
“Travesti respons�vel por comercializar drogas. A primeira palavra que eles puseram no meu B.O. (boletim de ocorr�ncia) foi travesti. A sociedade em si discrimina muito”. Com essa fala, a transexual feminina Liz Vitoi, de 26 anos, irrompe a tela do premiado document�rio A ala, do jornalista Fred Bottrel, que estreou semana passada. Com cachos longos e louros, eleita Miss Trans Prisional, Liz revela detalhes sobre a rotina da ala criada especificamente para homossexuais no Pres�dio de Vespasiano, na cidade de mesmo nome, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte.
“Se cortarem meu cabelo, eu me mato”, avisou Liz, ao ser recolhida por furto na cela masculina de uma cadeia do interior mineiro. Na �poca, ela se rebelou contra o procedimento padr�o para homens presos, que exige raspar a cabe�a, eliminar adere�os, cortar as unhas e vestir o uniforme da pris�o. Ela e outros 105 presidi�rios em Minas Gerais assinaram um termo de reconhecimento de homossexualidade, como forma de se proteger da homofobia dentro das celas.
Mutila��o
Uma das inspira��es para o surgimento da “ala gay” em Minas foi o contundente depoimento do travesti Vit�ria Rios Fortes, de 28, enquadrado por tr�fico em 2009. “Eu era obrigada a ter rela��o sexual com todos os homens das celas, em sequ�ncia. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era amea�ada de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos. Um deles me ‘vendeu’ em troca de 10 ma�os de cigarro, um suco e um pacote de biscoitos”, denuncia Vit�ria, que passou a mutilar os bra�os para chamar a aten��o da diretoria da penitenci�ria na �poca.
“Tenho uma cabrita para treta” � a esp�cie de senha usada entre os presos das unidades carcer�rias para homens, quando algu�m dentro da cela se referia aos servi�os prestados pelo preso com outra orienta��o sexual. “Fiquei calada at� o dia em que n�o aguentei mais. Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei hepatite e s�filis. Achei que iria morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela e lavar a roupa de todos. Era a primeira a acordar e a �ltima a dormir”, desabafa.
“Dentro das cadeias, os travestis s�o usados como moeda de troca entre os presos”, compara Walk�ria La Roche, coordenadora de Diversidade Sexual do governo de Minas. Ela conta ter ficado quatro dias sem dormir depois de ouvir relatos semelhantes aos de Vit�ria, em visitas aos pres�dios. Com a equipe, passou a conceber um projeto capaz de proteger a integridade f�sica dos prisioneiros no estado. “Muitos evitavam declarar a homossexualidade dentro da pris�o para n�o sofrer preconceito. Nem todo gay � afeminado, mas os travestis e transexuais j� trazem isso no crach�”, compara ela. Na resolu��o federal, esses g�neros podem optar por ser transferidos para unidades prisionais femininas. Nos outros casos, � tamb�m op��o do preso declarar-se ou n�o homossexual.

Banho de sol e dia da beleza
Como os outros, a fachada do Pres�dio de Vespasiano inspira medo, com as torres de seguran�a, arame farpado e homens fortemente armados da vigil�ncia. N�o h� arco-�ris brotando em cima do tijolo de concreto. Na portaria, � preciso enfrentar vistoria e deixar o documento de identidade. O tratamento mais humanizado aos presos homossexuais se revela nos detalhes. �s quintas-feiras, o banho de Sol d� direito ao dia da beleza, que inclui liberar secadores de cabelo. “N�o d� para antecipar o direito ao secador para a minha colega? Ela est� h� uma semana sem lavar a cabe�a”, implora um dos detentos, com os bra�os para fora da cela e unhas esmaltadas de lil�s.
A diretora de atendimento ao preso, Fernanda Viana, explica que, para emprestar a chapinha, ir� pedir autoriza��o ao diretor geral da unidade, Cl�udio Welson Eloi Gon�alves. Segundo ela, aquela cela recebe presos que acabaram de ser transferidos e ainda n�o conquistaram o direito ao uso do secador de cabelos. “J� sei o que aconteceu. Ela n�o quer ficar sem os cabelos lisos e s� vai lavar o dia em que conseguir a chapinha”, conta ela, falando na mesma l�ngua dos homossexuais com caracter�sticas femininas. “Ser mulher facilita, porque eles deixam aflorar as mesmas car�ncias”, completa.

Sem um ponto de apoio do lado de fora, os gays usam os telefonemas permitidos para combinar o envio de maquiagens e esmaltes pelos Correios. N�o se trata de rela��o afetuosa. A d�vida ser� cobrada do lado de fora dos muros. Da primeira vez, Rodolfo L�cio dos Santos, de 22, cumpriu pena por roubo. Est� de volta por suspeita de ter matado o parceiro, o que ele nega. “Aqui tem o benef�cio de fazer as sobrancelhas e as unhas”, diz o homossexual, que sofreu na cadeia do Bairro Palmital. “Eles n�o quiseram me aceitar na cela, s� pelo fato de ser homossexual. Fui parar no seguro, a cela isolada onde ficam os estupradores”, diz.
Realidade em filme
As falas de travestis, drag queens e transexuais costumam ser exploradas em programas de humor, memes na internet e bord�es de stand ups. Em seu document�rio de estreia, o jornalista Fred Bottrel conta que a primeira parte de A ala conseguiu arrancar risos da plateia no Festival Mix Brasil de Cinema da Diversidade, em S�o Paulo. Na segunda parte, por�m, o efeito foi de choque. “As pessoas est�o habituadas a rir dos travestis, mas houve um momento de parar e come�ar a entender que n�o � t�o legal assim quando o travesti conta que a m�e foi morta na frente dele, quando tinha 14 anos”, afirma o diretor.
Apesar de revelar passagens tr�gicas da vida deles, os presidi�rios continuam brincando com as situa��es ao longo do document�rio. “N�o h� problema em rir daquele que � diferente, desde que n�o seja por se sentir superior a ele. Com a exibi��o do document�rio, a gente est� aprendendo a rir deles, junto com eles. O melhor � poder rir com consci�ncia”, ensina o jornalista mineiro, que trabalha no Correio Braziliense, dos Di�rios Associados, em Bras�lia.
Fred Bottrel gastou cerca de seis meses com a produ��o do document�rio, que explorou um tema mantido em certo sigilo dentro do pr�prio sistema prisional. “Como � que ningu�m nunca se interessou por ouvir essas pessoas? Elas merecem ser ouvidas”, defende o jornalista. Em maio, ele esteve em Minas para as grava��es. O curta ficou pronto em junho. Na sua primeira exibi��o, faturou pr�mio de melhor document�rio pelo j�ri popular e men��o honrosa pelos jurados do festival.
Carlos Magno,
presidente da ABGLT
Vulnerabilidade permanece
“Na verdade � uma medida paliativa frente a uma situa��o de vulnerabilidade da popula��o em priva��o de liberdade no Brasil. Se a dignidade humana estivesse sendo respeitada nos pres�dios, n�o seria necess�rio ter ala espec�fica para LGBT. Continua existindo abuso de heterossexuais com heterossexuais nas cadeias. Com os homossexuais, a vulnerabilidade � maior. N�o h� s� uma rela��o de poder estabelecida, mas tamb�m de preconceito que leva � viol�ncia f�sica. � aquela coisa do ‘vamos abusar de voc� para voc� aprender a virar homem’. � um absurdo”