mulher, de olhos negros, profundos, t�mida e assustada, teve filhos com o homem que a amea�ava. Durante a maior parte do tempo em que esteve diante da equipe do Estado de Minas, Mariza – novo nome recebido do servi�o social de prote��o – manteve as m�os tensas, entre os joelhos, na sala de um edif�cio no Centro de Belo Horizonte. Ao mesmo tempo em que ela descrevia sua trajet�ria, a procuradora da Advocacia Geral da Uni�o (AGU) Ana Alice Moreira de Melo buscava medidas protetivas contra o marido, o empres�rio Djalma Brugnara Veloso. N�o deu tempo.
O tr�gico desfecho do drama vivido pela bela e bem-sucedida advogada de 35 anos todos j� sabem: morta, ao que tudo indica esfaqueada pelo pai de seus dois filhos, em um condom�nio de luxo de Nova Lima. As duas hist�rias revelam que o medo n�o escolhe classe social para tomar o lugar do amor. Pobre, pouco estudada, Mariza, hoje abrigada em casa secreta na Regi�o Metropolitana de BH, tamb�m sabe bem o que � dormir com o inimigo. Procuradora e dona de casa engrossam a estat�stica dos mais de 30 mil pedidos de prote��o baseados na Lei Maria da Penha, voltada para a defesa da mulher, s� no ano passado.
Segundo a Sociedade Internacional de Vitimologia, o Brasil lidera o ranking desse tipo de viol�ncia. Dados recentes apontam que 25% das brasileiras j� sofreram algum tipo de agress�o. H� n�mero mais absurdo: 70% das mulheres assassinadas no pa�s foram sacrificadas pelos pr�prios companheiros. Mariza buscou prote��o antes de entrar para a parte mais sombria da estat�stica. “Eu era um objeto dele. � disposi��o dele, na hora que ele quisesse”, emociona-se a mulher, m�e de pequenos em cal�as curtas. Foram anos suportando a viol�ncia at� a fuga pela vida, que a afastou tamb�m do lar e do conv�vio com os que ama. Op��o dolorida, mas a �ltima sa�da para milhares de v�timas.
O companheiro de Mariza cansou de avisar, aos berros, com a faca de cozinha na m�o, como quem recita texto de fic��o de Nelson Rodrigues, um dos maiores nomes da dramaturgia nacional: “No teu anivers�rio, te dou um caix�o. Um caix�o!”, repete a mulher, como a reviver a cena. Mariza n�o quis esperar para ver. Apavorada, fugiu com a roupa do corpo em busca da prote��o do Benvinda – Centro de Apoio � Mulher. Hoje, quando deixa o abrigo, anda �s escondidas em carro de chapa branca e vidros escuros. Faz parte de grupo acolhido em mais de 60 endere�os sigilosos espalhados pelo pa�s.
Gleizer Souza, de 37 anos, coordenadora da Casa Abrigo Sempre Viva, lamenta que esses ref�gios sejam necess�rios. A psic�loga conta com tristeza caso de abrigada mandada para fora de Minas. Distante, a mulher soube que o ex-marido, para se vingar, assassinou a cunhada. Voltou, mas, por seguran�a , n�o p�de ir ao enterro da irm�. “Essas mulheres s�o sobreviventes”, constata. Gleizer tem experi�ncia suficiente para confirmar que a viol�ncia dom�stica est� em todas as classes. Mariza, pobre, viva, escondida, e Ana Alice, morta, s�o as mais recentes provas disso.