
Na tela do computador, o retrato mostra um grupo de mulheres, sob uma mangueira, aprendendo o delicado of�cio de bordar. H� meninas de 10 anos e m�es de fam�lia – todas atentas aos ensinamentos da professora. Em outra fotografia, as adolescentes rodeiam a mesa, dessa vez entretidas com o recorte de letras coloridas, guirlandas e motivos de decora��o. As cenas se passaram no Haiti p�s-terremoto de 12 de janeiro de 2010 e fazem parte das lembran�as da freira Maria Aparecida dos Santos, da Congrega��o das Pequenas Irm�s da Divina Provid�ncia, que viveu quase tr�s anos na periferia de Porto Pr�ncipe.
Diante do rosto daquela gente sofrida e disposta a encontrar nos tecidos, linhas e palavras um alento para a destrui��o, os olhos da religiosa brilham de saudade, mas o cora��o mission�rio fala mais alto e aponta novos destinos. Aos 80 anos, a mineira de Formiga, no Centro-Oeste de Minas, encara desafios e se diz pronta para seguir rumo a Angola, na �frica, onde desenvolver� trabalhos sociais na cidade de Lobito.
No in�cio da tarde de ontem, irm� Aparecida n�o demostrava o menor sinal de cansa�o. Ela havia chegado de madrugada a Formiga, procedente de Uberl�ndia, no Tri�ngulo, e logo de manh�, de carro, seguiu para a casa da congrega��o no Bairro Funcion�rios, na Regi�o Centro-Sul de BH. Na capital, cuida dos detalhes da viagem para o continente africano, junta documentos e toma outras provid�ncias. “J� tomei as vacinas, s� aguardo a data da partida”, afirma, com determina��o e agilidade f�sica que impressiona. “N�o posso me esquecer do Haiti, pois l� amei muito a comunidade e fui amada por ela.”
Sementes
Considerada “alegria em pessoa” pela irm� de cria��o, a professora aposentada Ana Maria Higino e Souza, ela chegou a Porto Pr�ncipe em setembro de 2010 e retornou a Minas em julho. No pa�s da Am�rica Central, desempenhou um papel bem diferente daquele que estava acostumada – a vida inteira, havia atuado na �rea de sa�de, trabalhando em hospitais. “Na periferia, havia muitas fam�lias abrigadas em tendas, o que ocorre at� hoje, e n�s, mission�rios, convers�vamos muito com os pais e m�es. No in�cio, os ajud�vamos a fazer sementeiras e plantar tomates, com sementes do Brasil. Em seguida, comecei a ensinar mulheres a fazer arranjos de flores, desenhar letras e tamb�m a bordar”, afirma.
A arte do ponto em cruz, do ponto cheio e tramas bonitas foi mudando a vida das mulheres. “Sempre ficava impressionada com a forma como os haitianos tratam os filhos. Batem muito neles e os machucam com panelas quentes, ferros, o que estiver sobre o fog�o. At� os vizinhos se julgam no direito de espancar meninos e meninas. Eu via as marcas nos corpos das crian�as e ficava horrorizada”, conta a freira. Com o tempo, o tema se tornou assunto recorrente nas conversas de um grupo de 43 mulheres. “Um dia, depois da aula, uma delas disse que ela e marido se sentiam arrependidos dos maus-tratos. Ent�o senti que algo estava mudando, que hav�amos plantado uma semente.”
Juventude com hansenianos
O bordado � a senha para que a freira conte um pouco da sua hist�ria. Ela nasceu em Formiga em 3 de mar�o de 1933 (3/3/33), o que, para os crist�os, � a “idade de Cristo” em dose dupla. Nona filha de uma prole de 14, a menina Aparecida foi consagrada a Deus ao nascer. “Quando minha m�e, Maria do Carmo da Fonseca, estava no sexto m�s de gravidez, o m�dico disse que ela n�o poderia ter o beb�. Mas, decidida e muito cat�lica, resolveu assumir o risco. Dessa forma, prometeu a Deus que, se fosse menina, teria o nome de Aparecida em homenagem � padroeira do Brasil.” Dito e feito. A menina nasceu saud�vel e criou la�os muito fortes com a m�e. “Eu n�o sabia da promessa, mas fui me encaminhando para a vida religiosa, sem ningu�m for�ar. Sentia muito orgulho de ir � missa com minha m�e, de bra�os dados”, observa.
Aos 10 anos, Maria do Carmo matriculou a filha na aula de bordado e aos 13 na de costura. “Nunca namorei, tive apenas um flerte r�pido com um rapaz da cidade”, conta bem-humorada. Aos 15 incompletos, foi levada pela m�e � Santa Casa de Miseric�rdia de Formiga e, pelas m�os da freira Cristina, teve contato com doentes, morf�ticos (hansenianos) e o ambiente hospitalar. “Quando a irm� Cristina perguntou se eu queria ser intrumentadora, disse que sim. E tempos depois, em 1955, abri o cora��o e disse � minha m�e que queria ser religiosa. Ela chorou de emo��o, pois a promessa estava se cumprindo”. Quase 60 anos depois de fazer o votos, a freira est� certa de que o mais importante na vida � o amor: “E a f�!”.