
No momento em que Belo Horizonte discute o seu futuro na 4ª Confer�ncia Municipal de Pol�tica Urbana, que prev� mudan�as profundas na ocupa��o dos espa�os na capital, o Bairro da Lagoinha pede paz para voltar a ser feliz. E para ser feliz, Lagoinha, o bairro, precisa tamb�m exorcitzar seus fantasmas, os estigmas, as maldi��es. Lagoinha, o bairro, para ser feliz, precisa ainda que algu�m acredite em seu potencial, nas voca��es movimenadas e rent�veis das primeiras d�cadas do s�culo passado. Voca��es engolidas nos anos seguintes por uma ilus�o de progresso. Um projeto desenhado em meados dos anos 1990 poderia ter dado ao Lagoinha impulso suficiente para que caminhasse com as pr�prias pernas rumo ao resgate de sua intensidade social e econ�mica. Uma barreira pol�tica n�o o permitiu. Agora, este projeto est� sendo retomado para levar o bairro da Regi�o Noroeste de Belo Horizonte ao n�vel de dignidade que merece, n�o pela fama, mas pela sua import�ncia na hist�ria da capital mineira.
Antes de falar dessa perspectiva otimista � importante voltar no tempo para falar da origem do bairro, da sua efervesc�ncia, da localiza��o e dos traumas que o levaram a pagar um pre�o alto: o isolamento, o esquecimento. E de um sentimentalismo acerca de uma boemia que n�o lhe deixou heran�a. O Lagoinha tem a idade da cidade, fundada em 1897. Surgiu logo que a comiss�o chefiada pelo engenheiro e urbanista Aar�o Reis (1853-1936) terminou de desenhar a nova capital, limitada por uma avenida circular chamada de Contorno. Para a constru��o, vieram levas de imigrantes e migrantes da Regi�o Central do estado. Como n�o poderiam construir alojamentos no per�metro da Contorno, foram empurrados para um alagadi�o ao sop� de um morro. Nascia o Bairro Lagoinha para acolher italianos, espanh�is, turcos, portugueses e oper�rios mineiros.
Uma Babel se ergueu al�m do Ribeir�o Arrudas e da estrada de ferro. Uma Babel que, por necessidade de sobreviv�ncia, conseguiu com o tempo se entrela�ar, ao contr�rio da torre b�blica que ruiu por falta de comunica��o. Enquanto o Lagoinha se entendia, ocupava-se o per�metro da Contorno. O Bairro Funcion�rios, o maior, recebia os servidores p�blicos que iam movimentar a m�quina do estado. Esses moradores precisavam de servi�os: alfaiataria, sapataria, marcenaria, barbearia, lavanderia. Onde busc�-los? No Lagoinha, que, por necessidade pr�pria, teve que se desdobrar em artes e of�cios. Nas primeiras d�cadas, at� a capital contida na Contorno se organizar, o bairro al�m da linha do trem e do Arrudas se desenvolveu, se transformou numa comunidade de vida social e econ�mica intensa.
RELIGI�O E PAGANISMO Clubes, igreja, futebol, m�sica (foi um dos ber�os do samba da capital), festas religiosas e pag�s. Depois chegaram os cinemas e mais e mais of�cios. Nos domingos dos anos dourados do bairro, enquanto os rapazes se dirigiam ao campo do Pitangui para os cl�ssicos entre Fluminense e Terrestre, as mo�as se preparavam para os bailes na sede do Fluminense ou para as quermesses promovidas pelo Santu�rio de Nossa Senhora da Concei��o. As donas de casa se dirigiam ao mercadinho municipal, que ainda est� de p� na Avenida Ant�nio Carlos, frequentado tamb�m por moradores de outras �reas, incluindo a elite do per�metro da Contorno. Quando chegaram os cinemas, Mau�, S�o Geraldo e S�o Crist�v�o (este no bairro que lhe d� o nome), os meninos faziam filas nas sess�es de westerns e aventuras. No carnaval, o bloco Le�es da Lagoinha arrastava divertidos foli�es.
Pode-se falar muito do Bairro Lagoinha espremido entre as avenidas Ant�nio Carlos e Pedro II e separado do Cento pela linha de trem e o ribeir�o, no qual os primeiros moradores podiam pescar e at� nadar. Mas a conversa ficaria longa e at� desnecess�ria, porque a hist�ria do bairro j� foi contada em prosa e verso e h� na internet um sem n�mero de vers�es para a sua cria��o. O que d�i nos antigos moradores do Lagoinha � o fato de o bairro n�o ter ficado marcado pelo seu passado de contribui��o ao avan�o da cidade, mas sim pela fama bo�mia da devassa e extinta Pra�a Vaz de Melo.
O portal da boemia
A Pra�a Vaz de Melo era, na verdade, um quarteir�o entre a ferrovia e a Avenida Ant�nio Carlos. Era o portal n�o s� do Bairro Lagoinha, como da Regi�o Norte e de parte da Noroeste. Cruzavam aquele portal puros e pecadores. Os puros seguiam caminho. Os outros ficavam, atra�dos pela proposta de noites alegres em cabar�s, entre copos e garrafas, prostitutas, artistas decadentes e novatos em busca do estrelato, intelectuais , prostitutas e malandros que viviam da esperteza e da explora��o de mulheres.
Eram tempos de paz e sem viol�ncia. A popula��o fixa ou flutuante da Pra�a Vaz de Melo n�o incomodava os moradores. “Quando minha fam�lia mudou para c�, eu tinha 13, 14 anos. A gente passava por l� e ningu�m nos incomodava”, atesta a aposentada S�nia Seabra, de 68 anos, ainda moradora do bairro. A Pra�a Vaz de Melo ganhou fama como reduto bo�mio e rom�ntico. Celebridades masculinas que visitavam BH eram, invariavelmente, convidadas a conhecer as noites de divers�o e prazer.
Os malandros eram indiv�duos supostamente elegantes, de palet� geralmente de linho branco, cal�as de casemira, sapatos de duas cores e camisa aberta no peito, por onde desciam grossas correntes de ouro. Manejavam navalhas como extrema habilidade. N�o para roubar ou agredir algu�m, mas para defender territ�rio ou as prostitutas que exploravam. N�o havia outro lugar para eles na cidade e quando a Feira de Amostras, no in�cio da Avenida Afonso Pena, e seu anexo, o gin�sio do Paissandu, foram demolidos para dar lugar � atual rodovi�ria, a malandragem ficou de orelha em p�. Depois, implodiram o Mercado Mau� e o Cine S�o Geraldo, na Contorno. Haveria mudan�as profundas na regi�o.
“Pelo amor de Deus, chega dessa hist�ria de boemia. Esqueceram que aqui, no Lagoinha, mora gente que trabalha, que estuda”, diz S�nia. Ela quer dizer que o bairro, sufocado por um tr�fego infernal – pelo menos 120 mil ve�culos passam pelo complexo por dia – precisa recuperar a auto-estima, a economia, a vida social. E atr�s dos viadutos, vem a degrada��o. As �reas sob eles viram dep�sitos de lixo e moradia para sem-teto, viciados em drogas e bandidos. “No meu tempo de menina, havia vida aqui”, diz a dona de casa, ex-professora e m�e de tr�s filhos. Hoje, como em quase todos os bairros da cidade, no Lagoinha as portas s�o trancadas mal escurece.

Recupera��o que n�o veio
Depois da demoli��o do portal, o Lagoinha caiu no esquecimento. Do efervescente com�rcio, da oferta de servi�os, pouco restou. Da vida social, nem se fala. Ficou na lembran�a apenas a Pra�a Vaz de Melo com sua fama bo�mia. “Adeus Lagoinha, adeus; est�o levando o que resta de mim; dizem que � a for�a do progresso; um minuto eu pe�o, para ver seu fim.” Os versos do compositor, cantor e poeta Gerv�sio Horta s�o profundamente marcantes, dizem tudo. J� n�o se recorre tanto a aquele bairro t�o importante na �poca em que a cidade engatinhava.
No in�cio dos anos 1990, o bairro gritou pedindo aten��o. O apelo chegou aos ouvidos de intelectuais, artistas, acad�micos e at� de pol�ticos. Surtiu efeito. Em 1994, a prefeitura acenou com um plano de revitaliza��o. O projeto nasceu das m�os de Rodrigo Andrade (urbanista), Maria de Lourdes Dolabela (soci�loga), Iara Landre (arquiteta) e Leonardo Castriota (arquiteto) e previa a requalifica��o total da regi�o.
O novo Bairro Lagoinha seria presente aos moradores no centen�rio de BH. Em 1997, ano em que a cidade completou 100 anos, o trabalho estava em andamento e o m�dico C�lio de Castro assumiu a PBH. Meses ap�s a posse, o Di�rio da Tarde, jornal que era editado pelos Di�rios Associados, saiu com esta manchete: “Projeto Lagoinha n�o p�de ser executado por falta de parceria”. O munic�pio queria mesmo apoio da iniciativa privada ou foi quest�o pol�tica? N�o se sabe. Doutor C�lio n�o est� mais a� para responder.
VOCA��O DO BAIRRO Agora, 20 anos depois, Leonardo Castriota se dedica a outro projeto, fisicamente menos audacioso, mas substancioso no prop�sito. “Fizemos um invent�rio das voca��es do Lagoinha, o que ainda existe de of�cios, como alfaitaria, artesanato em gesso, marcenaria, serralheria, sapataria, entre outros. H� at� registro de um consertador de acordeon.” O trabalho de resgate desses of�cios ser� desenvolvido em oficinas no mercadinho municipal, onde hoje funciona uma padaria-escola.
O aposentado Nelson Gomes, de 83 anos, nasceu no Lagoinha. Foi condutor de bonde e modelista de cal�ados. “Havia oficinas de cal�ados aqui e uma f�brica na Rua Marambaia, no Bairro Pedro II. Fiz sapatos para as grandes lojas da cidade. Hoje, s� h� uma pequena renovadora de cal�ados, na Rua Al�m Para�ba.” Ele acredita que se o novo projeto der certo, o bairro pode sim se reerguer sozinho. “Lagoinha tem futuro, toda a vida teve. E � importante tamb�m que recuperem a Rua Itapacerica. As casas antigas est�o caindo.” Nelson, pai de sete filhos e av� de 14 netos, s� teme a viol�ncia. “� o lado ruim.”