
Pode entrar. N�o se acanhe. A casa � sua. Ou melhor seria dizer: o carro � seu. Voc� est� convidado a conhecer uma genu�na hist�ria de amizade entre av� e neto, intermediada por um Opala standard 1975, de duas portas, na cor branca. O av� era Newton Palhares, fundador do Caf� Palhares com os irm�os Ant�nio e H�lio Palhares. O neto � Marcos Paulo Souza Barbosa, hoje advogado. Boa parte da conviv�ncia dos dois ocorreu dentro do inesquec�vel Opala branco, modelo da General Motors que marcou a gera��o de 1970. Um dos cl�ssicos da ind�stria automobil�stica nacional.
Dos 8 aos 14 anos, o neto se tornou o melhor amigo do av�. Pelo menos era o que sentia o pequeno, que se enchia de orgulho quando era convidado para passear no Opal�o. Iam s� os dois, sem ningu�m a palpitar. A av� e a m�e ficavam em casa. “Eu me tornei companhia do meu av�. Perdi a conta das vezes em que ele me colocou, pequenino, ao lado dele. Naquela �poca, crian�a podia sentar no banco da frente.” Nos olhos, sinais da saudade do av�, que, se estivesse vivo, teria completado 98 anos no �ltimo dia 20.
Protegidos pela lataria forte e imponente do Opal�o, av� e neto seguiam, despreocupados. Al�m do mais, estavam sob a prote��o dos c�us. Dependurado no retrovisor, havia o crucifixo. No porta-luvas, dois botoms, um com Jesus Cristo e outro de anjo da guarda, imantados. Era preciso se precaver, porque o carro andava bem, com o motor de quatro cilindros e 88cv de pot�ncia. “N�o chegava a ser um modelo esportivo, mas era um autom�vel bonito e luxuoso. N�o fazia o g�nero daqueles Opalas barulhentos de seis cilindros. Era um carro de senhor”, compara o neto, respeitoso.
As aventuras eram v�rias, desde visitar a irm� do av�, a tia Cema (Iracema), em Esmeraldas, ou rumo a Guarapari, nas f�rias com a fam�lia. Era viagem para um m�s. Ele conta que o porta-malas do carro era t�o espa�oso que, al�m das malas, seguiam fardos de arroz, feij�o, farinha e at� uma TV em preto e branco, pequena. “Outra provid�ncia do av� era forrar o carro com jornais por baixo do tapete, para n�o sujar o carpete com a areia da praia. Quando a gente chegava de viagem, ele mandava lavar o carro por baixo e passava �leo de mamona, para n�o enferrujar.”

HOMENAGEM O Opala branco completar� 40 anos de fabrica��o em janeiro. � apenas um m�s mais velho em rela��o a Marcos Paulo, nascido em dezembro do ano anterior. Hoje, casado e com filhos, o advogado decidiu partir para uma aventura em homenagem ao av�, chamado carinhosamente por ele e por alguns primos de Pato. O apelido surgiu quando um afilhado de Palhares, esbo�ando as primeiras palavras, n�o conseguia falar “padrinho”, que trocou por “padinho”, “patinho” e, ent�o, “pato” ficou!
Na tentativa de resgatar o passado, Marcos Paulo decidiu investigar o paradeiro do carro. Os rastros do Opala se perderam no tempo, desde a morte do av�, em 1990. “A morte foi um baque. Na verdade, eu havia sido adotado legalmente por ele. Meus pais haviam se separado na mesma �poca em que meu irm�o morreu de c�ncer, aos 10 anos. Eu e minha m�e ficamos sozinhos. Fomos morar na casa dos meus av�s”, revela Marcos. Ele guardou a imagem do av� com a boina branca e os cabelos impec�veis, da mesma cor, fixados com “Quina Petr�leo”, produto equivalente ao gel.
A av� de Marcos se viu obrigada a se desfazer do carro. Na �poca, o neto n�o tinha idade para dirigir. “Na realidade, a vov� tinha medo de que o adolescente de 15 anos n�o resistisse � tenta��o parada na garagem. Acho que ela tinha raz�o”, completa, rindo. Meses antes, Marcos Paulo havia pedido autoriza��o ao av� para guardar o Opala na garagem. “Ele, ent�o, serenamente, respondeu: ‘ainda n�o’, dando a entender que o dia estava pr�ximo”, conta o advogado, que n�o chegou a dirigir o Opala. E viu quando um amigo do av� o levou para a revenda. “Quando ele virou a esquina, pensei: nunca mais vou v�-lo.”

Placa amarela, a pista
Em 2012, Marcos Paulo confessou a um amigo a vontade de recuperar o Opala. A �nica pista era a placa, ainda na cor amarela e com apenas duas letras, de cuja combina��o nunca se esquecera: AN-8776. O vizinho do amigo era delegado do Detran e descobriu a nova placa e o endere�o do propriet�rio, morador de Contagem. “Ao ligar para o n�mero, a filha atendeu, dizendo que o Opala branco havia sido do pai dela e que ele havia morrido h� mais de 12 anos. Ela se comprometeu a perguntar a um tio se ele sabia quem havia comprado o carro.”
Cerca de um m�s depois, diante do sil�ncio da mo�a, Marcos Paulo insistiu. Descobriu que ela havia conversado com o tal tio sobre o Opala, mas o homem de nada sabia. “Pronto, perdi o carro”, lamentou o advogado, de volta � estaca zero. No desespero, postou um apelo no Facebook. A novela do carro sensibilizou uma concunhada, que indicou os servi�os de um despachante capaz de achar ve�culos desviados at� na China. O profissional descobriu que o ve�culo, com novo emplacamento, havia sido transferido para Serop�dica (RJ).
O Opala estava em nome do instalador de esquadrias de alum�nio Rog�rio Rezende. Natural de Igarap�, ele havia mudado para tentar a vida no Rio de Janeiro e, havia cerca de 10 anos, vendido o ve�culo a um assessor do prefeito da cidade, interessado em modelos antigos. E n�o se preocupou em transferir a documenta��o. Tampouco se lembrava do nome de quem o havia comprado. Passado um m�s, Marcos Paulo tornou a ligar. Rog�rio tinha apenas o sobrenome do comprador: Calderini.
Marcos Paulo ligou para a Prefeitura de Serop�dica e pediu para falar com Calderini. Nem acreditou quando o funcion�rio atendeu a liga��o. “Fiquei empolgado e entreguei toda a hist�ria. Contei que estava atr�s do Opala branco, que tinha valor sentimental por ter sido do meu av�. Quando acabei de falar, pensei ter dado um tiro no p�. Perguntei se estava com o carro. Ele respondeu que sim. Pensei que iria querer me cobrar um R$ 1 milh�o. Ele disse que havia tentado restaurar o carro, mas o capoteiro tinha sumido com o dinheiro. Falou que o Opala deveria valer uns R$ 3 mil, mas que o venderia por R$ 2 mil. Antes de ele terminar a frase, falei que o neg�cio estava fechado. Nem pedi para ver as fotos do carro”, relata.
O REENCONTRO Marcos Paulo desligou o telefone e n�o conseguiu mais trabalhar, tamanhas eram a emo��o e a euforia. E passou a imaginar em que estado o carro deveria estar, passadas quase duas d�cadas. O importante era que o esfor�o seria recompensado pelo reencontro. Mas era preciso trazer o ve�culo para BH. Como fazer isso se nem motor havia mais? No fim das contas, o advogado embarcou para o Rio com a fam�lia em um feriado, disposto a resgatar a mem�ria do av�. S� de guincho e impostos atrasados pagou mais que o valor cobrado pelo Opala.
Os trabalhos est�o apenas come�ando. Para Marcos Paulo, n�o adianta apenas ter a carca�a. Ele quer restaura��o integral, o que vai demandar no m�nimo seis meses. Os custos podem sair por at� R$ 100 mil, dependendo do que precisa ser refeito. Pe�as originais antigas custam mais. “N�o me lembro de um �nico arranh�o no Opala. Era eu quem o lavava quase todos os s�bados. Vov� Pato ficava na janela, s� olhando. Ele sempre pedia para caprichar mais. Assim me ensinou a dar valor ao trabalho” Para Marcos, o Opala branco ganhou novo significado. “N�o se trata de um carro, simplesmente. Ele representa o meu av�.” E j� sonha com o dia em que levar� os dois filhos no Opala, estrada afora, bem devagar. Exatamente como fazia o vov� Pato.